terça-feira, 17 de março de 2009

Por que os cínicos estão errados - Savoj Zizek

Por que os cínicos estão errados
Slavoj Zizek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Dias antes da eleição, Noam Chomsky disse aos progressistas que eles podiam votar em Obama, mas sem ilusões. Eu compartilho inteiramente com Chomsky as dúvidas sobre as reais conseqüências da vitória de Obama: de uma perspectiva pragmático-realista, é bastante possível que Obama vá apenas fazer algumas melhorias cosméticas, transformando-se em um “Bush com um rosto humano”. Ele seguirá a mesma política básica de uma maneira mais atraente, e efetivamente reforçando ainda a hegemonia estadunidense, a qual tem sido severamente arruinada pela catástrofe dos anos Bush.
Há, no entanto, alguma coisa profundamente errada com essa reação – uma dimensão chave é perdida aqui. E é por causa desta dimensão que a vitória de Obama não é apenas outro turno nas eternas lutas parlamentares por maioria com todos os seus cálculos pragmáticos e manipulações. Ela é um sinal de algo mais. Este é o motivo de um bom amigo meu estadunidense, inveterado de esquerda sem ilusões, chorou por horas quando a mídia anunciou a vitória de Obama. Quaisquer que fosse nossa dúvidas, medos e compromissos, nesse momento de entusiasmo cada um de nós era livre e participante da liberdade universal da humanidade.
De que tipo de sinal eu estou falando? Em seu último livro publicado, O concurso das faculdades (1798), o grande filósofo idealista alemão Immanuel Kant abordou uma simples porém difícil questão: Há verdadeiro progresso na história? (Ele se referia a progresso ético em liberdade, não apenas desenvolvimento material.) Ele reconheceu que a história efetiva é confusa e não permite evidências claras: Pense sobre o século XX que trouxe democracia e bem-estar sem precedentes, mas também o holocausto e o gulag.
Contudo, Kant concluiu que, embora o progresso não possa ser confirmado, podemos discernir sinais que indicam que o progresso é possível. Kant interpretou a Revolução Francesa como um sinal que apontava para uma possibilidade de liberdade: O que era até então impensável aconteceu, todas as pessoas destemidamente afirmavam sua liberdade e igualdade. Para Kant, ainda mais importante do que a – freqüentemente sangrenta – realidade do que aconteceu nas ruas de Paris foi o entusiasmo que estes eventos engendraram em simpáticos observadores por toda a Europa:

A recente revolução de um povo que é rico em espírito bem pode falhar ou ter êxito, acumular miséria e atrocidade, mas ela, contudo, suscita no coração de todos os espectadores (aqueles que não se surpreendem a si próprios em meio a ela) uma tomada de posição de acordo com os desejos que beiram o entusiasmo e que, na medida em que sua expressão mesma não foi sem risco, pode apenas ter sido causada por uma disposição moral no interior da raça humana.

Dever-se-ia notar aqui que a Revolução Francesa gerou entusiasmo não apenas na Europa, mas também em lugares distantes como o Haiti, onde ela desencadeou outro mundialmente histórico evento: A primeira revolta de escravos Negros, que lutaram por total participação dentro do emancipatório projeto da Revolução Francesa. Possivelmente o mais sublime momento da Revolução Francesa tenha ocorrido quando a delegação do Haiti, liderada por Toussaint L’Overture, visitou Paris e foi entusiasticamente recebida na Assembléia Popular como iguais entre iguais.
A vitória de Obama pertence a essa linha; é um sinal da história no triplo sentido kantiano do signum rememorativum, demonstrativum, prognosticum. Isto é, este é um sinal de que a memória do longo passado de escravidão e luta por sua abolição reverbera; um evento que agora demonstra uma mudança; uma esperança para futuras realizações. Não surpreende que Hegel, o grande idealista alemão, tenha compartilhado o entusiasmo de Kant em sua descrição do impacto da Revolução Francesa:
Este foi, assim, um glorioso despertar das mentes. Todos os seres pensantes participando do júbilo dessa época. Emoções de um elevado caráter estimulavam as mentes dos homens nesse período; um entusiasmo espiritual vibrava através do mundo, como se a reconciliação entre o divino e o secular fosse agora pela primeira vez consumada.

A vitória de Obama não fez nascer o mesmo entusiasmo universal ao redor do mundo, com pessoas dançando nas ruas, de Chicago até Berlim, e ao Rio de Janeiro? Todo ceticismo manifestado secretamente por preocupados progressistas (e se, na privacidade da cabine de votação, o racismo publicamente negado ressurgir?) mostrou estar errado.
Há uma coisa sobre Henry Kissinger, o último cínico Realpolitiker que salta aos olhos de todos os observadores: o quão completamente errados foram a maioria de seus prognósticos. Para tomar apenas um exemplo, quando chegaram notícias ao oeste a respeito de um golpe militar a Gorbachev em 1991, ele imediatamente aceitou o novo regime (que ignominiosamente entrou em colapso três dias depois) como um fato. Em suma, quando regimes socialistas eram já mortos-vivos, Kissinger se fiava em um pacto duradouro com eles.
A posição do cínico é a de que ele detém alguma terrível, pura sabedoria. O cínico paradigmático conta-lhe privadamente em uma voz discreta e confidencial: “Mas você não percebe que tudo isso na verdade está relacionado a (dinheiro/poder/sexo), que todos os altos princípios e valores são apenas frases vazias que não contam em nada?” O que o cínico não vê é sua própria ingenuidade, a ingenuidade da sabedoria cínica que ignora o poder das ilusões.
A razão de a vitória de Obama gerar tal entusiasmo não é apenas pelo fato de que, contra todas as probabilidades, ela realmente aconteceu, mas que a possibilidade de tal coisa acontecer foi demonstrada. O mesmo vale para todas as grandes rupturas históricas. Relembrando a queda do muro de Berlim: Ainda que todos nós soubéssemos sobre a ineficiência carcomida dos regimes comunistas, de alguma forma nós não “acreditávamos realmente” que eles iriam desintegrar. Como Kissinger, nós todos fomos vítimas em demasia do pragmatismo cínico.
A atitude é mais bem resumida pela expressão francesa “je sais bien, mais quand meme” (eu sei muito bem que isso pode acontecer, mas mesmo assim... eu não posso realmente aceitar que isso possa acontecer). Este é o motivo de que, ainda que a vitória de Obama fosse claramente previsível em todo caso nas duas últimas semanas antes da eleição, sua vitória efetiva foi ainda vivenciada como um choque. Num certo sentido, o impensável aconteceu, algo que nós realmente não esperávamos que pudesse acontecer. (Note-se que há uma versão trágica do impensável realmente acontecendo: holocausto, gulag... como alguém pode aceitar que algo assim poderia realmente acontecer?)
A verdadeira batalha começa agora, depois da vitória: a batalha pelo que essa vitória realmente irá significar, especialmente dentro do contexto de dois outros sinais da história muito mais sinistros: 11/9 e o desmoronamento financeiro. Nada está decidido pela vitória de Obama, mas sua vitória expande nossa liberdade e talvez o escopo de nossas decisões. Mas embora possamos ser bem sucedidos ou falhar, a vitória de Obama irá permanecer como um signo de esperança em nossos de outra maneira sombrios tempos, um sinal de que a última palavra não pertence aos cínicos “realistas”, sejam eles de esquerda ou de direita.

In These Times, November 13, 2008.





segunda-feira, 9 de março de 2009

Do Che vuoi? à Fantasia: Lacan com De olhos bem fechados - Slavoj Zizek

Do Che vuoi? à Fantasia: Lacan com De olhos bem fechados

Slavoj Zizek
Tradução de Rodrigo Nunes Lopes Pereira

E por que um Outro com um O maiúsculo? Por uma sem dúvida louca razão, no mesmo sentido em que é loucura cada vez em que somos obrigados a introduzir signos suplementares a esses dados pela linguagem. Aqui, a razão louca é a seguinte. Você é minha mulher – afinal de contas, o que você sabe sobre isso? Você é meu mestre – você está tão certo disso, realmente? O que cria o valor fundador dessas palavras é que o que é almejado nessa mensagem, bem como o que é manifesto na pretensão, é que o outro está aqui na qualidade de Outro absoluto. Absoluto, que significa que ele é reconhecido, mas não conhecido. Nesse mesmo sentido, o que constitui pretensão é que, afinal, você não sabe se é uma pretensão ou não. Essencialmente, é este elemento desconhecido na alteridade do outro que caracteriza a relação de fala no nível do que é falado ao outro.1
Essa passagem poderia surpreender qualquer um familiarizado com Lacan: ela iguala o grande Outro à impenetrabilidade do outro sujeito além do “muro de linguagem”, colocando-nos diante do fim da imagem predominante que Lacan apresenta do grande Outro, aquela da lógica inexorável de um automatismo que comanda tudo, no sentido em que, quando o sujeito fala, ele é, sem que ele mesmo saiba, meramente “falado”, não é o mestre em sua própria casa. O que, então, é o grande Outro? O mecanismo anônimo da ordem simbólica, ou o outro sujeito em sua alteridade radical, um sujeito de quem eu estou eternamente separado pelo “muro de linguagem”? A saída fácil dessa situação difícil poderia ser ler nesta discrepância o sinal de uma mudança no desenvolvimento de Lacan, desde o primeiro Lacan focado na dialética da recognição subjetiva, até o Lacan posterior, que propôs o mecanismo anônimo que regula a interação dos sujeitos (em termos filosóficos: da fenomenologia ao estruturalismo). Ao mesmo tempo em que esta é uma verdade limitada nesta elucidação, ela ofusca o mistério central do grande Outro: o ponto no qual o grande Outro, a ordem simbólica anônima, se subjetiviza.

O caso exemplar é a divindade: o que nós chamamos “Deus” não é o grande Outro personificado, endereçando-se a nós como uma pessoa acachapante, um sujeito além de todos os sujeitos? De uma maneira similar, nós falamos sobre História interrogando algo de nós, de nossa Causa nos chamando para fazer o sacrifício necessário. O que nós temos aqui é um estranho sujeito que não é simplesmente outro ser humano, mas o Terceiro, o sujeito que se situa acima da interação dos indivíduos reais humanos – e o terrificante enigma é, claro, o que esse impenetrável sujeito quer de nós (a teologia refere-se a essa dimensão como a de Deus absconditus). Para Lacan, nós não temos que evocar Deus para experimentar essa dimensão abissal; ela está presente no próprio ser humano:
O desejo do homem é o desejo do Outro, no qual o do /of/ provê o que os gramáticos chamam uma ‘determinação subjetiva’ – nomeadamente, que é como /as/ Outro que o homem deseja. ... Isso é porquê à pergunta do Outro – que retorna ao sujeito do lugar do qual ele espera uma resposta de oráculo – que toma uma forma semelhante a de um ‘Che vuoi?’, ‘O que você quer?’ é a pergunta que melhor conduz o sujeito ao caminho de seu próprio desejo.2

A fórmula de Lacan é ambígua. “É como Outro que o homem deseja” primeiro significa que o desejo do homem é estruturado pelo grande Outro “descentrado”, a ordem simbólica: o que eu desejo é predeterminado pelo grande Outro, o espaço simbólico dentro do qual eu habito. Sempre que meus desejos são transgressivos, sempre que eles violam as normas sociais, essa mesma transgressão é condicionada pelo que é transgredido. Paulo sabia disso muito bem quando, na famosa passagem em Romanos, ele descreve como a lei dá origem ao desejo para violá-la. Visto que o edifício moral de nossas sociedades ainda gira em torno dos dez Mandamentos – a lei a qual se referia Paulo –, a experiência de nossas sociedades liberal-permissivas confirma a percepção de Paulo: elas demonstram continuamente que nossos prezados direitos humanos são afinal, em seu íntimo, simplesmente os direitos para violar os dez Mandamentos. “O direito à privacidade” – o direito ao adultério, feito em segredo, quando ninguém me vê ou tem o direito de investigar minha vida. “O direito em buscar felicidade e ter propriedade privada” – o direito a roubar (explorar outros). “Liberdade de imprensa e de expressar opinião” – o direito de mentir. “O direito dos cidadãos livres de possuírem armas” – o direito de matar. E, finalmente, “liberdade de crença religiosa” – o direito a adorar falsos deuses.

Há, contudo, outro sentido para “o desejo do homem é o desejo do Outro”: o sujeito deseja apenas na medida em que ele experimenta o Outro ele mesmo como desejante, como o lugar de um insondável desejo, como se um desejo opaco estivesse emanando dele ou dela. O outro não apenas se endereça a mim com um enigmático desejo, ele também me confronta com o fato de que eu mesmo não sei o que eu realmente desejo, com o enigma de meu próprio desejo. Para Lacan, que aqui segue Freud, essa dimensão abissal do outro ser humano, o abismo da profundidade de outro ser humano, sua total impenetrabilidade – primeiro encontra sua inteira expressão no judaísmo com sua injunção de amar seu próximo como a si mesmo. Para Freud assim como para Lacan, essa injunção é profundamente problemática na medida em que ofusca o fato de que, sob o próximo como minha imagem-espelho, este que é semelhante a mim, com quem eu posso simpatizar, sempre se esconde aí o insondável abismo da Alteridade radical, de alguém sobre quem eu afinal não sei nada – posso realmente confiar nele? Quem é ele? Como estarei seguro de que suas palavras não são um mero pretexto? Em contraste com a atitude New Age que afinal reduz meus próximoss a minhas imagens-espelho ou aos meios no caminho de minha auto-realização (como no caso na psicologia jungiana em que as outras pessoas que me cercam são afinal reduzidas a externalizações-projeções dos aspectos rejeitados de minha própria personalidade), o judaísmo inicia uma tradição na qual um cerne traumático estranho persiste para sempre em meu próximo – o próximo permanece uma inerte, impenetrável, enigmática presença que me histericiza. O âmago dessa presença, é claro, é o desejo do próximo, um enigma não apenas para nós, mas também para ele próprio. Por essa razão, o Che vuoi? de Lacan não é simplesmente um questionamento como o de “O que você quer?”, mas, mais ainda, um questionamento como “O que está enlouquecendo você? O que é isso em você que te faz tão insuportável não apenas para nós, mas também para você mesmo, que você mesmo obviamente não domina?”

A tentação a se resistir aqui é a domesticação ética do próximo – por exemplo, o que Emmanuel Levinas fez com sua noção de próximo como o abissal ponto do qual emana a chamada para a responsabilidade ética. O que Levinas ofusca é a monstruosidade do próximo, monstruosidade em conseqüência da qual Lacan aplica ao próximo o termo Coisa (das Ding), usado por Freud para designar o objeto derradeiro de nossos desejos em sua insuportável intensidade e impenetrabilidade. Dever-se-ia ouvir nesse termo todas as conotações da ficção de terror: o próximo é a Coisa (Má) que potencialmente se esconde sob cada afável rosto humano. Pensemos apenas em O iluminado* de Stephen King, em que um pai, um modesto escritor falido, gradualmente torna-se uma besta assassina que, com um sorriso maléfico, persegue toda sua família para massacrá-la. Não admira, então, que o judaísmo seja também a religião da Lei divina que regula as relações entre as pessoas: essa Lei é estritamente correlativa ao surgimento** do próximo como uma Coisa atroz. Ou seja, a função derradeira da Lei não é nos permitir não esquecer o próximo, manter-nos próximos dele, mas, ao contrário, manter o próximo a uma distância apropriada, para servir como um muro de proteção contra a monstruosidade do próximo. Como Rainer Maria Rilke pôs em seu The Notebooks of Malte Laurids Brigge:
Há uma criatura que é perfeitamente inofensiva; quando ela passa diante de seus olhos, você dificilmente a nota e imediatamente a esquece de novo. Mas, tão logo ela, de alguma maneira, invisivelmente, penetra seus ouvidos, ela começa a se desenvolver, ela choca, e são conhecidos casos em que ela penetrou no cérebro e floresceu devastadoramente, como os pneumococci nos cães nos conseguem entrar através do nariz... Essa criatura é Seu Próximo.

É por esta razão que se encontrar na posição de ser amado é tão violento, traumático até: ser amado me faz sentir diretamente a fissura entre o que eu sou como um ser determinado e o insondável X em mim que causa amor. A definição de amor de Lacan (“Amar é dar o que não se tem...”) tem que ser suplementada com: “... para alguém que não quer.” Isto não é confirmado por nossa experiência mais elementar quando alguém inesperadamente declara estar nos amando apaixonadamente? A primeira reação, anterior à possível resposta positiva, é que algo obsceno, intrusivo, está sendo forçado sobre nós. Na metade de 21 Grams, Paul, que está morrendo devido a um enfraquecimento do coração docemente declara seu amor a Cristina, que está traumatizada devido à morte recente de seu marido e de dois filhos jovens; quando eles se encontram uma outra vez, Cristina explode em uma reclamação sobre a natureza violenta da declaração de amor:
“Você sabe, você me deixou pensando o dia todo. Eu não pude falar com ninguém por meses e eu mal te conheço e já preciso falar com você... E isto é algo que quanto mais eu penso menos eu entendo: por que, diabos, você me disse que gostava de mim? Responda-me, porque eu não gosto de maneira nenhuma de você dizendo isso. Você não pode ir até uma mulher e dizer a ela que você gosta dela. V-o-c-ê-n-ã-o-p-o-d-e. Você não sabe o que ela passou, o que ela sente. Eu não sou casada, você sabe. Eu não sou tudo nesse mundo. Eu tão somente não sou tudo.”3

Neste momento, Cristina ergue suas mãos e desesperadamente começa a beijá-lo na boca; assim, não é que ela não goste dele e não o deseje sexualmente. O problema para ela foi, ao contrário, é que ela queria isso – o sentido de sua reclamação foi: que direito tem ele de inflamar seu desejo? É a partir desse abismo do Outro como Coisa que podemos entender o que Lacan quis dizer com o que chamou de “palavra fundadora”, enunciação que confere à pessoa algum título simbólico fazendo dela o que se declara que ela é, constituindo sua identidade simbólica: “Você é minha esposa, meu mestre...”. Essa noção é comumente percebida como um eco da teoria dos performativos, dos atos de fala que cumprem no mesmo ato de sua enunciação o estado de coisas que eles declaram (quando eu digo “Esta sessão está encerrada”, eu então, efetivamente, fecho a sessão.)4 Está claro, porém, que nesta passagem que abre esse capítulo que Lacan almeja algo mais. Performativos são, em seu sentido mais fundamental, atos de confiança e engajamento simbólico: quando eu digo a alguém “Você é meu mestre!”, eu me obrigo a tratá-lo de uma certa maneira e, no mesmo movimento, eu o obrigo a tratar-me de uma certa maneira. O ponto de Lacan é que necessitamos recorrer à performatividade, ao engajamento simbólico, precisamente e apenas na medida em que o outro que nós confrontamos não é apenas meu duplo-espelho, alguém como eu, mas também o indistinto Outro absoluto que afinal permanece um insondável mistério. A principal função da ordem simbólica com suas leis e obrigações é tornar nossa coexistência com os outros minimamente tolerável: um Terceiro tem que intervir entre mim e meus próximoss para que nossas relações não terminem por explodir em violência assassina.
Voltando aos anos 1960’, a era do “estruturalismo” (teorias baseadas na noção de que toda atividade humana é regulada por mecanismos simbólicos inconsciente, Louis Althusser lançou a notória fórmula do “anti-humanismo teorético” permitindo, exigindo até, que ele seja complementado pelo humanismo prático. Em nossa prática, nós deveríamos atuar como humanistas, respeitando os outros, tratando-os como pessoas livres com total dignidade, como criadores de seu mundo. Contudo, em teoria, deveríamos sempre ter me mente que o humanismo é uma ideologia, a maneira como nós espontaneamente experimentamos nossas dificuldades, e que o verdadeiro conhecimento dos humanos e de sua história não deveria tratar os indivíduos como sujeitos autônomos, mas como elementos em uma estrutura que segue suas próprias leis. Em contraste com Althusser, Lacan afirma que nós reconhecemos o anti-humanismo prático, e a ética que ultrapassa o que Nietzsche denominou “humano, demasiado humano”, e confronta o desumano cerne da humanidade. Isso significa uma ética que destemidamente leva em conta a monstruosidade latente do ente-humano, a dimensão diabólica que explodiu em fenômenos freqüentemente cobertos pelo nome-conceito de “Auschwitz”.
Talvez o melhor caminho para descrever o status dessa dimensão desumana do próximo seja referirmo-nos à filosofia de Kant. Em seu Crítica da razão pura, Kant introduziu uma distinção chave entre julgamento negativo e indefinido: o enunciado afirmativo ‘a alma é mortal’ pode ser negado de duas maneiras. Podemos, ou negar o predicado (‘a alma não é mortal’), ou afirmar um não-predicado (‘a alma é não-mortal’). A diferença a mesma que, reconhecida por cada leitor de Stephen King, entre ‘ele não está morto’ e ‘ele está não-morto’. O julgamento indefinido abre um terceiro domínio que mina a distinção entre morto e não-morto (vivo): o não-morto não está nem vivo nem morto, eles são precisamente os monstruosos ‘mortos-vivos’. E o mesmo vale para ‘desumano’: ‘ele não é humano’ não é o mesmo que ‘ele é desumano’. ‘Ele não é humano’ significa simplesmente que ele é exterior à humanidade, animal ou divino, enquanto que ‘ele é desumano’ significa algo rigorosamente diferente, nomeadamente, que ele não é nem humano nem desumano, mas marcado por um aterrorizante excesso que, embora negue o que entendemos por humanidade, é inerente ao ente-humano. E, talvez, poderíamos arriscar a hipótese de que isto é o que muda com a revolução filosófica kantiana: no universo pré-kantiano, humanos eram simplesmente humanos, seres de razão combatendo os excessos de desejo animal e loucura divina, enquanto que, com Kant, o excesso a ser combatido é imanente e diz respeito ao cerne da própria subjetividade. (Que é o motivo de, no idealismo alemão, a metáfora para o âmago da subjetividade é a Noite, a ‘Noite do Mundo’, em contraste com a noção iluminista de Luz da Razão combatendo a escuridão circundante.) No universo pré-kantiano, quando um herói enlouquece, ele é destituído de sua humanidade e as paixões animais ou loucura divina tomam lugar. Com Kant, a loucura sinaliza a explosão incontida do próprio âmago do ser humano.

Como evitamos o impacto traumático do ser tão diretamente exposto a esse aterrorizante abismo do outro? Como poderemos lidar com a ansiedade-provocação do encontro com o desejo do outro? Para Lacan, a fantasia fornece uma resposta ao enigma do desejo do Outro. A primeira coisa a notar sobre a fantasia é que ela literalmente no ensina como desejar: fantasia não significa que, quando eu desejo uma torta de morango e não posso obtê-la, eu fantasie come-la; o problema é, antes, como eu sei, em primeiro lugar, que desejo uma torta de morango? É isso que a fantasia me conta. Este papel da fantasia depende do impasse de nossa sexualidade designada por Lacan em seu enunciado paradoxal “não há relação sexual”: não há garantia universal de uma relação sexual harmoniosa com um parceiro. Cada sujeito tem que inventar sua própria fantasia, uma fórmula “privada” para a relação sexual – a relação com uma mulher é possível apenas na medida em que o parceiro adapta sua fórmula.

Há alguns anos, feministas eslovenas reagiram com grande protesto a um pôster publicitário de uma grande indústria de cosméticos de filtro solar, representando uma série de traseiros femininos bem bronzeados em justos biquínis, cujo texto era “Cada uma tem seu próprio fator”. Essa propaganda, é claro, se baseava em um duplo sentido um tanto vulgar: o texto aparentemente se referia ao filtro solar, o qual era oferecido aos consumidores com diferentes fatores de proteção para proteger diferentes tipos de pele; no entanto, todo o seu efeito estava baseado em sua óbvia leitura falocrática: “Toda mulher pode ser possuída, se apenas o homem conhece seu fator, seu jeito específico, o que a excita!” O ponto de vista freudiano é de que cada sujei, macho ou fêmea, possui algo como um “fator” que regula seu desejo: “uma mulher, vista por trás, de quatro” foi o “fator” do Homem dos lobos, o mais famoso paciente de Freud; uma estátua representando uma mulher, sem pelos púbicos, foi o fator de John Ruskin. Não há nada edificante em relação à nossa consciência desse fator: ele é estranho, aterrorizante até, desde que é algo que despoja o sujeito, transformando-o em uma marionete, como o nível além da dignidade e liberdade.

Porém, a coisa a acrescentar imediatamente é que o desejo encenado na fantasia não é do próprio sujeito, mas do desejo do outro, o desejo daqueles que me cercam e com quem eu interajo: a fantasia, a cena ou cenário fantasmático é uma resposta a “Você está dizendo isso, mas o que você realmente quer dizendo isso?” A pergunta original do desejo não é diretamente “O que eu quero?”, mas “O que os outros querem de mim? O que eles vêem em mim? O que eu sou para os outros?” Uma criança pequena está encaixada em uma complexa rede de relações, ela serve como uma espécie de catalisador e campo de batalha para os desejos daqueles que a cercam; seu pai, sua mãe, irmãos e irmãs, tios e tias, que lutam suas batalhas em torno dela, sua mãe que envia uma mensagem para o pai através de seus cuidados com o filho. Mesmo sendo bem ciente deste papel, a criança não pode entender o que, precisamente, o objeto que ela é para os outros, qual a exata natureza dos jogos que estão jogando com ela. A fantasia oferece uma resposta a esse enigma: fundamentalmente, a fantasia nos conta o que eu sou para os meus outros. Este caráter intersubjetivo da fantasia é discernível até nos casos mais elementares, como aquele, exposto por Freud, de sua pequena filha fantasiando comer uma torta de morangos: o que temos aqui não é absolutamente o simples caso da satisfação de um desejo alucinatória direta (ela queria uma torta, não obteve, então ela fantasiou). O aspecto crucial é que, enquanto vorazmente comia uma torta de morango, a garotinha notou como seus pais estavam tão profundamente satisfeitos por vê-la aproveitar tanto. Aquilo a que a fantasia de comer uma torta de morango realmente estava relacionada era à tentativa de formar como uma identidade (de quem aproveita completamente comer uma torta dada pelos pais) que poderia satisfazer seus pais e fazer dela o objeto de seu desejo. 

Na medida em que a sexualidade é o domínio no qual mais nos aproximamos da intimidade do outro ser humano, expondo-nos totalmente a ele, o gozo sexual é real para Lacan: algo traumático em sua vertiginosa intensidade, algo impossível no sentido de que não podemos apreendê-lo. Este é o motivo pelo qual uma relação sexual, para funcionar, tem que ser projetada através de alguma fantasia. Lembremos o encontro amoroso entre Sarah Miles e seu amante proibido, o oficial inglês, em Ryan's Daughter de David Lean: a representação do ato sexual no meio da floresta, com sons de cachoeira supostamente traduzindo sua paixão contida não pode mais hoje a não ser nos chocar como um ridículo amontoado de clichês. No entanto, o papel do patético acompanhamento sonoro é profundamente ambíguo: em vez de enfatizar o êxtase do ato sexual, esses sons, em certo sentido, desconhecem o ato e nos levam ao opressor peso de sua presença maciça. Uma pequena experiência mental é suficiente para esclarecer esse ponto: vamos imaginar que, em meio à tão patética representação do ato sexual, a música poderia subitamente ser cortada, e tudo o que restaria seriam gestos abruptos, rápidos, seu doloroso silêncio interrompido por ocasionais estrépitos e gemidos, compelindo-nos a confrontar a presença inerte do ato sexual. Em suma, o paradoxo da cena de Ryan's Daughter é que o próprio som da cachoeira funciona como a tela fantasmática ofuscando o Real do ato sexual.

O canto da Internacional em Reds joga exatamente o mesmo papel da cachoeira em Ryan’s Daughter: o papel da tela fantasmática que nos permite que nos permite sustentar o Real do ato sexual. Reds integra a Revolução de Outubro, o mais traumático evento histórico para Hollywood, dentro do universo de Hollywood, encenando-o como o fundo metafórico para os personagens principais do filme, John Reed (interpretado pelo próprio Beatty) e sua amante (Diane Keaton). No filme, a Revolução de Outubro acontece imediatamente depois de uma crise em seu relacionamento. Ao proferir um feroz discurso revolucionário para a multidão excitada, Beatty cativa Keaton; eles trocam olhares desejosos, e os lamentos da multidão servem como uma metáfora para a explosão de paixão reiterada. As cenas míticas cruciais da revolução (manifestações nas ruas, o assalto ao Palácio de Inverno) se alternam com a representação do casal fazendo amor, contra o fundo da multidão cantando a Internacional. As cenas da massa funcionam como metáforas vulgares do ato sexual: quando a massa lúgubre se aproxima e cerca o fálico trem, não é uma metáfora para Keaton que, no ato sexual, desempenha o papel ativo, ficando em cima de Beatty? Aqui, temos o exato oposto do realismo socialista soviético, na qual os amantes experimentam seu amor como uma contribuição para a luta pelo socialismo, fazendo uma promessa de sacrificar todos os seus prazeres privados para o sucesso da revolução e dissolvendo a si próprios nas massas: em Reds, ao contrário, a própria revolução aparece como uma metáfora do bem sucedido encontro sexual.

A sabedoria popular, usualmente atribuída à psicanálise, sobre a sexualidade como a referência universal escondida atrás de toda atividade – o que quer que façamos, estamos “pensando nisso” – é aqui invertida: é o próprio sexo real que, a fim de ser palatável, tem que ser sustentado pela tela assexuada da Revolução de Outubro. Em lugar do proverbial “Feche os olhos e imagine a Inglaterra!”, nós temos: “Feche os olhos e imagine a Revolução de Outubro!” É a mesma lógica dos nativos de uma tribo nativa americana que descobriram que todos os sonhos têm um significado sexual oculto – todos, exceto aqueles explicitamente sexuais: aqui, precisamente, deve-se buscar outro sentido. (Em seus diários secretos recentemente descobertos, Wittgenstein reporta que, enquanto se masturbava no front durante a Iª Guerra Mundial, ele pensava em problemas matemáticos.) E é assim também, com o efeito, com o suposto sexo real: ele também necessita de uma tela fantasmática. Qualquer contato com um outro real, de carne e osso, qualquer prazer sexual que encontramos tocando outro ser humano, não é alguma coisa evidente, mas algo inerentemente traumático, e pode ser sustentado apenas na medida em que este outro entra no quadro da fantasia do sujeito.

O que é, então, a fantasia em seu mais elementar? O paradoxo ontológico, escandaloso até, da fantasia, reside no fato de que ela subverte a oposição corrente de “subjetivo” e “objetivo”: a fantasia, claro, é por definição não objetiva (em referência a algo que existe independente das percepções do sujeito); contudo, é também algo não subjetiva (algo que pertence às intuições conscientemente experimentadas pelo sujeito, o produto de sua imaginação). A fantasia pertence, melhor dizendo, à “bizarra categoria do objetivamente subjetivo – a maneira como as coisas efetivamente, objetivamente parecem pra você ainda que elas não pareçam dessa maneira pra você.”5 Quando, por exemplo, reclamamos que alguém é conscientemente bem intencionado em relação aos judeus, guardando contudo profundos preconceitos antisemitas dos quais ele não é deliberadamente consciente, nós não reclamamos que (na medida em que esses preconceitos não traduzem a maneira como os judeus realmente são, mas a maneira como eles aparecem para ele) que ele não é consciente da maneira como os judeus aparecem para ele? Em março de 2003, Donald Rumsfeld lançou-se em um pouco de filosofia amadora sobre a relação entre o conhecido e o desconhecido: “Há conhecidos conhecidos. Estas são coisas que nós sabemos que sabemos. Há desconhecidos conhecidos. Quer dizer, há coisas que sabemos que não conhecemos. Mas há também desconhecidos desconhecidos. Estas são coisas que nós não sabemos que não sabemos.” O que ele esqueceu de acrescentar foi o crucial quarto termo: os “conhecidos desconhecidos”, coisas que nós não sabemos que conhecemos – que é precisamente o inconsciente freudiano, o “saber que não se sabe”, como Lacan costumava dizer, o cerne do que é a fantasia. Se Rumsfeld pensa que o principal perigo no confronto com o Iraque são os “desconhecidos desconhecidos”, as ameaças de Saddam sobre o que nós nem suspeitamos sobre o que eles possam ser, o que poderíamos responder é que o perigo principal são, ao contrário, os “conhecidos desconhecidos”, as crenças e suposições negadas que nós nem mesmo estamos cientes de aderir a elas, mas que determinam contudo nossos atos e sentimentos.

Esta também é uma das maneiras de especificar o sentido da alegação de Lacan de que o sujeito é sempre “descentrado”. A questão para ele não é que minha experiência subjetiva é regulada por mecanismos inconscientes objetivos que são descentrados em relação à experiência do meu self e, como tal, além do meu controle (um ponto afirmado por todo materialista), mas, até mesmo, algo muito mais inquietante: eu sou destituído até de minha experiência subjetiva mais íntima, a maneira como as coisas “realmente parecem pra mim”, que é a fantasia fundamental que constitui e garante o cerne do meu ser, desde que eu nunca a vivencio e a assumo conscientemente.

De acordo com a perspectiva corrente, a dimensão que é constitutiva da subjetividade é a da (auto)experiência fenomenal: Eu sou um sujeito no momento em que posso dizer a mim mesmo “não importa que mecanismos desconhecidos governam meus atos, percepções e pensamentos, ninguém pode me tirar o que eu vejo e sinto agora”. Ou seja, quando eu estou perdidamente apaixonado e um bioquímico me informa que todos os meus sentimentos intensos são apenas resultado de processos bioquímicos em meu corpo, eu posso responder-lhe apegando-me à aparência: “Tudo que você está dizendo pode ser verdade, mas, no entanto, nada pode me tirar a intensidade da paixão que eu estou vivenciando agora...” O ponto para Lacan, contudo, é que o psicanalista é aquele que, precisamente, pode tirar isso do sujeito: o alvo derradeiro do analista é despojar o sujeito da mesma fantasia fundamental que regula o universo de sua (auto)experiência. O sujeito freudiano do inconsciente emerge apenas quando um aspecto chave da (auto)experiência do sujeito (sua fantasia fundamental) torna-se inacessível a ele, primordialmente reprimida. No limite, o inconsciente é o fenômeno inacessível, não o mecanismo objetivo que regula minha experiência fenomenal. Então, em contraste com o chavão de que estamos lidando com um sujeito no instante em que um ente manifesta sinais de vida interior (de uma experiência fantasmática que não pode ser reduzida ao comportamento exterior), poder-se-ia afirmar que o que caracteriza propriamente a subjetividade humana é, sobretudo, a fissura que separa os dois, nomeadamente, o fato de que a fantasia, de maneira mais elementar, torna-se inacessível ao sujeito. É esta inacessibilidade que torna o sujeito “vazio”, como colocou Lacan.

Nós obtemos então uma relação que subverte totalmente a noção corrente do sujeito que experiencia a si mesmo por meio de seus estados internos: uma estranha relação entre o sujeito vazio, não fenomenal, e os fenômenos que permanecem inacessíveis ao sujeito. Em outras palavras, a psicanálise nos permite formular uma fenomenologia paradoxal sem um sujeito – surgem fenômenos que não são fenômenos de um sujeito, aparecendo para um sujeito. Isso não significa que o sujeito não está envolvido – isto é, salvo, precisamente, à maneira de exclusão, como dividido, como o agenciamento que não é capaz de assumir o próprio cerne de sua experiência interior.

É precisamente esse estado paradoxal da fantasia que nos leva à questão derradeira da irreconciliável diferença entre psicanálise e feminismo, como em relação ao estupro (e às fantasias masoquistas que o sustentam). Para o feminismo corrente, o estupro é, afinal, uma violência imposta de fora: ainda que uma mulher fantasie sobre ser estuprada ou brutalmente maltratada é porque, ou é uma fantasia masculina sobre a mulher ou as mulheres o fazem na medida em que “internalizam” a economia libidinal patriarcal e endossam sua vitimização – sendo a idéia subjacente que no momento em que reconhecemos esta realidade da fantasia sobre estupro, nós abrimos a porta para os chavões machistas sobre como, em sendo estuprada, as mulheres apenas têm o que elas secretamente querem, e seu choque e medo apenas expressam o quanto elas não foram honestas o bastante para admitir isso. Assim, no momento em que alguém menciona que uma mulher pode fantasiar sobre ser estuprada, alguém houve bradar: ‘Isso é como dizer que os judeus fantasiam com ser asfixiados com gás nos campos ou que afroamericanos fantasiam sobre ser linchados!’ Dessa perspectiva, a posição histérica dividida da mulher (reclamando sobre ser abusada sexualmente e explorada enquanto que simultaneamente desejando e provocando o homem para seduzi-la) é secundária, enquanto que, para Freud, essa divisão é primária, constitutiva da subjetividade.

A conclusão prática disso é que, enquanto (algumas) mulheres efetivamente podem fantasiar ser estupradas, este fato de maneira alguma legitima o estupro efetivo – ele o torna ainda mais violento. Tomemos duas mulheres, a primeira liberada e confiante, ativa; a outra, secretamente sonhadora a respeito de ser brutalmente tratada por seu parceiro, até mesmo estuprada. O ponto crucial é que, se ambas são estupradas, o estupro será muito mais traumático para a segunda, pelo fato de que ela irá realizar na realidade social “externa” o “conteúdo de seus sonhos”. Há uma fissura que sempre separa o cerne fantasmático do ser do sujeito dos modos mais superficiais de suas identificações simbólicas ou imaginárias. Nunca é possível eu assumir inteiramente (no sentido de integração simbólica) o cerne fantasmático de meu ser: quando eu me aproximo demais dele, quando chego perto demais dele, o que ocorre é o que Lacan chamou de aphanasis (a auto-obliteração) do sujeito: o sujeito perde sua consistência simbólica, ela desintegra. E, talvez, a passagem ao ato forçada para a própria realidade social do cerne fantasmático de meu ser seja o pior, mais humilhante tipo de violência, uma violência que mina as próprias bases da minha identidade (de minha autoimagem).6 Conseqüentemente, o problema com o estupro, na perspectiva de Freud, é que ele produz tal impacto traumático não simplesmente porque ele é causa de uma violência externa brutal, mas também porque toca em algo que é negado na própria vítima. Então quando Freud escreve ‘Se o que /os sujeitos/ buscam mais intensamente em suas fantasias é apresentado a eles na realidade, eles, contudo, fogem disso’7, seu ponto não é meramente que isso ocorre por causa da censura, mas, sobretudo, porque o cerne de nossa fantasia é insuportável pra nós.

Faz alguns anos, uma encantadora propaganda de cerveja foi exibida na tv britânica. Sua primeira parte encena o conhecido conto de fadas: uma moça caminha à margem de um riacho, vê um sapo, coloca-o gentilmente em seu colo, beija-o e, claro, o horroroso sapo miraculosamente transforma-se em um belo rapaz. Contudo, a história não termina aí: o rapaz lança um olhar cobiçoso para a moça puxando-a para junto de si e, então, a beija – e ela se transforma em uma garrafa de cerveja que ele segura triunfantemente nas mãos. Para a mulher, a questão é que seu amor e afeição (assinalados pelo beijo) transforma o sapo em um belo rapaz, uma presença fálica plena; para o homem, a mulher se reduz ao objeto parcial, à causa de seu desejo (o objet petit a). Por causa dessa assimetria, não há relação sexual: nós temos ou uma mulher com um sapo ou um homem com uma garrafa de cerveja. O que nunca podemos obter é o belo casal normal de um homem e uma mulher: o suporte fantasmático desse casal ideal teria que ser a figura de um sapo abraçando uma garrafa de cerveja – uma inconsistente figura que, no lugar de garantir a harmonia da relação sexual, torna palpável sua ridícula discordância.8 Isto abre caminho para que se possa minar o domínio que a fantasia exerce sobre nós através da própria sobreidentificação com ela: abraçando simultaneamente, dentro do mesmo espaço, a multidão de elementos fantasmáticos inconsistentes. Ou seja, cada um dos dois sujeitos está envolvido em sua própria elucubração de fantasia – a moça fantasia sobre um sapo que é na verdade um rapaz, o rapaz com uma moça que é, na verdade, uma garrafa de cerveja. O que a arte e os textos modernos opõem a isso não é a realidade objetiva, mas a fantasia subjacente “objetivamente subjetiva” que os dois sujeitos nunca são capazes de assumir, algo semelhante a uma pintura ao estilo de Magritte de um sapo abraçado a uma garrafa de cerveja, com o título “Um homem e uma mulher” ou “O casal ideal”. (A associação com o famoso surrealista “asno morto em um piano” é aqui inteiramente justificada, na medida em que os surrealistas também praticaram tal sobreidentificação com fantasias inconsistentes.) E não é esta a dívida ética do artista atual – confrontando-nos com um sapo abraçado com uma garrafa de cerveja quando estamos divagando sobre estar abraçados com nosso ser amado? Em outras palavras, encenar fantasias que são radicalmente dessubjetivadas, que não podem ser assumidas pelo sujeito?

Isso nos leva a uma complicação crucial adicional: se o que nós vivenciamos como ‘realidade’ é estruturado pela fantasia, e se a fantasia serve como a tela que nos protege de sermos esmagados pelo Real cru, então a própria realidade pode funcionar como uma fuga do encontro com o Real. Na oposição entre sonho e realidade, a fantasia está do lado da realidade, e é nos sonhos que encontramos o Real traumático – não é que os sonhos sejam para aqueles que não podem suportar a realidade, é a própria realidade que é para aqueles que não podem enfrentar (o Real que se anuncia em) seus sonhos. Essa é a lição que tira Lacan do famoso sonho, descrito por Freud em seu A interpretação dos sonhos, do pai que cai no sono enquanto guarda o caixão de seu filho; em seu sonho, seu filho morto aparece para ele, pronunciando o terrível apelo ‘Pai, não vês que eu estou queimando?’ Quando o pai desperta, descobre que a mortalha do caixão de seu filho está pegando fogo, por causa de uma vela acesa que caiu. Por que, então, o pai despertou? Foi porque o cheiro da fumaça tornou-se forte demais, assim não foi mais possível prolongar o sono no sentido de incluí-la em um sonho improvisado? Lacan propõe uma leitura muito mais interessante:
Se a função do sonho é prolongar o sono, se o sonho, afinal, pode chegar tão perto da realidade que o causa, nós podemos dizer que ele pode corresponder a essa realidade sem emergir do sono? Afinal, há a atividade sonambúlica. A questão que surge, e que de fato todas as indicações anteriores de Freud nos permitem produzir é – O que é que desperta aquele que dorme? Não é, no sonho, outra realidade? – a realidade que Freud descreve assim - Dass das Kind an seinem Bette steht, que a criança está perto de sua cama, ihn am Arme fasst, toma-o pelo braço e lhe sussurra reprovando-o, und ihm vorwurfsvoll zuraunnnt: Vater, siehst du denn nicht, Pai, não vês, dass ich verbrenne, que eu estou queimando?

Não há mais realidade nessa mensagem do que no ruído pelo qual o pai também identifica a estranha realidade do que está acontecendo no quarto ao lado? Não é a realidade faltosa que causou a morte da criança expressa nessas palavras?9
Assim, não foi a intrusão de um sinal da realidade externa que despertou o pai desafortunado, mas o insuportavelmente traumático caráter do que ele encontrou no sonho – na medida em que ‘sonhar’ significa fantasiar no sentido de evitar o confronto com o Real, o pai literalmente despertou para que pudesse continuar sonhando. O cenário foi o seguinte: quando seu sono foi perturbado pela fumaça, o pai rapidamente construiu um sonho que incorporava o elemento perturbador (fumaça-fogo) com o intuito de prolongar seu sono; contudo, aquilo com que ele se confrontou no sonho foi um trauma (de sua responsabilidade pela morte do filho) muito mais pungente do que a realidade, então ele despertou na realidade para evitar o Real.
Em arte contemporânea, encontramos várias tentativas brutais de ‘retorno ao Real’, de lembrar o espectador (ou leitor) de que ele está percebendo uma ficção, de despertá-lo de seu sonho doce. Este gesto tem duas principais formas que, ainda que opostas, resultam no mesmo. Em literatura ou no cinema, há (especialmente em textos pós-modernos) memórias auto-reflexivas que o que vemos são mera ficção, como os atores na tela dirigindo-se diretamente a nós espectadores, arruinando assim a ilusão de um espaço autônomo da ficção narrativa, ou o escritor intervindo diretamente na narrativa através de comentários irônicos; no teatro, há ocasionais eventos brutais que nos despertam para a realidade do palco (como abater uma galinha no palco). No lugar de conferir a esses gestos um tipo de dignidade brechtiana, percebendo-os como versões de estranhamento, poder-se-ia até mesmo denunciá-los pelo que eles são: o exato oposto do que eles reivindicam ser – fugas do Real, tentativas desesperadas de evitar o real da própria ilusão, sob o disfarce de um espetáculo ilusório.

O que confrontamos aqui é a ambigüidade fundamental da noção de fantasia: enquanto que a fantasia é a tela que nos protege do encontro com o Real, a própria fantasia, fundamentalmente – o que Freud chamou de “fantasia fundamental”, que provê as coordenadas mais fundamentais da capacidade de desejar do sujeito – não pode ser subjetivada, e tem que permanecer reprimida para ser operativa. Relembrando De olhos bem fechados de Stanley Kubrick, a aparentemente vulgar conclusão do filme, quando, depois de Tom Cruise confessar sua aventura noturna a Nicole Kidman e ambos serem confrontados com o excesso de sua fantasia, Kidman – a respeito de eles agora estarem inteiramente despertos, de volta ao dia, e que, se não para sempre, em todo caso por um bom tempo, eles estarão aí, mantendo a fantasia à distância – lhe diz que eles devem fazer alguma coisa o quanto antes. “O quê?” ele pergunta, e sua resposta é: “Transar”. Fim do filme, créditos finais. A natureza da passage a l’act (“passagem ao ato”) como a falsa saída, como a maneira para evitar confrontar o horror do fantasmático mundo subterrâneo, não foi em nenhum momento tão abruptamente declarada no filme: longe de proporcionar-lhes uma vida real de satisfação material que tornaria supérfluo o vazio da fantasia, a passagem ao ato é apresentada como um expediente, como uma medida preventiva desesperada que visava manter a distância do espectral mundo subterrâneo das fantasias. É como se sua mensagem fosse: vamos transar o mais rápido possível para sufocar as fantasias que estão florescendo antes que elas nos afoguem de novo. A piada de Lacan sobre despertar dentro da realidade como uma fuga do real encontrado no sonho se sustenta melhor do que qualquer outra coisa a respeito do próprio ato sexual: nós não sonhamos a respeito de transar quando não somos capazes de faze-lo; nós, melhor dizendo, transamos para escapar e sufocar a natureza excessiva do sonho que poderia de outra maneira no esmagar. Para Lacan, a tarefa ética derradeira é a do despertar verdadeiro: não apenas do sono, mas do encantamento da fantasia que nos controla especialmente quando estamos despertos.

1 Lacan, J., The Seminar of Jacques Lacan, Book III: The Psychoses, London: Routledge 1981, p. 48.

2 Lacan, J., Écrits: A Selection, New York: W.W. Norton, 1981.

3 Guillermo Arriaga, 21 Grams, London: Faber and Faber 2003, p. 107.

4 O elo entre Lacan e J.L Austin, o autor da noção de performativo, foi Èmile Benveniste.

5 Daniel C. Dennett, Consciousness Explained, New York: Little, Brown and Company 1991, p. 132.

6 Esta é também a razão de porque os homens que estupram não fantasiam a respeito de estuprar mulheres – ao contrário, eles fantasiam sobre ser gentis, sobre encontrar uma parceira amorosa; o estupro é antes uma passage a l’acte emergindo de sua incapacidade de encontrar tal parceira na vida real.

7 Sigmund Freud, Dora: An Analysis of a Case of Hysteria, New York: Macmillan 1963, p. 101.

8 Claro que a óbvia questão feminista poderia ser que o que as mulheres testemunham em sua experiência amorosa cotidiana é até mesmo o contrário: beija-se um belo rapaz e, depois que se aproxima bastante dele, i.e., quando já é tarde demais, nota-se que ele é efetivamente um sapo.

9 Lacan, J., The Four Fundamental Concepts of Psycho-Analysis, Harmondsworth: Penguin Books 1979, p. 57-58.