O VIZINHO DE BURKA
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira
Em janeiro de 2010, Jean-François Copé, o líder no parlamento da Union Pour un Mouviment Populaire, o partido majoritário francês, propôs um projeto de lei que proibe o véu de corpo inteiro nas ruas francesas e em todos os outros lugares públicos. Este anúncio veio depois de seis meses de debate angustiante sobre a burka e seu equivalente árabe, o niqab, que cobre o rosto da mulher, exceto por uma pequena fenda para os olhos. Todos os principais partidos políticos expressaram sua rejeição à burka: o principal partido de oposição, o Parti Socialiste, disse que é “totalmente contrário à burka”, que equivale a uma “prisão para a mulher”. Os desacordos são de natureza puramente tática: embora o presidente Nicolas Sarkozy se oponha ao total banimento da burka como contraproducente, ele conclamou um “debate sobre a identidade nacional” em outubro de 2009, alegando que a burka é “conta a cultura francesa”. A lei multa em até 750 euros qualquer pessoa que aparecer em público “com seu rosto inteiramente ocultado”; isenções permitiriam o uso de mascaras em “ocasiões festivas, tradicionais”, como carnavais. Rígidas punições seriam estabelecidas para homens que “forçassem” suas esposas ou filhas a usar o véu de corpo inteiro. A ideia subjacente é que a burka ou niqab são contrários às tradições francesas de liberdade e às leis sobre os direitos das mulheres, ou, para citar Copé: “Nós podemos medir a modernidade de uma sociedade pela forma como trata e respeita as mulheres”. A nova legislação é, assim, destinada a proteger a dignidade e segurança das mulheres. Além disso, como disse Sarkozy, os véus “não são bem-vindos” porque, em um país secular como a França, eles intimidam e alienam os não-muçulmanos... não se pode deixar de notar como o supostamente universalista ataque à burka em nome dos direitos humanos e dignidade termina como uma defesa do modo de vida particular francês.
Essa lei, claro, deu origem a muitas críticas pragmáticas – o medo é que, se ela for implementada, irá aumentar a opressão das mulheres muçulmanas: elas simplesmente serão impedidas de sair de casa e serão ainda mais cortadas da sociedade, expostas ao tratamento cruel dos casamentos forçados, etc. Além disso, a multa irá exacerbar a questão da pobreza e do desemprego: ela irá punir as mesmas mulheres que provavelmente têm menos controle sobre seu próprio dinheiro. O problema é, contudo, mais fundamental – o que torna todo esse debate sintomático é, primeiro, o status marginal do problema: a nação inteira fala sobre isso, enquanto que o número total de mulheres que vestem ambos os tipos de véu de corpo inteiro na França está em torno de 2000, de um total de mulheres adultas muçulmanas na população francesa em torno de 1.500.000. (E, a propósito, a maioria das mulheres que veste o véu de corpo inteiro tem menos de 30 anos e parte substancial delas são mulheres francesas que se converteram). O próximo aspecto curioso é a ambiguidade da crítica à burka: ela se movimenta em dois níveis. Primeiro ela é apresentada como uma defesa da liberdade e dignidade da mulher muçulmana oprimida – não se pode aceitar que em uma França secular um grupo de mulheres tenha que viver uma vida escondida, isolada do espaço público, subordinadas à brutal autoridade patriarcal, etc. Não obstante, em geral o argumento se desloca em seguida para as ansiedades do próprio povo francês não muçulmano: os rostos cobertos pela burka não se ajustam às coordenadas da identidade e cultura francesas, eles “intimidam e alienam os não muçulmanos”... Algumas mulheres francesas até usam o argumento de que elas vivenciam o fato de alguém usar uma burka como sua própria humilhação, como uma brutal exclusão, rejeição do laço social.
Isso nos conduz ao verdadeiro enigma: por que o encontro com um rosto coberto por uma burka desencadeia tal ansiedade? Então um rosto coberto pela burka não é mais o rosto levinasiano, a Alteridade a partir da qual o apelo ético incondicional emana? Mas, e se o caso for o oposto? De uma perspectiva freudiana, o rosto é a máscara derradeira que esconde o horror do Próximo-Coisa: a face é o que faz do Próximo le semblable, um semelhante com quem podemos nos identificar e simpatizar. (Sem mencionar o fato de que hoje muitos rostos são cirurgicamente modificados e assim desprovidos dos últimos vestígios de autenticidade natural). Este é, então, o motivo pelo qual um rosto coberto cause tal ansiedade: porque ele nos confronta diretamente com o abismo do Outro-Coisa, com o Próximo em sua inquietante dimensão. O próprio encobrimento da face oblitera um escudo protetor, de modo que o Outro-Coisa nos olha diretamente (lembremos que a burka tem uma estreita abertura para os olhos: nós não vemos os olhos, mas sabemos que há uma mirada lá). Alphonse Allais apresentou sua própria versão da dança dos sete véus de Salomé: quando Salomé está completamente nua, Herodes grita “Continue! Vá!”, esperando ela tirasse também o véu de sua pele. Nós poderíamos imaginar algo semelhante com a burka: o oposto de uma mulher tirando sua burka e revelando seu rosto natural. E se dermos um passo além e imaginarmos uma mulher “tirando” a pele de seu próprio rosto, de modo que o que nós víssemos sob sua face fosse uma superfície anônima lisa e escura como uma burka com uma pequena abertura para o olhar? “Ama o teu próximo!” significa, da maneira mais radical, precisamente o impossível=real amor por esse sujeito dessubjetivado, por essa monstruosa mancha escura cortada por uma fenda/olhar... Este é o motivo de que, no tratamento psicanalítico, o paciente não fique face a face com o analista: ambos olham para um terceiro ponto, uma vez que é apenas esta suspenção da face que abre o espaço da dimensão apropriada do Próximo. E reside aí também o limite do conhecido tópico crítico-ideológico da sociedade do controle total onde somos o tempo todo monitorados e gravados – o que escapa ao olho da câmera não é algum segredo íntimo, mas o próprio olhar, o objeto-olhar como a ruptura/mancha no Outro.
Fonte do texto original: http://www.lacan.com/symptom11/?p=69