quinta-feira, 14 de maio de 2009

A lição de sabedoria das vacas loucas - Claude Lévi-Strauss

A Lição de Sabedoria das Vacas Loucas
Claude Lévi-Strauss
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


Para os ameríndios e a maior parte dos povos que permaneceram muito tempo sem escrita, o tempo dos mitos foi aquele onde os homens e os animais não eram realmente distintos uns dos outros e podiam comunicar-se entre si. Fazer com que os tempos históricos se iniciem com a torre de Babel, quando os homens perderam o uso de uma língua comum e pararam de se compreender, parecer-lhes-ia uma visão singularmente estreita das coisas. Esse fim de uma harmonia se produziu, segundo eles, sobre uma cena muito mais vasta; ela afligiu não apenas seres humanos, mas todos os seres vivos.

Hoje ainda, dir-se-ia que nós permanecemos confusamente conscientes dessa solidariedade primeira entre todas as formas de vida. Nada nos parece mais urgente do que imprimir, desde o nascimento ou quase, o sentimento dessa continuidade no espírito de nossas crianças. Nós os rodeamos de simulacros de animais de borracha ou de pelúcia, e os primeiros livros de imagens que nós lhes colocamos sob os olhos lhes mostram, bem antes que elas os encontrem, o urso, o elefante, o cavalo, o asno, o cachorro, o gato, o galo, a galinha, o camundongo, o coelho, etc.; como se fosse preciso, desde a mais tenra idade, lhes dar a nostalgia de uma unidade que eles saberão logo superada.

Não surpreende que matar seres vivos para deles se nutrir coloque aos humanos, estejam eles conscientes ou não, um problema filosófico que todas as outras sociedades tentaram resolver. O Antigo Testamento faz disso uma conseqüência indireta da queda. No jardim do Éden, Adão e Eva se alimentavam de frutas e grãos (Gênese, I, 29). É somente a partir de Noé que o homem se torna carnívoro (IX, 3). É significativo que essa ruptura entre o gênero humano e os outros animais preceda imediatamente a história da torre de Babel, quer dizer, a separação dos homens uns dos outros, como se esta fosse uma conseqüência ou um caso particular daquela.

Essa concepção faz da alimentação carnívora um tipo de enriquecimento do regime vegetariano. Por sua vez, alguns povos sem escrita vêem aí uma forma de pena atenuada do canibalismo. Eles humanizam a relação entre o caçador (ou o pescador) e sua presa concebendo-a sob o modelo de uma relação de parentesco: entre os unidos por casamento ou, mais diretamente ainda, entre cônjuges (assimilação facilitada pelo que todas as línguas do mundo, e mesmo as nossas em expressões argóticas, fazem entre o ato de comer e o de copular). A caça e a pesca aparecem assim como um gênero de endocanibalismo.

Outros povos, às vezes também os mesmos, julgam que a quantidade total de vida existente em cada momento no universo deve sempre estar em equilíbrio. O caçador ou o pescador que, por subtraírem uma fração da vida existente, deveram, se podemos dizer, reembolsá-la a expensas de sua própria esperança de vida; uma outra maneira de ver na alimentação carnívora uma forma de canibalismo: autocanibalismo desta vez, posto que, segundo essa concepção, come-se a si mesmo acreditando-se comer um outro.

Há cerca de três anos, a propósito da epidemia chamada de vaca louca, que não era então tão atual quanto hoje, eu explicava aos leitores de La Republica em um artigo (“Siamo tutti canibali” 10-11 de outubro de 1993) que as patologias vizinhas das quais o homem era às vezes vítima – Kuru na Nova-Guiné, casos novos da doença de Creutzfeldt-Jacob na Europa (resultantes da administração de extratos de cérebros humanos para tratar problemas de crescimento) – estavam ligados a práticas que dizem respeito ao sentido próprio do canibalismo donde seria necessário alargar a noção para poder aí incluir todas as outras. E eis que no presente se nos ensinam que a doença da mesma família que atinge as vacas em vários países europeus (e que oferece risco mortal para o consumidor) se transmite por farinhas de origem bovina com as quais se alimenta o gado. Ela resultou então de sua transformação pelo homem em canibais, sobre um modelo que não é, aliás, sem precedente na história. Textos de época afirmam que durante as guerras de Religião que ensangüentaram a França no século XVI, os parisienses esfomeados foram obrigados a se alimentar de pão feito à base de farinha feita de ossos humanos que eram extraídos das catacumbas para serem moídos.
A ligação entre a alimentação carnívora e um canibalismo ampliado até lhe dar uma conotação universal tem, assim, no pensamento, raízes muito profundas. Isso passa para o primeiro plano com a epidemia das vacas loucas posto que ao medo de contrair uma doença mortal se junta o horror que nos inspira tradicionalmente o canibalismo estendido agora aos bovinos. Condicionados desde a primeira infância, ficamos certamente carnívoros e nos desviamos para as carnes de substituição. Não resta dúvida que o consumo de carne baixou de maneira espetacular. Mas quantos somos nós, bem antes desses acontecimentos, que não poderíamos passar diante de uma banca de açougue sem experimentar um mal estar, vendo por antecipação, pela ótica de futuros séculos? Assim virá um dia onde a idéia de que, para se alimentar, os homens do passado criavam e massacravam seres vivos, expondo com satisfação sua carne em pedaços nas vitrines, inspirará sem dúvida a mesma repulsão que aos viajantes do século XVI ou XVII as refeições canibais de selvagens americanos, oceânicos ou africanos.

A moda crescente dos movimentos em defesa dos animais testemunha: percebemos com cada vez mais clareza a contradição na qual nossos costumes nos encerram, entre a unidade da criação tal como ela se manifestava ainda na entrada da Arca de Noé, e sua negação pelo próprio criador, na saída.

Entre os filósofos, Auguste Comte foi um dos que prestaram mais atenção ao problema das relações entre o homem e o animal. Ele o fez sob uma forma que os comentadores preferiram ignorar, por conta dessas extravagâncias às quais esse grande gênio freqüentemente se dedicou. Ele merece, portanto, que nos detenhamos.

Comte reparte os animais em três categorias. Na primeira, ele situa aqueles que, de uma maneira ou de outra, apresentam para o homem um perigo, e ele propõe tão simplesmente destruí-los.

Ele reúne numa segunda categoria as espécies protegidas e criadas pelo homem: bovinos, ovinos, animais de galinheiro... Depois de milênios, o homem os transformou tão profundamente que não se pode mesmo mais chamá-los de animais. Deve-se encara-los como os “laboratórios nutritivos” onde são elaborados os compostos orgânicos necessários à nossa subsistência.

Se Comte exclui essa segunda categoria da animalidade, ele integra a terceira à humanidade. Ele agrupa as espécies sociáveis onde encontramos nossos companheiros e freqüentemente nossos auxiliares ativos: animais em relação aos quais “se exagerou muito a inferioridade mental”. Alguns, como o cachorro e o gato, são carnívoros. Outros, devido à sua natureza herbívora, não possuem nível intelectual suficiente para que se lhes torne utilizáveis. Comte preconiza que se os transforme em carnívoros, o que de forma alguma é impossível a seus olhos posto que, na Noruega, quando falta a forragem, se alimenta o gado com peixe seco. Assim, alguns herbívoros serão levados ao mais alto grau de perfeição que comporta a natureza animal. Tornados mais ativos e mais inteligentes pelo novo regime alimentar, eles estarão mais aptos a se dedicar a seus senhores, a se comportar como servidores da humanidade. Poder-se-á confiar-lhes a vigilância das fontes de energia e de máquinas, tornando os homens, dessa forma, disponíveis para outras tarefas. Utopia certamente, reconhece Comte, mas não mais do que a transmutação dos metais que está, no entanto, na origem da química moderna. Aplicando a idéia de transmutação aos animais, tão somente se estende a utopia da ordem material para a ordem vital.

Com um século e meio de idade, essas idéias são proféticas sob vários pontos de vista enquanto confere a outras perspectivas um caráter paradoxal. É bastante verdadeiro que o homem provoca direta ou indiretamente a desaparição de inúmeras espécies e que outras estão, por isso, gravemente ameaçadas. Que se pense nos ursos, lobos, tigres, rinocerontes, elefantes, baleias, etc., mais as espécies de insetos e outros invertebrados que as degradações infligidas pelo homem destroem a cada dia.

Igualmente profética, e a um ponto em que Comte não poderia imaginar, é essa visão dos animais, dos quais se alimenta o homem, impiedosamente reduzidos à condição de laboratórios nutritivos. A criação em bateria de bezerros, porcos, galinhas oferece a ilustração mais horrível. O parlamento europeu mostrou-se recentemente preocupado.

Profética também, enfim, a idéia de que os animais que formam a terceira categoria concebida por Comte tornar-se-ão colaboradores ativos para o homem, como atestam as tarefas cada vez mais diversificadas confiadas aos cães-guia, o recurso aos macacos treinados especialmente para assistir aos deficientes, as esperanças depositadas nos golfinhos.

A transmutação de herbívoros em carnívoros é, também ela, profética, como o prova o drama das vacas loucas, embora nesse caso as coisas não ocorram como previu Comte. Se nós transformamos herbívoros em carnívoros, primeiro, essa transformação talvez não seja tão original quanto acreditamos. Sustentou-se que os ruminantes não são verdadeiros herbívoros porque eles se nutrem principalmente de microorganismos, os quais se nutrem de vegetais fermentados com auxílio de um estômago especialmente adaptado.

Essa transformação não foi, sobretudo, desenvolvida em favor dos auxiliares ativos do homem, mas em detrimento desses animais qualificados por Comte de laboratórios nutritivos: erro fatal contra o qual ele mesmo havia prevenido, quando dizia que “o excesso de animalidade lhes será nocivo”. Nocivo não somente a eles, mas a nós: ao conferir-lhes um excesso de animalidade (devido à sua transformação, bem mais que em carnívoros, em canibais) não estaríamos transformando, certo que involuntariamente , nossos “laboratórios nutritivos” em laboratórios mortíferos?

A doença da vaca louca não alcançou ainda todos os países. A Itália até o momento presente está, creio, indene. Talvez ela seja logo esquecida: seja porque a epidemia cesse por si mesma, como prevêem os cientistas britânicos, seja porque sejam descobertas vacinas ou tratamentos, ou que uma política de saúde rigorosa garanta a saúde dos animais destinados ao açougue. Mas outros cenários são também concebíveis.

Suspeita-se que, contrariamente às idéias aceitas, a doença poderia atravessar as fronteiras biológicas entre as espécies. Atingindo todos os animais dos quais nos alimentamos, ela se instalaria de maneira durável e tomaria lugar entre os males nascidos da civilização industrial que comprometem cada vez mais as necessidades de todos os seres vivos.

Nós já não respiramos mais que um ar poluído. Igualmente poluída, a água não é mais esse bem que se acreditava disponível sem limite: nós sabemos que ela é contada tanto na agricultura quanto nos usos domésticos. Desde a aparição da aids, as relações sexuais comportam um risco fatal. Todos esses fenômenos perturbam e perturbarão de maneira profunda as condições de vida da humanidade, anunciando uma nova era onde tomará lugar, simplesmente como consequêencia, esse perigo mortal que apresentará daí em diante a alimentação carnívora.

Esse não é, aliás, o único fator que poderia compelir o homem a abandonar a alimentação carnívora. Em um mundo onde a população global irá provavelmente dobrar em menos de meio século, o gado e os outros animais de criação tornar-se-ão temerários concorrentes para o homem. Calculou-se que nos Estados Unidos, dois terços dos cereais produzidos servem para alimenta-los. E não esqueçamos que esses animais rendem em carne muito menos calorias do que consomem ao longo de sua vida (a quinta parte, me disseram, para uma galinha). Uma população humana em expansão terá logo necessidade para sobreviver de toda a atual produção de cereais: não restará nada para o gado e os animais de galinheiro, de maneira que todos os humanos deverão calcar seu regime alimentar sobre o dos indianos e chineses onde a carne animal cobre uma parte muito pequena das necessidades de proteínas e de calorias. Será mesmo necessário, talvez, renunciar completamente à carne porque, enquanto a população aumenta, a superfície das terras cultiváveis diminui sob o efeito da erosão e da urbanização, as reservas de hidrocarbonetos baixam e as fontes de água se reduzem. Em contrapartida, os especialistas estimam que se a humanidade se tornar integralmente vegetariana, as superfícies hoje cultivadas poderão alimentar uma população em dobro.

É notável que nas sociedades ocidentais o consumo de carne tenda espontaneamente a cair, como se essas sociedades começassem a mudar de regime alimentar. Nesse caso, a epidemia da vaca louca, ao desviar os consumidores da carne, não faria senão acelerar uma evolução em curso. Ela lhe acrescentaria apenas um componente místico feito de um sentimento difuso que nossa espécie paga por ter contrariado à ordem natural.

Os agrônomos se encarregarão de aumentar o teor de proteínas das plantas alimentícias, os químicos de produzir proteínas sintéticas em quantidade industrial. Mas mesmo se a encefalopatia espongiforme (nome científico da doença da vaca louca e de outras da mesma família) se instale de maneira durável, apostamos que o apetite por carne não desaparecerá na mesma medida. Sua satisfação tornar-se-á tão somente uma ocasião rara, custosa e arriscada. (o Japão conhece situação semelhante com o fugu, peixe tetradontídeo de raro sabor que se não for bem limpo pode ser mortal.) A carne figurará no cardápio em circunstâncias excepcionais. Ela será consumida com um misto de reverência piedosa e ansiedade que, de acordo com os antigos viajantes, impregnava as refeições canibais de alguns povos. Nos dois casos, trata-se ao mesmo tempo da comunhão com os ancestrais e de assumir o risco de incorporar a substância perigosa de seres vivos que foram ou se tornam inimigos.

A criação, não rentável, ao ter desaparecido por completo, fará com que essa carne comprada em lojas de luxo, venha somente da caça. Nossos antigos rebanhos, abandonados, se tornarão caça, entre outras, em um campo entregue à selvageria.

Não se pode, contudo, afirmar que a expansão de uma civilização que se pretende mundial uniformizará o planeta. Ao acumular, como se observa hoje, uma população em megalópoles tão grande quanto estados, uma parte dela se deslocará para outros espaços. Totalmente desabitados, esses espaços retornarão às condições arcaicas; aqui e ali, os mais estranhos gêneros de vida tomarão lugar. Em vez de ir em direção à monotonia, a evolução da humanidade acentuará os contrastes, recriando, restabelecendo o reino da diversidade. Rompendo hábitos milenares, tal é a lição de sabedoria que nós teremos, talvez um dia, aprendido com as vacas loucas.

Fonte: Études rurales 157-158. Jeux, Conflits, Représentations http://etudesrurales.revues.org/document27.html

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Órgãos sem Corpos - Gilles Deleuze 2. Devir versus História - Slavoj Zizek

Órgãos sem Corpos – Gilles Deleuze
2. Devir versus História
Slavoj Žižek
Tradução:Rodrigo Nunes Lopes Pereira

A oposição ontológica entre Ser e Devir que sustenta a noção de Deleuze do virtual é uma noção radical desde que sua referência final é o puro devir sem ser (oposta à noção metafísica do puro ser sem devir). Esse puro devir não é um devir particular DE alguma entidade corporal, uma passagem dessa entidade de um estado a outro, mas um devir-em-si-mesmo, completamente extraído de sua base corporal. Visto que a temporalidade predominante do ser é a do presente (com o passado e o futuro como seus modos deficientes), o puro devir-sem-ser significa que dever-se-ia evitar o presente – ele nunca “ocorre efetivamente”, ele é “sempre iminente e já passou”1 Como tal, o puro devir suspende a seqüencialidade e a direcionalidade: quer dizer, em um efetivo processo de devir, o ponto crítico de temperatura (0 grau Celsius) sempre tem uma direção (a água ou congela ou derrete), enquanto que, considerado como puro devir extraído de sua corporeidade, esse ponto de passagem não é um ponto de passagem de um estado a outro, mas uma “pura” passagem, neutra em relação a sua direcionalidade, perfeitamente simétrica – por exemplo, uma coisa está simultaneamente aumentando (o que ela foi) e diminuindo (em relação ao que ele será). E os poemas Zen não são o exemplo derradeiro da poesia do puro devir, os quais almejam meramente extrair a fragilidade do puro evento de seu contexto causal?
O Foucault mais próximo de Deleuze é talvez o Foucault de Arqueologia do Saber, sua subestimada obra chave que delineia a ontologia das enunciações como puros eventos de linguagem: não elementos de uma estrutura, não atributos de sujeitos que as proferem, mas como eventos que emergem, funcionam dentro de um campo, e desaparecem. Colocando em termos estóicos, a análise do discurso de Foucault estuda a lekta, enunciações como puros eventos, enfocando as condições inerentes de sua emergência [emergence] (como a concatenação dos próprios eventos) e não em sua inclusão no contexto da realidade histórica. Este é o motivo de o Foucault de Arqueologia do Saber estar tão longe quanto possível de qualquer forma de historicismo, de eventos locais em seu contexto histórico – ao contrário, Foucault os ABSTRAI de sua realidade e de sua causalidade histórica, e estuda as regras IMANENTES de sua emergência. O que deveríamos ter em mente aqui é que Deleuze NÃO é um historicista evolucionista; sua oposição do Ser e do Devir não deve nos iludir. Ele não está simplesmente argumentando que todas as entidades estáveis, fixas são apenas coagulações do abrangente fluxo de vida – Por que não? A referência à noção de TEMPO é crucial aqui. Vamos lembrar como Deleuze (Com Guattari) em sua descrição do devir em/da filosofia, explicitamente opõe devir e história:

O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência que não exclui o antes e o depois, mas os sobrepõe em uma ordem estratigráfica. Este é um infinito devir da filosofia que atravessa sua história sem ser confundido com ela. A vida dos filósofos, e o que é mais externo a seu trabalho, está de acordo com as leis comuns da sucessão; mas seus nomes próprios coexistem e brilham como pontos luminosos que nos levam através de componentes de um conceito novamente ou como pontos cardinais de um estrato ou plano que continuamente nos retornam, como estrelas mortas cujas luzes brilham mais do que nunca.2

O paradoxo então é que o devir transcendental inscreve-se a si mesmo na ordem positiva do ser, da realidade constituída, sob a capa de seu exato oposto, de uma superposição estática, de um congelamento cristalizado do desenvolvimento histórico. Esta eternidade deleuziana está, é claro, não simplesmente fora do tempo; por melhor dizer, na superposição “estratigráfica”, nesse momento de estase, é o PRÓPRIO TEMPO que nós experienciamos, tempo oposto ao fluxo evolutivo das coisas DENTRO do tempo. Foi Schelling quem, seguindo Platão, escreveu que o tempo é a imagem da eternidade – uma declaração mais paradoxal do que pode parecer. O tempo, a existência temporal, não é o oposto mesmo da eternidade, não é o domínio da deterioração, geração e corrupção? Como pode então o tempo ser a imagem da eternidade? Isto não envolve duas declarações contraditórias, quer dizer, que o tempo é a queda da eternidade na corrupção E seu exato oposto, o esforço pela eternidade? A única solução é conduzir este paradoxo a sua conclusão radical: o tempo é o esforço da eternidade para ALCANÇAR A SI MESMA. O que isso significa é que a eternidade não está fora do tempo, mas é a pura estrutura do tempo “como tal”: como colocou Deleuze, o momento da superposição estratigráfica que suspende a sucessão temporal é o tempo como tal. Em suma, dever-se-ia aqui opor o desenvolvimento NO tempo à explosão DO PRÓPRIO TEMPO: o próprio tempo (a virtualidade infinita do campo transcendental do Devir) aparece DENTRO da evolução intratemporal sob o disfarce da ETERNIDADE. Os momentos de emergência [emergence] do Novo são precisamente os momentos de Eternidade no tempo. A emergência [emergence] do Novo ocorre quando um trabalho vence seu contexto histórico. E, do lado oposto, se há uma imagem da imobilidade fundamental ontológica, é a imagem evolucionista do universo como uma complexa rede de transformações e desenvolvimentos intermináveis nos quais plus ça change, plus ça reste le même:

Eu me tornei cada vez mais consciente da possibilidade de distinção entre devir e história. Foi Nietzsche quem disse que nada importante está livre de um ‘vapor não-histórico’. /.../ O que a história compreende em um evento é a maneira como ele é atualizado em circunstâncias particulares; o devir do evento está além do escopo da história./.../ O devir não é parte da história; a história apenas reúne conjuntos de precondições, recentes contudo, que são deixados para traz enquanto ‘devir’, ou seja, como criação de algo novo.3

Para designar esse processo, fica-se tentado a usar um termo estritamente proibido por Deleuze, que é o de TRANSCENDÊNCIA: Deleuze não está aqui argumentando que um certo processo pode transcender suas condições históricas ao dar origem a um Evento? Era Sartre (um dos pontos de referência secretos de Deleuze) quem já utilizava o termo nesse sentido, quando ele discutia como, no ato de síntese, o sujeito pode transcender suas condições. Abundam exemplos aqui do cinema (a referência de Deleuze ao nascimento do neo-realismo italiano: claro que ele surgiu sem condições – o choque da IIª Guerra Mundial, etc – mas o Evento neo-realista não pode ser reduzido a essas causas históricas) à política. Em política (e que, de certo modo, remete a Badiou), a base da reprovação de Deleuze aos críticos conservadores que denunciam os terríveis resultados reais de uma sublevação revolucionária, é que eles permanecem cegos para a dimensão do devir:

Está na moda ultimamente condenar os horrores da revolução. Isso não é nada novo; o Romantismo Inglês é permeado por reflexões de Cromwell muito semelhantes às reflexões de Stalin nos dias atuais. Eles dizem que as revoluções terminam mal. Mas eles estão constantemente confundindo duas coisas diferentes, a maneira como as revoluções se produzem historicamente e o devir revolucionário das pessoas. Estes relacionam dois grupos diferentes de pessoas. A única esperança dos homens reside em um devir revolucionário: a única maneira de se livrar de sua vergonha ou de responder ao que é intolerável.4

O devir é então estritamente correlativo ao conceito de REPETIÇÃO: longe de se opor à emergência [emergence] do Novo, o próprio paradoxo deleuzianno é que algo verdadeiramente Novo só pode emergir através da repetição. O que a repetição repete não é a maneira como o passado “efetivamente se deu”, mas a virtualidade inerente ao passado e traída por sua atualização anterior. Nesse preciso sentido, a emergência [emergence] do Novo muda o próprio passado, quer dizer, ele muda retroativamente (não o passado real – isso não é ficção-científica – mas) o balanço entre realidade e virtualidade no passado.5 Recordemos o velho exemplo de Walter Benjamin: a Revolução de Outubro repetiu a Revolução Francesa, redimindo seu fracasso, desenterrando e repetindo o mesmo impulso. Já para Kierkegaard, repetição é “memória invertida”, um movimento para frente, a produção do Novo, e não a reprodução do Velho. “Não há nada de novo sob o sol” é o mais forte contraste com o movimento da repetição. Assim, não é apenas que a repetição seja (um dos modos da) emergência [emergence] do Novo – o Novo SÓ pode emergir através da repetição. A chave para esse paradoxo é, claro, o que Deleuze designa como a diferença entre o Virtual e o Efetivo (e que pode ser – por que não? – também determinado como a diferença entre Espírito e Letra). Tomemos um grande filósofo como Kant – há duas maneiras de repeti-lo: fixar-se em sua letra e ainda elaborar ou modificar seu sistema, como os neo-kantianos (como Habermas e Luc Ferry) estão fazendo; ou, tenta-se retomar o impulso criativo que o próprio Kant traiu na atualização de seu sistema (i.e., conectar o que já estava “em Kant mais do que no próprio Kant”, mais do que seu sistema explícito, seu cerne excessivo). Há, conseqüentemente, dois modos de trair o passado. A verdadeira traição é um ato ético-teórico de máxima fidelidade: tem que se trair a letra de Kant no sentido de se permanecer fiel a (e repetir) o “espírito” de seu pensamento. É precisamente quando se permanece fiel à letra de Kant que se trai realmente o cerne de seu pensamento, o impulso criativo motivando-o. Dever-se-ia conduzir esse paradoxo à sua conclusão: não se trata apenas de que se pode permanecer realmente fiel a um autor traindo-o (a letra efetiva de seu pensamento); em um nível mais radical, a declaração inversa comporta ainda mais – pode-se apenas trair verdadeiramente um autor repetindo-o, permanecendo-se fiel ao cerne de seu pensamento. Se não se repete um autor (no autêntico sentido kiekgaardiano do termo), mas meramente se o “critica”, deslocando-o, contornando-o, etc., isso significa, com efeito, que se permanece inadvertidamente dentro de seu horizonte, de seu campo conceitual.6 Quando G. K. Chesterton descreve sua conversão ao cristianismo, ele alega que tentou “ficar uns dez minutos além da verdade. E eu acho que fiquei dezoito anos atrás dela”7. Isso não vale especialmente para aqueles que, hoje, tentam desesperadamente alcançar o Novo seguindo a última moda “pós”, ficando condenados a permanecer sempre dezoito anos atrás do verdadeiro Novo?
E isso nos introduz ao complexo tópico da relação entre Hegel e Kierkegaard: contra a noção “oficial” de Kierkegaard como O “anti-Hegel”, alguém poderia afirmar que Kierkegaard é talvez aquele que, através de sua “traição” a Hegel, permaneceu fiel a ele. Ele efetivamente REPETIU Hegel, em contraste com os pupilos de Hegel, os quais “desenvolveram” seu sistema. Para Kiekegaard, o Aufhebung hegeliano deve se opor à repetição: Hegel é o derradeiro filósofo socrático da rememoração, do retornar reflexivamente ao que a coisa sempre-já foi, de maneira que, o que falta a Hegel é, simultaneamente, a repetição e a emergência [emergence] do Novo – a emergência do Novo COMO repetição. O processo/progresso da dialética hegeliana é, neste preciso sentido kierkegaardiano, o mesmo modelo de um pseudodesenvolvimento – desenvolvimento no qual nada efetivamente Novo jamais emerge. Quer dizer, a reprovação kierkegaardiana padrão a Hegel é que seu sistema é um círculo fechado de rememoração que não considera a emergência de nada Novo: tudo o que acontece é apenas uma passagem do em-si ao para-si, isto é, ao longo do processo dialético, as coisas apenas atualizam seu potencial, colocar explicitamente seu conteúdo explícito, tornar-se o que (em si mesmos) eles sempre-já são. O primeiro enigma a respeito dessa reprovação é que ela é comumente acompanhada pela reprovação OPOSTA: Hegel mostra como “o Um se divide em Dois, a explosão de uma divisão, perda, negatividade, antagonismo, que afeta uma unidade orgânica; mas, então, o reverso do Aufhebung intervem como um tipo de deus ex machina, sempre garantindo que o antagonismo será magicamente resolvido, os opostos reconciliados em uma síntese mais elevada, a perda recuperada sem um resto, a ferida cicatrizada sem deixar cicatriz... As duas reprovações, então, assinalam direções opostas: a primeira reivindica que nada de novo emerge sob o sol hegeliano, enquanto que a segunda reivindica que o impasse é resolvido por uma questão imposta que emerge como deus ex machina, de fora, não como o resultado da dinâmica inerente da tensão precedente.
O erro da segunda reprovação é que ela perde a questão – ou , até mesmo, a temporalidade – da conciliação hegeliana. Não é que a tensão seja magicamente resolvida e os opostos reconciliados. O único deslocamento que efetivamente ocorre é subjetivo, o deslocamento de nossa perspectiva (i.e., subitamente, nos tornamos cientes de que o que anteriormente apareceu como conflito JÁ É a reconciliação). Este movimento temporal para trás é crucial: a contradição não é resolvida; nós apenas estabelecemos que ela sempre-já FOI resolvida. (Em termos teológicos, a Redenção não segue a queda; ela ocorre quando nos tornamos conscientes de como o que anteriormente percebemos (mal) como a Queda “em si” já era a Redenção.)8 E, paradoxalmente, mesmo que esta temporalidade pareça confirmar a primeira reprovação (a de que nada de novo emerge no processo hegeliano), ela, efetivamente, nos permite refuta-la: o verdadeiro Novo não é simplesmente um novo conteúdo, mas o próprio deslocamento de perspectiva através do qual o Velho aparece sob nova luz.
Deleuze está certo em seu magnífico ataque à “contextualização” historicista: devir significa transcender o contexto das condições históricas fora das quais um fenômeno emerge. Isto é o que se perde no multiculturalismo anti-universalista historicista: a explosão do perpetuamente Novo em/como o processo do devir. A oposição padrão entre Universal abstrato (ou seja, Direitos Humanos) e as identidades particulares deve ser substituída por uma nova tensão entre Singular e Universal: o acontecimento do Novo como uma singularidade universal.9 O que Deleuze fornece aqui é a ligação (propriamente hegeliana) entre historicidade factual e eternidade: um verdadeiramente Novo emerge como eternidade no tempo, transcendendo suas condições materiais. Para perceber um fenômeno passado em devir (como Kierkegaard poderia ter formulado) é perceber o potencial virtual nele, a centelha de eternidade, a potencialidade virtual que sempre está aí. Um verdadeiramente novo trabalho sempre fica novo – sua novidade não é esgotada quando passa sua “capacidade de chocar”. Por exemplo, em filosofia, as grandes rupturas (do transcendental de Kant até a invenção de Kripke do “designador rígido”) sempre mantêm seu caráter “surpreendente” de invenção.
Ouve-se frequentemente que para se entender uma obra de arte é preciso conhecer seu contexto histórico. Contra esse lugar-comum historicista, um contra-argumento deleuziano seria que, não apenas demasiado contexto histórico pode ofuscar o próprio contato com a obra de arte (i.e., que, para realizar esse contato, dever-se-ia abstrair o contexto histórico); mas, até mesmo, que a própria obra de arte fornece um contexto, permitindo-nos propriamente entender uma situação histórica dada. Se hoje alguém for visitar a Sérvia, o contato direto com dados brutos poderia confundir. Se, contudo, a pessoa ler algumas obras literárias e assistir a alguns filmes representativos, eles poderiam definitivamente fornecer o contexto para situar os dados brutos de sua experiência. Há, então, uma inesperada verdade na velha cínica sabedoria da União Soviética stalinista: “ele mente como uma testemunha ocular!”.

1 Gilles Deleuze, The Logic of Sense, New York: Columbia University Press 1990, p. 80.

2 Gilles Deleuze and Felix Guattari,What is Philosophy?, New York: Columbia University Press 1994, p. 59.

3 Gilles Deleuze, Negotiations, New York: Columbia University Press 1995, p. 170-171.

4 Deleuze, op.cit., p. 171.

5 Quando, em 1953, Chou Em Lai, o primeiro ministro chinês, foi a Genebra para as negociações de paz para por fim à guerra da Coréia, um jornalista francês lhe perguntou o que achava da Revolução Francesa, então Chou respondeu: “É muito cedo ainda para dizer”. Em um certo sentido, ele estava certo: com a desintegração dos estados socialistas, a luta para o lugar histórico da Revolução Francesa desencadeou-se novamente. Os revisionistas direitistas liberais tentam impor a noção de que a extinção do Comunismo em 1989 ocorreu exatamente no momento certo: ela marcou o fim da era que começou em 1789. Em suma, o que desapareceu efetivamente da história foi o modelo revolucionário que entrou em cena pela primeira vez com os jacobinos. François Furet e outros tentaram assim destituir a Revolução Francesa de seu status como o acontecimento fundador da democracia moderna, relegando-a à uma anomalia histórica.

6 A fidelidade autêntica é a fidelidade ao próprio vazio – ao próprio ato mesmo de perda, de abandonar/apagar o objeto. Por que a morte seria o objeto de apego em primeiro lugar? O nome para essa fidelidade é pulsão de morte. Em relação a lidar com a morte, dever-se-ia, talvez, – contra o trabalho do luto, bem como contra o apego melancólico à morte que retorna como fantasmas – afirmar a máxima cristã “deixe a morte enterrar seu morto”. A óbvia reprovação a essa máxima é: o que fazemos quando, precisamente, a morte não aceita ficar morta, mas continua viva em nós, assombrando-nos com sua presença espectral? Fica-se, aqui, tentado a reivindicar que, a dimensão mais radical da pulsão de morte freudiana fornece a chave de como lermos o “deixe a morte enterrar seu morto” cristão: o que a pulsão de morte tenta obliterar não é a vida biológica, mas a própria vida após a morte - ela tenta matar o objeto perdido uma segunda vez, não no sentido do luto (aceitando a perda através da simbolização), mas em um sentido mais radical, de obliterar a própria textura simbólica, a letra na qual o espírito do morto sobrevive.

7 G.K.Chesterton, Orthodoxy, San Francisco: Ignatius Press 1995, p. 16.

8 Para uma descrição mais detalhada desse movimento, ver capítulo 3 ddde Slavoj Zizek, The Puppet and the Dwarf, Cambridge: MIT Press 2003.

9 Isto serve mesmo se nós reformularmos o Universal no sentido laclauniano do significante vazio tomado na luta pela hegemonia: a singularidade universal não é o significante universal vazio preenchido – homogeneizado por – algum conteúdo particular. Ele é quase seu obverso: uma singularidade que explode o contorno dado da universalidade em questão abrindo-o para um conteúdo radicalmente novo.