terça-feira, 15 de maio de 2012

terça-feira, 3 de abril de 2012

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

"Os quatro discursos de Jacques Lacan" Slavoj Žižek (completo)

Os quatro discursos de Jacques Lacan (completo)

Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


Ainda que a noção de Jacques Lacan do “discurso universitário” circule largamente hoje, ela raramente é usada em seu sentido preciso (designando um “discurso” específico, liame social). Via de regra, ela funciona como uma vaga noção de uma fala que faz parte da maquinaria interpretativa acadêmica. Em contraste com esse uso, dever-se-ia sempre ter em mente que, para Lacan, o discurso universitário não está diretamente ligado à universidade como instituição social – por exemplo, ele afirma que a União Soviética foi o puro reinado do discurso universitário. Conseqüentemente, não apenas o fato de ser transformado em objeto da maquinaria interpretativa universitária não prova nada sobre um status discursivo – nomes como Kierkgaard, Nietzsche ou Benjamin, todos grandes anti-universitários são hoje onipresentes na academia – mas até mesmo que os autores “excluídos” ou “malditos” são o alimento IDEAL de que se nutre a máquina acadêmica. O nível superior da fórmula do discurso universitário de Lacan – S2 diante de a – não pode também ser lido como representando o saber universitário empenhando-se em integrar, domesticar e apropriar o excesso que lhe resiste e rejeita?
Escondida sob a censura de pertencer ao discurso universitário está, é claro, a questão da relação entre psicanálise e estudos culturais. O primeiro fato a notar aqui é que o que está ausente nos estudos culturais é precisamente a psicanálise como liame social, estruturado em torno do desejo do analista. Hoje, freqüentemente se menciona como a referência à psicanálise nos estudos culturais e a clínica psicanalítica suplementam uma à outra: os estudos culturais carecem do real da experiência clínica, enquanto que a clínica carece de uma perspectiva histórico-crítica mais ampla (quer dizer, da especificidade histórica das categorias da psicanálise, complexo de Édipo, castração, autoridade paterna). A resposta a isso poderia ser que cada uma das abordagens deveria trabalhar em suas limitações, dentro de seus horizontes – não contando com a outra para preencher o que lhe falta. Se os estudos culturais não podem dar conta do real da experiência clínica, isso indica a insuficiência de sua própria estrutura teórica; se a clínica não pode considerar seus pressupostos teóricos, é má clínica. Deve-se acrescentar a este típico paradoxo dialético hegeliano (combatendo-se o antagonismo exterior ou estrangeiro, combate-se sua própria essência) seu inerente suplemento: impedindo-se a si mesmo, verdadeiramente impede-se o antagonismo exterior. Quando os estudos culturais ignoram o real da experiência clínica, a vítima crucial não são propriamente os estudos culturais, mas a clínica, que permanece presa em um empirismo pré-teórico. E, vice-versa, quando a clínica falha (em levar em conta seus pressupostos teóricos), a vítima crucial é a teoria ela mesma, a qual, desconectada da experiência clínica, permanece um exercício ideológico vazio. O horizonte último aqui não é a reconciliação entre teoria e clínica: é essa mesma divergência a condição positiva da psicanálise. Já escreveu Freud que na situação em que isso fosse finalmente possível, a psicanálise não seria mais necessária. A teoria psicanalítica é afinal a teoria de por que sua prática clínica é condenada a falhar.
Um dos sinais reveladores do discurso universitário é de quando se acusa o oponente de “dogmático” e “sectário”. O discurso universitário não pode tolerar uma instância subjetiva engajada. Nosso primeiro gesto não deveria ser, como lacanianos, heroicamente assumir essa designação de “sectários” e engajarmo-nos em uma polêmica “sectária”?
O discurso universitário como o discurso hegemônico da modernidade tem duas formas de existência nas quais sua tensão interna (“contradição”) é externada: o capitalismo, sua lógica do excesso integrado, do sistema reproduzindo-se através da auto-revolução, e o “totalitarismo” burocrático conceituado sob diferentes disfarces, como o papel da tecnologia, da razão instrumental, da “biopolítica”, como o “mundo administrado”. Como, precisamente, esses dois aspectos se relacionam um com o outro? Nós não deveríamos sucumbir à tentação de reduzir o capitalismo a uma mera forma de aparição da atitude ontológica mais fundamental da dominação tecnológica; nós deveríamos, ao contrário, insistir, à maneira marxista, que a lógica capitalista de integrar o excedente no funcionamento do sistema é que constitui o fato fundamental. O “totalitarismo” stalinista foi a lógica capitalista da produção auto-impulsionada libertada de sua forma capitalista, motivo pelo qual fracassa: o stalinismo foi o sintoma do capitalismo. O stalinismo trouxe consigo a matriz do intelecto geral, da transparência planejada da vida social, da total mobilização produtiva – e seus violentos expurgos e a paranóia foram uma espécie de “retorno do recalcado”, a “irracionalidade” inerente ao projeto de uma “sociedade administrada” totalmente organizada. Isto significa que os dois níveis, precisamente na medida em que eles são os dois lados de uma mesma moeda são, em última instância, incompatíveis: não há metalinguagem que nos permita retraduzir a lógica da dominação na reprodução-através-do-excesso capitalista, ou vice versa.
A questão chave aqui consiste na relação entre os dois excessos: o excesso/excedente econômico integrado à máquina capitalista como a força que conduz à auto-revolução permanente e o excesso de exercício de poder político inerente ao poder moderno (o excesso constitutivo da representação sobre o representado: o poder estatal legítimo em relação aos seus sujeitos é suplementado pela mensagem obscena do incondicional do Poder – as leis não me constrangem realmente, eu posso fazer o que eu quiser com você, posso tratá-lo como culpado se eu decidir, eu posso destruí-lo se assim eu disser).
Talvez a chave para esse problema seja oferecida pela historicidade inscrita na matriz dos quatro discursos de Lacan, a historicidade do desenvolvimento moderno da Europa. O discurso do mestre não representa o mestre pré-moderno, mas a monarquia absolutista, esta primeira figura da modernidade que efetivamente minou a rede de articulação das relações e interdependências feudais, transformando fidelidade em adulação: É o “Rei-Sol” Luís XIV com o seu l’état, c’est moi que é o mestre por excelência.  O discurso da histérica e o do universitário desdobram duas conseqüências da vacilação do reino direto do mestre: o governo técnico da burocracia que culmina na biopolítica, reduzindo a população a uma coleção de homo sacer (o que Heidegger chamou de “enquadramento”, Adorno de “mundo administrado”, e Foucault de sociedade da “disciplina e punição”); a explosão da subjetividade capitalista histérica que se reproduz através da permanente auto-revolução, através da reintegração do excesso no funcionamento “normal” do liame social (a verdadeira “revolução permanente” já é o próprio capitalismo).
A fórmula de Lacan dos quatro discursos nos permite desdobrar as duas faces da modernidade (administração total e dinâmica capitalista-individualista) como duas maneiras de minar o discurso do mestre: a dúvida sobre a eficácia da figura do mestre (o que Eric Santner chamou de “crise de investidura”) pode ser suplementada pelo governo direto dos experts legitimados por seu saber, ou o excesso de dúvidas, de permanente questionamento, pode ser diretamente integrado na reprodução social. Finalmente, o discurso do analista representa a emergência da subjetividade revolucionária-emancipatória que resolve a divisão da universidade e da histeria. Nele, o agente revolucionário – a – se dirige ao sujeito a partir de uma posição de saber que ocupa o lugar da verdade (i.e., intervém na “torção sintomal” da constelação do sujeito), e o objetivo é isolar, se livrar do significante mestre que estruturou o inconsciente (político-ideológico) do sujeito.
Ou não? Jacques-Alain Miller propôs recentemente que hoje o discurso do mestre não é mais o “anverso” do discurso do analista.[1] Hoje, pelo contrário, nossa própria “civilização” – sua matriz simbólica hegemônica, por assim dizer – se encaixa na fórmula do discurso do analista. O agente do liame social hoje é a, gozo excedente, a injunção do superego para gozar que permeia nosso discurso; esta injunção se endereça a $ (o sujeito dividido) que é posto para funcionar no sentido de viver de acordo com essa injunção.  A verdade desse liame social é S2, o conhecimento científico especializado em suas diferentes formas, e o objetivo é gerar S1, a auto-maestria do sujeito, isto é, permitir ao sujeito lidar com o estresse do chamado para que goze (através dos manuais de auto-ajuda, etc.). Provocativa como é essa noção, ela levanta uma série de questões. Se isso é verdade, no que, então, reside a diferença entre o funcionamento discursivo da civilização como tal e o liame social psicanalítico? Miller recorre aqui a uma solução suspeita: em nossa civilização, os quatro termos são mantidos aparte, isolados; cada um opera por conta própria, enquanto que apenas na psicanálise eles são reunidos em uma ligação coerente: “na civilização, cada um dos termos permanece disjunto... é apenas na psicanálise, na pura psicanálise, que esses elementos são organizados em um discurso”.
Contudo, não se trata aqui de que a operação fundamental do tratamento psicanalítico não seja a síntese, a união de elementos em uma combinação, mas, precisamente, análise, separando o que em um liame social parece estar junto? Este caminho, oposto ao de Miller, é indicado por Giorgio Agamben, que, nas últimas páginas de The State of Exception imagina duas opções utópicas de como romper o círculo vicioso de lei e violência, do governo da lei sustentado pela violência.[2] Uma é a visão benjaminiana da violência revolucionária “pura” sem relação com a lei. A outra é a relação com a lei sem considerar sua aplicação (violenta), como fazem os estudiosos judeus em sua interminável (re)interpretação da lei. Agamben começa a partir da percepção correta de que a tarefa hoje não é de síntese, mas de separação, distinção: não unir a lei e a violência (de modo que o direito tenha poder e o exercíci0 do poder seja inteiramente legitimado), mas separando-os inteiramente, desatando seu nó. Embora Agamben confira a esta fórmula uma torção anti-hegeliana, uma leitura mais apropriada de Hegel torna claro que tal gesto de separação é aquilo a que a “síntese” hegeliana efetivamente se refere. Nela, os opostos não são reconciliados numa “síntese mais elevada”; mas sim que suas diferenças são postas “como tais”.
O exemplo de São Paulo pode nos ajudar a esclarecer esta lógica da reconciliação hegeliana: a lacuna radical que ele situa entre vida e morte, entre a vida em Cristo e a vida em pecado, não tem necessidade de uma síntese adicional; é ela própria a resolução da “contradição absoluta” da Lei e do pecado, do círculo vicioso de sua implicação mútua. Em outras palavras, uma vez que a distinção é feita, uma vez que o sujeito torna-se consciente da própria existência dessa outra dimensão além do círculo vicioso da lei e de sua transgressão, a batalha já está formalmente ganha. Assim, no que diz respeito à velha questão da passagem de Kant a Hegel, o movimento de Hegel não é superar a divisão kantiana, mas, antes, afirmá-la como tal, abandonar a necessidade de sua superação, pois a adicional reconciliação dos opostos, isto é, a percepção – através de uma mudança de paralaxe puramente formal – de como postular a distinção como tal já é a reconciliação procurada. A limitação de Kant não está em permanecer dentro das fronteiras das oposições finitas, mas, ao contrário, na própria busca por um domínio transcendental além do domínio das oposições finitas. Kant não é incapaz de alcançar o Infinito – o que ele é incapaz de ver é que já tem o que procura.
No entanto, nessa visão, não seria mais uma vez o caso de que nossa realidade de capitalismo tardio vai além de nossos sonhos? Nós já não encontraríamos em nossa realidade social o que Agamben vê como uma visão utópica? Não é lição de Hegel que a reflexivização-mediatização global de nossas próprias vidas é que gera sua própria imediatidade brutal? Isto foi mais bem apreendido pela noção de Etienne Balibar de crueldade não-funcional, excessiva, como uma característica da vida contemporânea, cujas figuras vão das matanças racistas e/ou religiosas “fundamentalistas” até explosões de violência “sem sentido” feitas por adolescentes e sem-teto em nossas megalópoles, violência esta que se fica tentado a chamar de Id-Má, que não está fundamentada em razões utilitárias ou ideológicas. Toda a conversa sobre os estrangeiros roubando nosso trabalho ou sobre a ameaça que eles representam aos nossos valores ocidentais não deve nos enganar: sob um exame mais cuidadoso, logo fica claro que essa conversa oferece uma racionalização secundária propriamente superficial. A resposta que nós em última análise obtemos de um skinhead é a de que ele se sente bem batendo em estrangeiros, de que sua presença o perturba. O que nós encontramos aqui é efetivamente o Id-Mal, isto é, o Mal estruturado e motivado pelo mais elementar desequilíbrio entre o ego e o gozo [jouissance], pela tensão entre o prazer e o corpo estranho de gozo [jouissance] em seu próprio âmago. O Id-Mal, então, encena o mais elementar curto-circuito na relação do sujeito com o objeto causa de seu desejo primordialmente perdido. O que mais nos incomoda no outro (judeu, japonês, africano, turco) é que ele parece entreter uma relação privilegiada com o objeto – ou o outro possui o objeto precioso, tendo arrebatado-o de nós (que é o motivo de não o possuirmos), ou ele representa um ameaça para nossa posse do objeto.
O que se deve propor aqui é o “julgamento infinito” hegeliano, afirmando a identidade especulativa dessas explosões “inúteis” e “excessivas” de violenta imediatidade, as quais exibem tão somente um ódio puro e nu (“não sublimado”) da Alteridade, com a reflexivização da sociedade. Talvez o exemplo derradeiro desta coincidência seja o destino da interpretação psicanalítica. Hoje, as formações do inconsciente (dos sonhos aos sintomas histéricos) definitivamente perderam sua inocência e são completamente reflexivizados: as “associações livres” de um típico analisando educado consistem em sua maior parte em tentativas de explicação psicanalíticas de suas perturbações, de modo que é bastante justificado dizer que temos interpretações dos sintomas não apenas jungianas, kleinianas, lacanianas e assim por diante, mas sintomas que são eles mesmos jungianos, kleinianos, lacanianos e assim por diante, isto é, cuja realidade envolve a referência implícita a alguma teoria psicanalítica. O lamentável resultado desta reflexivização global da interpretação (tudo se torna interpretação, o inconsciente interpreta a si mesmo) é que a própria interpretação do analista perde sua “eficácia simbólica” interpretativa e deixa o sintoma intacto na imediatidade de seu gozo [jouissance] idiota.
O que acontece no tratamento psicanalítico é estritamente homólogo à resposta do skinhead neonazista que, quando realmente pressionado sobre as razões de sua violência, subitamente começa a falar como assistentes sociais, sociólogos, e psicólogos sociais, citando a diminuição da mobilidade social, crescimento da insegurança, a desintegração da autoridade paterna, a falta de amor materno em sua primeira infância – a união da prática e de sua legitimação ideológica inerente desintegra em violência crua e em sua interpretação impotente, ineficiente. Esta impotência da interpretação é também um dos anversos necessários da reflexividade universalizada saudada pelos teóricos-do-risco-social: é como se nosso poder reflexivo pudesse florescer apenas na medida em que tira sua força e se apoia em algum mínimo suporte substancial “pré-reflexivo” que escapa ao seu escopo, de maneira que sua universalização venha com o preço de sua ineficiência, isto é, pela reemergência do real bruto de violência “irracional”, impermeável e insensível à interpretação reflexiva. Deste modo, quanto mais a teoria social atual proclama o fim da natureza ou da tradição e o crescimento da “sociedade de risco”, mais a referência implícita à “natureza” impregna nosso discurso cotidiano: mesmo quando nós não falamos do “fim da história”, nós não propagamos a mesma mensagem quando afirmamos que estamos entrando em uma era pragmática “pós-ideológica”, o que é outra maneira de afirmar que estamos  entrando em uma ordem pós-política em que os únicos conflitos legítimos são os étnico/culturais? Tipicamente, no discurso crítico e político atual, o termo trabalhador desapareceu do vocabulário, substituído ou obliterado pelo termo imigrantes ou trabalhadores imigrantes: argelinos na França, turcos na Alemanha, mexicanos nos Estados Unidos. Desta forma, a problemática de classe dos trabalhadores explorados é transformada em uma problemática multiculturalista de “intolerância da alteridade”, e o investimento excessivo dos liberais multiculturalistas na proteção dos direitos étnicos dos imigrantes claramente tira sua energia da “dimensão de classe reprimida”. Embora a tese de Francis Fukuyama sobre o fim da história tenha rapidamente caído em descrédito, nós silenciosamente ainda presumimos que a ordem global capitalista liberal-democrática é de certa forma o finalmente encontrado regime social “natural”, nós implicitamente ainda concebemos os conflitos nos países do terceiro mundo como uma subespécie de catástrofes naturais, como explosões de paixões violentas quase-naturais, ou como conflitos baseados na identificação fanática às próprias raízes étnicas (e o que é o “étnico” aqui senão, mais uma vez, uma palavra código para “natureza”?). E, novamente, o ponto-chave é que esta onipresente renaturalização corresponde rigorosamente a reflexivização de nossas vidas cotidianas.
O que isto significa, em relação à visão utópica de Agamben de desatar o nó da Lei e da violência é que, em nossas sociedades pós-políticas, este nó já está desamarrado: encontramos, por um lado, a interpretação globalizada que é paga com sua impotência, com seu fracasso em aplicar a si mesma, em gerar efeitos no real e, por outro lado, explosões do real cru de uma violência que não pode ser afetada por sua interpretação simbólica. Onde está, então, a solução aqui, entre a alegação de que na constelação hegemônica atual os elementos do liame social estão separados e devem ser unidos pela psico-análise (Miller), e de que o nó entre a Lei e a violência deve ser desatado e sua separação ser promulgada (Agamben)? E se estas duas separações não forem simétricas? E se a lacuna entre o simbólico e o real cru condensada pela figura do skinhead for falsa, na medida em que este real das explosões de violência “irracional” for gerado pela globalização do simbólico?
Quando, exatamente, o objet a funciona como a injunção do superego para gozar? Quando ele ocupa o lugar do significante mestre, isto é, como formulou Lacan nas últimas páginas de seu Seminário XI, quando ocorre o curto-circuito entre S1 e a. O movimento-chave a ser realizado no sentido de se romper o círculo vicioso da injunção do superego é, então, decretar a separação entre S1 e a. Consequentemente, não seria mais produtivo seguir um caminho diferente, isto é, começar com o modus operandi diferente do objet a, o qual já não funciona como o agente da injunção do superego – como ele funciona no discurso da perversão? Esta é a maneira pela qual a afirmação de Miller da identidade do discurso analista e do discurso da civilização atual deve ser lida: como uma indicação de que este último discurso (liame social) é o da perversão. Ou seja, o fato de que o nível superior da fórmula de Lacan do discurso do analista seja o mesmo que o de sua fórmula da perversão (a-$) abre uma possibilidade de se ler toda a fórmula do discurso do analista como uma fórmula do liame social perverso: seu agente, o masoquista perverso (o perverso por excelência), ocupa a posição de objeto instrumento do desejo do outro e, desta forma, servindo sua vítima (feminina), ele a coloca como o sujeito dividido/histericizado que “não sabe o que quer”. Por melhor dizer, o perverso sabe por ela, isto é, ele pretende falar a partir da posição de saber (sobre o desejo do outro) que lhe permite servir ao outro; e, finalmente, o produto deste liame social é o significante mestre, isto é, o sujeito histérico elevado ao papel de mestre (dominatrix) a quem o perverso masoquista serve.
Em contraste com a histeria, o perverso sabe perfeitamente o que ele é para o Outro: um saber suporta sua posição como objeto de seu Outro (sujeito dividido) gozo [jouissance]. A diferença entre o liame social da perversão e o da análise se baseia na ambiguidade radical do objet a em Lacan, que representa simultaneamente o engodo/tela fantasmática imaginária e o que esse engodo ofusca, o vazio por detrás do engodo. Consequentemente, quando passamos da perversão ao liame social analítico, o agente (analista) reduz a si mesmo ao vazio, o que provoca o sujeito a confrontar a verdade de seu desejo. O saber na posição da “verdade” abaixo da barra sob o “agente”, refere-se, é claro, ao suposto saber do analista, e, simultaneamente, sinaliza que o saber ganho aqui não será o saber objetivo e neutro da competência científica, mas o saber que concerne ao sujeito (analisando) na verdade de sua posição subjetiva.
Lembremos, mais uma vez, as declarações ultrajantes de Lacan, de que mesmo que as alegações de um marido ciumento sobre sua esposa (de que ela dorme com outros homens) sejam todas verdadeiras, seu ciúme ainda é patológico. Nessa mesma linha, pode-se dizer que, ainda que as alegações dos nazistas sobre os judeus fossem verdadeiras (exploram os alemães, seduzem suas garotas), seu anti-semitismo ainda seria (e foi) patológico – porque ele reprime a verdadeira razão pela qual os nazistas necessitavam do anti-semitismo para sustentar sua posição ideológica. Assim, no caso do anti-semitismo, o saber sobre o que os judeus realmente são é falso, irrelevante, enquanto que o único saber no lugar da verdade é o saber sobre por que um nazista necessita da figura do judeu para sustentar seu edifício ideológico. Neste sentido preciso, o discurso do analista produz o significante mestre, a guinada do saber do paciente, o elemento excedente que situa o saber do paciente no nível da verdade: depois que o significante mestre é produzido, mesmo se nada muda no nível do saber, o mesmo saber anterior começa a funcionar em um modo diferente. O significante mestre é o sinthome  inconsciente, a cifra de gozo à qual o sujeito foi, sem saber, assujeitado.
O ponto crucial que não deve ser perdido aqui é de como a identificação subjetiva do analista como a do objet petit a do Lacan tardio apresenta um ato radical de autocrítica. Anteriormente, nos anos 1950, Lacan concebeu o analista não como o pequeno outro (a), mas, pelo contrário, como uma espécie de substituto do grande Outro (A, a ordem simbólica anônima). Neste nível, a função do analista era frustrar os equívocos imaginários do sujeito e fazê-lo aceitar seu próprio lugar simbólico dentro do circuito de troca simbólica, o lugar que efetivamente (e sem seu conhecimento) determina sua identidade simbólica. Mais tarde, contudo, o analista vem representar precisamente a inconsistência e a falha derradeiras do grande Outro, isto é, vem representar a inaptidão da ordem simbólica em garantir a identidade simbólica do sujeito.
Deve-se ter sempre em mente, portanto, o estatuto completamente ambíguo do objet a em Lacan. Miller propõe uma distinção benjaminiana entre “ansiedade constituída” e “ansiedade constituinte”: enquanto o primeiro designa a noção padrão de abismo aterrorizante e fascinante de ansiedade que nos assombra, seu círculo infernal que ameaça nos envolver, o segundo representa a “pura” confrontação com o objet a como constituída em sua própria perda.[3]  Miller está certo em enfatizar aqui duas características: a diferença que sapara ansiedade constituída da ansiedade constituinte concerne ao estatuto do objeto em relação à fantasia. No caso da ansiedade constituída, o objeto habita os confins da fantasia, enquanto que nós temos a fantasia constituinte apenas quando o sujeito “atravessa a fantasia” e confronta o vazio, a lacuna, preenchida pelo objeto fantasmático. Clara e convincente como é, a fórmula de Miller perde o verdadeiro paradoxo ou, antes, a ambiguidade do objet a: quando ele define o objet a como o objeto que coincide com sua perda, que emerge no momento mesmo de sua perda (de modo que todas as suas encarnações fantasmáticas, dos seios à voz e ao olhar, são figurações metonímicas do vazio do nada), ele permanece dentro do horizonte do desejo – o verdadeiro objeto causa do desejo é o vazio preenchido por suas encarnações fantasmáticas. Embora, como enfatiza Lacan, o objet a seja também o objeto da pulsão, a relação é aqui completamente diferente. Apesar de em ambos os casos a ligação entre objeto e perda ser crucial, no caso do objet a como objeto causa do desejo, temos um objeto que é originariamente perdido, que coincide com sua própria perda, que emerge como perda, enquanto que, no caso do objet a como objeto da pulsão, o “objeto” é diretamente a própria perda. Na mudança do desejo para a pulsão, passamos do objeto perdido para a própria perda como um objeto. Quer dizer, o estranho movimento chamado “pulsão” não é dirigido pela busca “impossível” do objeto perdido, mas por um impulso para promulgar diretamente a “perda” – a lacuna, o corte, a distância – ela mesma. Há, então, uma dupla distinção a ser delineada aqui: não apenas entre o objet a e seu estatuto fantasmático e pós-fantasmático, mas também dentro de seu próprio domínio pós-fantasmático, entre o objeto perdido causa do desejo e a perda do objeto da pulsão. Longe de concernir a um debate acadêmico abstrato, esta distinção tem conseqüências político-ideológicas cruciais: ela nos permite articular a dinâmica libidinal do capitalismo.
Seguindo o próprio Miller, uma distinção tem que ser introduzida aqui entre falta e buraco. A falta é espacial, designando um vazio num espaço, enquanto que o buraco é mais radical – ele designa o ponto no qual esta própria ordem espacial se rompe (como no “buraco negro” em física). Aí reside a diferença entre desejo e pulsão: o desejo está fundamentado em sua falta constitutiva, enquanto que a pulsão circula em torno de um buraco, de uma lacuna na ordem do ser. Em outras palavras, o movimento circular da pulsão obedece à estranha lógica do espaço curvo no qual a distância mais curta entre dois pontos não é uma linha reta, mas uma curva: a pulsão “sabe” que o caminho mais curto para atingir seu objetivo é circular em torno de seu objeto-meta. No nível imediato da interpelação dos indivíduos, o capitalismo os interpela, claro, como consumidores, como sujeitos de desejos, solicitando neles sempre desejos novos perversos e excessivos (para os quais ele oferece produtos para satisfazê-los); ademais, ele obviamente também manipula o “desejo de desejar”, celebrando o desejo de desejar sempre novos objetos e modos de prazer. Contudo, ainda que ele manipule o desejo de maneira que leve em conta o fato de que o desejo mais elementar é o desejo de reproduzir a si mesmo como desejo (e não encontrar satisfação), neste nível, nós ainda não alcançamos a pulsão. A pulsão é inerente ao capitalismo em um nível mais fundamental, sistêmico: a pulsão impulsiona toda a maquinaria capitalista; é a compulsão impessoal de se engajar no movimento circular interminável da auto-reprodução expandida. A pulsão capitalista não pertence, portanto, a um indivíduo definido – é, antes, o que esses indivíduos que agem como “agentes” diretos do capital (os próprios capitalistas, altos executivos) têm que praticar. Entramos no modo da pulsão quando (conforme colocou Marx) a circulação de dinheiro como capital torna-se “um fim em si mesmo, pois a expansão do valor se realiza apenas neste movimento constantemente renovado. A circulação do capital não tem, portanto, limites”. Deve-se ter em mente aqui a célebre distinção de Lacan entre o alvo e o objetivo da pulsão: enquanto que o objetivo é o objeto em torno do qual a pulsão circula, seu (verdadeiro) alvo é a continuação interminável dessa própria circulação.   


           

           


[1] MILLER, Jacques-Alain, "La passe: Conférence de Jacques-Alain Miller." paper apresentado no quarto congresso da AMP, Comandatuba - Bahia, Brasil, de 9-12 de agosto, 2004.

[2] AGAMBEN, Giorgio, The State of Exception, Chicago: University of Chicago Press, 2004.

[3] Miller, J.-A., "Le nom-du-père, s'en passer, s'en servir", disponivel em www.lacan.com. É interessante notar como, em suas próprias polêmicas contra a Aufhebug hegeliana, Miller repete sua operação. Quer dizer, quando Miller desdobra o conceito de ansiedade com o efeito que sinaliza a proximidade do Real, ele o opõe ao papel central do Nome-do-pai, da lei paterna, no pensamento anterior de Lacan: a lei paterna funciona como o operador da Aufhebug, da “significantização”, da mediação/integração simbólica, do real, enquanto que a ansiedade entra como um resto do Real que resiste a sua Aufhebug simbólica. Contudo, quando Miller faz a pergunta do que acontece com a Lei paterna depois desta introdução da ansiedade como signo do Real, ele estranhamente reproduz os mesmos termos da Aufhebug. Claro, o Nome-do-pai continua a desempenhar uma função, mas uma função subordinada dentro de um novo contexto teórico. Em suma, o Nome-do-pai é mantido, negado e elevado a um nível mais alto – as mesmas três características da Aufhebug hegeliana.