terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Amor impiedoso da morte - A falsidade do sacrifício Slavoj Žižek

Amor impiedoso da morte
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

A falsidade do sacrifício

            O que é, então, o sacrifício? O que nele é falso a priori? Em sua forma mais elementar, o sacrifício se baseia na noção de troca: eu ofereço ao Outro alguma coisa preciosa para mim a fim de obter do Outro alguma coisa ainda mais vital para mim (as tribos “primitivas” sacrificam animais ou mesmo seres humanos de modo que os Deuses os recompensem com chuvas suficientes, vitória militar, etc.) O próximo nível, já mais intrincado, é conceber o sacrifício como um gesto que não almeja diretamente alguma troca lucrativa com o Outro para quem nós sacrificamos: seu objetivo mais básico é, antes, assegurar que HÁ um Outro lá fora que é capaz de responder (ou não) a nossas súplicas sacrificais. Ainda que o Outro não conceda meu desejo, eu posso ao menos assegurar-me de que HÁ um Outro que, talvez da próxima vez, responda de forma diferente: o mundo lá fora, inclusive todas as catástrofes que podem se abater sobre mim, não é uma maquinaria cega sem sentido, mas um parceiro em um possível diálogo, de maneira que mesmo um resultado catastrófico deve ser lido como uma resposta significativa, não como um reino do acaso cego... Lacan aqui vai um passo além: a noção de sacrifício usualmente associada com a psicanálise lacaniana é a de um gesto que representa o repúdio à impotência do grande Outro: em sua forma mais elementar, o sujeito não oferece seu sacrifício para obter lucro para si mesmo, mas para preencher a falta no Outro, pára sustentar a aparência de onipotência do Outro ou, ao menos, sua consistência. Relembremos Beau Geste, o clássico melodrama de aventura de 1938, no qual o mais velho de três irmãos (Gary Cooper) que vivem com sua benevolente tia, no que parece ser um gesto de ingratidão e excessiva crueldade, rouba o colar de diamantes extremamente caro que é o orgulho da família de sua tia, e lhe dá sumiço, sabendo que sua reputação estará arruinada, e que ele irá para sempre ser conhecido como o ingrato ladrão de sua benfeitora –  por que ele fez isso, então? No final do filme, ficamos sabendo que ele fez isso a fim de evitar a embaraçosa revelação de que o colar era falso: ele sabia, sem que os outros soubessem, que a tia, havia algum tempo, vendera o colar a um rico marajá para salvar a família da falência, e que o substituíra por uma imitação sem valor. Pouco antes de seu “roubo”, ele soube que um tio distante que era co-proprietário do colar queria vendê-lo para obter ganho financeiro; se o colar fosse vendido, o fato de que era falso indubitavelmente viria à tona, assim, a única maneira para conservar a honra de sua tia e, portanto da família, seria encenar seu roubo... Esta é a decepção oportuna do crime de roubo: ocluir o fato de que, em última instância, NÃO HÁ NADA PARA ROUBAR – desta forma, a falta constitutiva do Outro é ocultada, i.e., a ilusão de que o Outro possuía o que lhe foi roubado é mantida. Se no amor dá-se o que não se possui, em um crime de amor rouba-se do Outro amado o que o Outro não possui... a isso alude o “beau geste” do título do filme.[i] E aí reside também o sentido do sacrifício: nos sacrificamos (nosso futuro e nossa honra em respeito à sociedade) para manter a aparência de honra do Outro, para salvar o Outro amado da vergonha.
            No entanto, a rejeição de Lacan do sacrifício como inautêntico situa a falsidade do gesto sacrifical em outra dimensão, muito mais estranha. Tomemos o exemplo de Enigma (1981) de Jeannot Szwarc, uma das melhores variações no que é indiscutivelmente a matriz básica dos thrillers de espionagem da guerra fria com pretensões artísticas, à maneira de John Le Carré (um agente é enviado para o frio para cumprir uma missão; quando, no território inimigo, ele é traído e capturado, percebe que foi sacrificado, i.e., que o fracasso da missão foi desde o início planejado por seus superiores a fim de alcançar o verdadeiro objetivo da operação – qual seja, manter a identidade secreta do verdadeiro infiltrado do ocidente no aparato da KGB...). Enigma conta a história de um dissidente jornalista que virou espião, que após emigrar para o ocidente é recrutado pela CIA e enviado à Alemanha Oriental para se apossar de um chip de computador codificador/decodificador que permite a quem o possui ler todos os comunicados entre o quartel-general da KGB e seus postos avançados. Contudo, pequenos sinais dizem ao espião que há algo de errado com essa missão, i.e., que os alemães e russos já haviam sido informados sobre sua chegada – o que está acontecendo, então?  Trata-se de que os comunistas têm um infiltrado no quartel-general da CIA que os informou sobre essa missão secreta? Como ficamos sabendo perto do final do filme, a solução é muito mais engenhosa: a CIA já possui o chip codificador, mas, infelizmente, os russos suspeitam disso, e pararam de usar temporariamente sua rede de computadores para seus comunicados secretos. O verdadeiro alvo dessa operação era uma tentativa da CIA de convencer os russos de que não possuíam o chip: eles enviam um agente para obtê-lo e, ao mesmo tempo, deliberadamente deixam os russos saberem que há uma operação em curso para obter o chip; a CIA, claro, conta com o fato de que os russos irão prender o agente. O resultado final então será que, ao evitar a missão com sucesso, os russos ficarão convencidos de que os americanos não o possuem e que, portanto, é seguro usar suas comunicações... O aspecto trágico da história, claro, é que a falha da missão é levada em conta: a CIA quer que a missão falhe, i.e., o pobre agente dissidente é sacrificado por antecipação para o objetivo maior de convencer o oponente de que não se possui seu segredo. A estratégia aqui é encenar uma operação de busca, a fim de convencer o Outro (o inimigo) de que já não se possui o que se está procurando – em suma, finge-se uma falta, um querer, para se ocultar do Outro que já se possui o agalma, o segredo mais íntimo do Outro. Esta estrutura não está de certa forma conectada com o paradoxo básico da castração simbólica como constitutiva do desejo, no qual o objeto tem que ser perdido para que seja recuperado na proporção inversa do desejo regulado pela Lei? A castração simbólica é comumente definida como a perda de algo que nunca se possuiu, i.e., o objeto-causa do desejo é um objeto que emerge através do mesmo gesto de sua perda/retirada; contudo, o que encontramos aqui, no caso de Enigma é o avesso da estrutura de se fingir uma perda. Na medida em que o Outro da Lei simbólica proíbe a jouissance, a única maneira para o sujeito fruir é fingir que lhe falta o objeto que lhe oferece a jouissance, i.e., ocultar sua posse do olhar do Outro através da encenação do espetáculo da busca desesperada por ele. Isto também lança uma nova luz sobre o tópico do sacrifício: faz-se o sacrifício não para se obter algo do Outro, mas para enganar o Outro. E o mesmo, em um nível diferente, não vale para o assim chamado “sacrifício da mulher”, para a mulher que adota o papel de permanecer na sombra, sacrificando-se por seu marido ou por sua família? Este sacrifício não é também falso, no sentido de servir para enganar o Outro, de convencê-lo de que, através do sacrifício, a mulher não está na realidade ávida e desesperadamente tentando obter algo que lhe falta? Neste preciso sentido, sacrifício e castração não são opostos: longe de envolver a aceitação voluntária da castração, o sacrifício é a maneira mais refinada de renunciar a ela, i.e., de atuar como se efetivamente se possuísse o tesouro escondido que faz de mim um objeto de amor digno...[ii]    
            Em seu Seminário não publicado L’angoisse[1] (1962/1963, Lição de 5 de dezembro de 1962), Lacan enfatiza a maneira como a ansiedade histérica se relaciona com a falta fundamental no Outro, tornando-o inconsistente/barrado: um histérica percebe o vazio no Outro, sua impotência, inconsistência, falsidade, mas ele não está pronto para sacrificar a parte de si mesmo que completaria o Outro, preenchendo seu vazio – essa recusa ao sacrifício sustenta a eterna reclamação histérica de que o Outro irá de algum modo manipulá-lo e explorá-lo, usá-lo, privá-lo de seu bem mais precioso... Mais precisamente, isto não significa que o histérico repudie sua castração (ele não é um psicótico ou um pervertido, i.e., ele aceita inteiramente sua castração); ele simplesmente não quer torná-la “funcional”, colocar-se a serviço do Outro, i.e., o que ele retém disso é “transformar sua castração naquilo que falta ao Outro, quer dizer, em algo positivo que é a garantia dessa função do Outro”. (Em contraste com o histérico, o perverso prontamente assume o papel de sacrificar-se, i.e., de servir como objeto-instrumento que preenche a falta no Outro – como Lacan colocou, o perverso “se oferece lealmente a jouissance do Outro”). A falsidade do sacrifício reside em seu pressuposto subjacente, que é o que eu efetivamente possuo, tenho em mim, o ingrediente precioso cobiçado pelo Outro e que promete preencher seu vazio. Olhando com mais detalhe, a recusa histérica, claro, aparece em toda a sua ambiguidade:  Eu me recuso em sacrificar o agalma em mim PORQUE NÃO HÁ NADA PARA SACRIFICAR, porque sou incapaz de preencher sua falta.[iii]


[1] N. do T.: Publicado no Brasil em 2005: LACAN, Jacques. O seminário, livro X: A angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.


[i] O interesse de Beau Geste reside também na fantasmática cena de abertura – a misteriosa fortaleza deserta na qual não há ninguém vivo, apenas soldados mortos dispostos em seus muros, um verdadeiro deserto face ao espectro do navio que vagueia sem tripulação. Perto do final, Beau Geste apresenta muito bem a mesma cena só que de dentro da fortaleza, i.e., descrevendo como essa assombrosa imagem da fortaleza com os soldados mortos foi gerada. Outro aspecto interessante é a oposição de duas comunidades: o lar da família inglesa de classe alta acolhedor dominado por uma mulher versus a totalmente masculina comunidade da Legião Estrangeira dominada pela fascinante figura do sádico, porém militarmente muito eficiente sargento russo Markoff.

[ii] A menção a le Carré está longe de ser acidental aqui:  em seus grandes romances de espionagem (iniciais), ele repetidamente dispõe o mesmo cenário fundamental da interconexão entre amor e traição, i.e., de como os dois termos, longe de serem simplesmente opostos,  a traição serve como a prova derradeira do amor por ele/ela. Traição por amor não é a forma derradeira de sacrifício?

[iii] Isto também nos permite responder à censura de Dominick La Capra de acordo com a qual a noção lacaniana de falta reúne dois níveis que tem que ser mantidos separados: a falta “ontológica” puramente formal constitutiva da ordem simbólica como tal, e as experiências traumáticas individuais (de maneira exemplar: o holocausto) que poderiam também NÃO ter ocorrido – catástrofes históricas particulares como o holocausto parecem ser assim “legitimadas” como fundamentadas diretamente no trauma fundamental que pertence à própria existência humana. (Ver Dominick la Capra, "Trauma, Absence, Loss," Critical Inquiry, Volume 25, Number 4 (Summer 1999), p. 696-727). Contra este mal-entendido, dever-se-ia enfatizar que a falta quasi-transcendental e os traumas particulares estão ligados de forma negativa: longe de ser a última ligação na cadeia contínua de encontros traumáticos que remontam à “castração simbólica”, as catástrofes como o holocausto são eventos contingentes (e desta forma, evitáveis) que ocorrem como o resultado final das tentativas para OFUSCAR a falta constitutiva quasi-transcendental.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Amor impiedoso da morte - Por que Cristo morreu na cruz? Slavoj Žižek

Amor impiedoso da morte

Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


Por que Cristo morreu na cruz?

            Como, então, nós rompemos o impasse do consumo parcimonioso, se essas duas saídas são falsas? Talvez seja a noção cristã de ágape que aponte uma saída: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único Filho, que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha vida eterna” (João 3:16). Como, exatamente, discernimos este princípio básico da fé cristã?[i] Os problemas emergem no momento em que compreendemos este “oferecendo seu único Filho”, i.e., a morte de Cristo, como um gesto de sacrifício entre Deus e o homem. Se afirmamos que, pelo sacrifício do que é mais caro a Ele, Seu próprio filho, Deus redime a humanidade, comprando seus pecados, então há em última instância apenas duas maneiras de se explicar este ato: ou o próprio Deus demanda essa retaliação, i.e., Cristo se sacrifica como o representante da humanidade para satisfazer a necessidade de retribuição a Deus seu pai; ou Deus não é onipotente, i.e., Ele é, como um herói trágico grego, subordinado a um Destino maior: Seu ato de criação, como o ato fatídico de um herói grego, traz terríveis conseqüências inesperadas, e a única maneira para que ele restabeleça o equilíbrio de justiça é sacrificar o que Lhe é mais precioso, Seu próprio filho – neste sentido, o próprio Deus é o derradeiro Abraão. O problema fundamental da cristologia é o de como evitar essas duas leituras do sacrifício de Cristo que se impõem como óbvias:
Qualquer idéia de que Deus ‘necessita’ de reparação, seja de nós ou de nossos representantes deveria ser banida, bem como a idéia de que há algum tipo de ordem moral que está acima de Deus e à qual Ele deve se conformar exigindo reparação.[ii]
            O problema é, claro, como evitar essas duas opções, quando o próprio texto da Bíblia parece apoiar sua premissa comum: o ato de Cristo é repetidamente designado como “resgate”, pelas palavras do próprio Cristo, por outros textos bíblicos, bem como pelos mais proeminentes comentadores da Bíblia. Jesus, ele mesmo, diz que veio “para dar sua vida em resgate de muitos (Marcos 10:45); Timóteo 2:5-6 fala de Cristo como o “mediador entre Deus e a humanidade (...) que ofereceu sua vida como um resgate para todos”; o próprio São Paulo, quando estabelece que os cristãos são escravos que foram “comprados por preço” (Coríntios 6:20), implica a noção de que a morte de Cristo deveria ser concebida como compra de nossa liberdade. Assim, nós temos um Cristo que, através de seu sofrimento e morte, paga o preço pela nossa libertação, nos redimindo do fardo do pecado; se nós, então fomos libertados do cativeiro do pecado e do medo da morte através da morte e ressurreição de Cristo, quem exigiu esse preço? A quem o resgate foi pago? Alguns dos antigos escritores cristãos, percebendo claramente este problema propuseram uma solução lógica, quando não herética: na medida em que o sacrifício de Cristo nos liberta do poder do Demônio (Satã), então a morte de Cristo foi o preço que Deus teve que pagar ao Demônio, nosso “dono” quando vivemos em pecado, a fim de que o Demônio nos libertasse. Mais uma vez, aí reside o impasse: se Cristo é oferecido em sacrifício ao próprio Deus, surge a questão de por que Deus exige esse sacrifício.  Era ainda o Deus ciumento e cruel que exigia um alto preço para se reconciliar com a humanidade que o traiu? Se o sacrifício de Cristo foi oferecido a mais alguém (o Demônio), então temos o estranho espetáculo de Deus e o Diabo como parceiros numa troca.
            Claro, a morte sacrifical de Cristo é fácil de ser “entendida”, há uma tremenda “força psicológica” neste ato: quando somos assombrados pela ideia de que as coisas estão erradas e que somos afinal responsáveis por isso, de que há alguma coisa profundamente errada inerente à própria existência da humanidade, de que nós somos sobrecarregados com uma tremenda culpa que nunca poderemos reparar, a ideia de Deus, o ser absolutamente inocente, sacrificando-se por nossos pecados pelo amor infinito a nós e então aliviando-nos de nossa culpa, serve como prova de que nós não estamos sozinhos, de que temos importância para Deus, de que Ele cuida de nós, de que somos protegidos pelo infinito amor do Criador, enquanto que, ao mesmo tempo, nos tornamos infinitamente endividados com Ele. O sacrifício de Cristo serve então como lembrança e incitação eternas a conduzir uma vida ética – o que quer que façamos, devemos sempre lembrar que o próprio Deus deu Seu filho por nós... No entanto, tal conta é claramente insuficiente, na medida em que tem que explicar seus atos em termos teológicos inerentes, não em termos de mecanismos psicológicos. O enigma permanece, e mesmo os mais sofisticados teólogos (como Anselmo de Canterbury) tendem a regredir para a armadilha do legalismo. De acordo com Anselmo, quando há pecado e culpa, tem de haver uma satisfação, algo tem que ser dado pelo qual a ofensa causada pelo pecado humano será purgada. Contudo, a própria humanidade não é forte o bastante para proporcionar essa satisfação necessária – apenas Deus pode fazê-lo. A única solução é, então, a encarnação, a emergência [emergence] de um Deus-homem, de uma pessoa que é inteiramente divina e inteiramente humana: como um Deus, ele tem a habilidade para pagar a satisfação requerida, e como um homem, ele tem a obrigação de pagar.[iii]
            O problema dessa solução é que a noção legalista do caráter inexorável da necessidade de pagar pelo pecado (o delito deve ser compensado) não é questionada, mas simplesmente aceita – a questão aqui é realmente muito ingênua: por que Deus não nos perdoa diretamente? Por que ele tem que obedecer à necessidade de pagar pelo pecado? Não é um princípio básico do cristianismo precisamente o oposto, a suspensão desta lógica legalista da retaliação, a ideia de que através do milagre da conversão um Novo Começo é possível, através do qual as dívidas passadas (pecados) são simplesmente apagadas? Seguindo uma linha aparentemente similar, mas com uma ênfase radicalmente deslocada, Karl Barth oferece uma tentativa de resposta em seu ensaio “O Juiz Julgado em Nosso Lugar”: Deus como juiz passou primeiro por um julgamento da humanidade, e então se tornou humano e pagou ele mesmo o preço, tomando sobre si a punição, “a fim de que desta maneira seja efetuada nossa reconciliação com ele, e nossa conversão a ele”.[iv] Então, colocando em termos um tanto inadequados, Deus se tornou homem e se sacrificou a fim de estabelecer o exemplo derradeiro que evocaria nossa simpatia por Ele, e nos converteria a Ele... Esta ideia foi claramente articulada primeiramente por Abelardo:
O Filho de Deus assumiu nossa natureza, e tomou-a sobre si mesmo para nos ensinar pela palavra e pelo exemplo, mesmo ao ponto da morte, desta forma unindo-nos a Ele através do amor.[v]
            A razão para que Cristo tenha que sofrer e morrer não diz respeito aqui à noção legalista de retaliação, mas ao edificante efeito religioso-moral de sua morte em nós, humanos pecadores: se Deus nos perdoasse diretamente, isso não nos transformaria, tornando-nos homens novos e melhores – somente a compaixão e sentimentos de gratidão e dívida provocadas pela cena do sacrifício de Cristo que tem o poder necessário para nos transformar... é fácil ver que alguma coisa está errada neste raciocínio: não é este um Deus estranho, que sacrifica seu próprio filho, o que há de mais importante para ele, apenas para impressionar os seres humanos? As coisas se tornam ainda mais estranhas se nos detivermos na ideia de que Deus sacrificou seu Filho a fim de nos unir a Ele através do Amor: o que estava em jogo então não era apenas o amor de Deus por nós, mas também seu desejo (narcisista) de ser amado por nós, humanos – Deus, nesta leitura, não é estranhamente semelhante à governanta louca de Heroine, de Patricia Highsmith, que ateia fogo em sua casa para poder provar sua devoção à família salvando as crianças do furioso incêndio? Nesta linha, Deus primeiro causa a Queda (i.e., provoca a situação na qual nós precisamos dele) e então nos redime, i.e., tira-nos da confusão pela qual é Ele o responsável.
            Isto significa, então, que o Cristianismo É uma religião falha? Ou há uma leitura diferente possível da Crucificação? O primeiro passo para sair dessa dificuldade é relembrar as declarações de Cristo que perturbam – ou antes, simplesmente suspendem – a lógica circular da vingança e punição destinada a restabelecer o equilíbrio de Justiça: em vez de “Olho por olho!”, temos “Se alguém esbofeteia sua face direita, ofereça-lha a outra face!”. O ponto aqui não é um masoquismo estúpido, aceitação humilde da humilhação, mas o esforço para interromper a lógica circular do restabelecimento do equilíbrio de justiça. Nessa mesma linha, o sacrifício de Cristo, com sua natureza paradoxal (é a mesma pessoa contra qual nós, seres humanos, pecamos, cuja verdade traímos, que expiou e pagou o preço por nossos pecados), suspende a lógica de pecado e punição, de retaliação legal ou ética, do “acerto de contas”, trazendo-a ao ponto da auto-referência. A única maneira de alcançar essa suspensão, romper a cadeia de crime e punição/retaliação, é assumir a disposição total para o auto-apagamento. E o AMOR, na sua forma mais elementar, não é outra coisa do que o gesto paradoxal de quebrar a cadeia da retaliação.
            O terceiro passo é deter-se na noção de Cristo como o mediador entre Deus e a humanidade: para que a humanidade seja restaurada a Deus, o mediador deve se sacrificar. Em outras palavras, enquanto Cristo está aqui, não pode haver Espírito Santo, que É a figura da reunificação entre Deus e a humanidade. Cristo como mediador entre Deus e a humanidade é, em termos atuais desconstrucionistas, a condição de possibilidade E a condição de impossibilidade entre os dois: como mediador, ele é ao mesmo tempo o obstáculo que impede a total mediação dos pólos opostos. Ou, para colocar em termos hegelianos do silogismo cristão: há duas “premissas” (Cristo é o filho de Deus, inteiramente divino, e Cristo é filho do homem, inteiramente humano), e para unir os pólos opostos, para chegar à “conclusão” (a humanidade está totalmente unida com Deus no Espírito Santo), o mediador deve apagar-se do quadro. A morte de Cristo não é parte do ciclo eterno de encarnação e morte divinas, no qual Deus repetidamente aparece e retira-se para si mesmo, em seu além. Como colocou Hegel, o que morre na cruz NÃO é uma encarnação humana do Deus transcendente, mas o próprio Deus do Além. Através do sacrifício de Cristo, o próprio Deus não é mais além, mas passa para o Espírito Santo (da comunidade religiosa). Em outras palavras, se Cristo fosse o mediador entre duas entidades separadas (Deus e a humanidade), sua morte significaria que não há mais uma mediação, que as duas entidades estão novamente separadas. Então, obviamente, Deus deve ser o mediador em um sentido mais forte: não se trata de que, no Espírito Santo, não há mais necessidade de Cristo por que os dois pólos estão diretamente unidos; para esta mediação ser possível, a natureza de ambos os pólos deve ser radicalmente modificada, i.e., em um único movimento, ambos devem sofrer uma transubstanciação. Cristo é, por outro lado, o meio/mediador evanescente através do qual a própria morte do Deus-Pai “passa para” o Espírito Santo e, por outro lado, o meio/mediador evanescente através de cuja morte a própria comunidade humana “passa para” o novo estágio espiritual.
            Essas duas operações não são separadas, elas são os dois aspectos de um único e mesmo movimento: o mesmo movimento através do qual Deus perde o caráter de Além transcendental e passa para o Espírito Santo (o espírito da comunidade de crentes) EQUIVALE ao movimento através do qual a comunidade humana “decaída” é elevada para o Espírito Santo. Em outras palavras, não se trata de que, no Espírito Santo, homens e Deus se comuniquem diretamente, sem a mediação de Cristo; trata-se, antes, de que eles coincidem diretamente – Deus NÃO É SENÃO o Espírito Santo da comunidade de crentes. Cristo tem que morrer, não para permitir a comunicação direta entre Deus e a humanidade, mas porque não há mais nenhum Deus transcendental com quem se comunicar.
            Como observou recentemente Boris Groys,[vi] Cristo é o primeiro e único Deus totalmente “ready made” na história das religiões: Ele é totalmente humano, portanto indistinguível dos outros homens comuns – não há nada em sua aparência física que faça dele um caso especial. Assim, da mesma maneira que o mictório ou a bicicleta de Duchamp não eram objetos de arte por causa de suas qualidades inerentes, mas por causa do lugar que eles ocupavam, Cristo não é Deus por causa de suas qualidades inerentes “divinas”, mas porque, precisamente como inteiramente humano, ele é o filho de Deus. Por esta razão, a atitude propriamente cristã a respeito da morte de Cristo não é a de um apego melancólico a sua figura morta, mas a da infinita alegria: o horizonte derradeiro da Sabedoria pagã é a melancolia – em última instância, tudo retorna ao pó, deve-se aprender o desapego, a renunciar ao desejo – enquanto que, se alguma vez houve uma religião que NÃO é melancólica, é o cristianismo, apesar da falsa aparência de apego melancólico a Cristo como objeto perdido.
            O sacrifício de Cristo é, então, num sentido radical, SEM SENTIDO: não um ato de troca, mas um gesto supérfluo, excessivo, injustificável, destinado a demonstrar Seu amor por nós, pela humanidade decaída. É como quando, em nossa vivência cotidiana, queremos demonstrar a alguém o quanto nós realmente a amamos, e só podemos fazê-lo através de um gesto de gasto supérfluo. Cristo não “paga” por nossos pecados – como foi esclarecido por São Paulo, é a própria lógica do pagamento, da troca, que, de certa forma, É o pecado, e a aposta do ato de Cristo é nos mostrar que a cadeia de trocas pode ser interrompida. Cristo não redime a humanidade pagando o preço por nossos pecados, Cristo, literalmente, APAGA-os, retroativamente os “desfaz” através do amor.    


[i] Quanto à leitura materialista desta noção, ver capítulos 11-15 de The Fragile Absolute.

[ii] O'COLLINS, G. Christology, Oxford: Oxford University Press 1995, p. 286-287.

[iii] Eu conto aqui com Alister E. McGrath, An Introduction to Christianity, Oxford: Blackwell 1997, p. 138-139.

[iv] Citado em MCGRATH, p. 141.

[v] Idem., p. 141-142

[vi] Conversa privada, outubro de 1999.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Amor impiedoso da morte - A poupança como um pecado mortal Slavoj Žižek

 Amor impiedoso da morte
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


A poupança como um pecado mortal
Em que, então, a ruptura da modernidade existe? Qual é a lacuna ou o impasse que o mito se esforça para encobrir? Fica-se tentado a voltar à velha tradição moralista: o capitalismo se origina no pecado da poupança, da avareza – a noção freudiana há muito desacreditada do “caráter anal” e suas ligações com a acumulação capitalista recebe aqui um inesperado impulso. Em Hamlet (Ato I, Cena 2), o caráter repugnante da poupança excessiva é precisamente formulado:
Horácio: Meu Senhor, eu vim para ver o funeral de seu pai.
Hamlet: Rogo-te, não zombes de mim, colega
Penso que foi para ver o casamento de minha mãe.
Horácio: Na verdade, meu Senhor, foi logo em seguida.
Hamlet: Economia, economia, Horácio! Os assados do velório puderam ser servidos como frios na mesa nupcial.
Eu desejara topar no céu com o mais feroz dos inimigos,
Do que ter visto semelhante dia, Horácio!

      O ponto chave aqui é que “economizar” não designa apenas uma frugalidade indistinta, mas uma recusa específica a pagar o que é devido ao ritual adequado de luto: a poupança (nesse caso, o uso duplo da comida) viola o valor ritual, aquele que, de acordo com Lacan, Marx negligenciou em sua consideração sobre o valor:

Este termo /poupança/é uma advertência oportuna que, nas acomodações elaboradas pela sociedade moderna entre valores de uso e valores de troca, talvez haja algo que tenha sido negligenciado nas análises marxianas da economia, algo dominante para o pensamento de nossa época – algo cuja força e extensão nós sentimos a cada momento: valores rituais.[i]


Qual é, então, o status da poupança como um vício?[ii] Em um modo aristotélico, seria fácil situar a poupança como o oposto extremo da prodigalidade, e então, é claro, construir algum termo médio – ou seja, prudência, a arte dos gastos moderados, evitando ambos os extremos – como a verdadeira virtude. No entanto, o paradoxo do avaro é que ele realiza um excesso da própria moderação. Quer dizer, a qualificação padrão do desejo se concentra em seu caráter transgressivo: ética (em seu sentido pré-moderno de “arte de viver”) é, em última instância, a ética da moderação, de resistir ao que insta a ir além de certos limites, uma resistência contra o desejo que é por definição transgressivo – paixão sexual que me consome inteiramente, glutonaria, paixão destrutiva que não se detém nem mesmo ao assassinato... Em contraste com essa noção transgressiva de desejo, o Avaro investe com (e, portanto, com uma qualidade excessiva) o desejo da própria moderação: não gaste, economize, retenha em vez de soltar – todas as qualidades “anais” proverbiais. E é somente ESTE desejo, o próprio anti-desejo, que é desejo por excelência. O uso da noção hegeliana de gegensaetzliche Bestimmung[iii] é inteiramente justificado aqui. Marx reivindicou que na série produção-distribuição-troca-consumo, o termo produção está duplamente inscrito, ele é simultaneamente um dos termos na série e o princípio estruturante de toda a série: na produção como um dos termos da série, a produção (como princípio estruturante) “encontra a si mesma em sua determinação oposta”,[iv] como colocou Marx, usando o termo hegeliano preciso. E o mesmo vale para o desejo: há diferentes espécies de desejo (i.e., do apego excessivo que compromete o princípio do prazer); entre essas espécies, o desejo encontra “a si mesmo” em sua “determinação oposta” sob o disfarce do avaro e sua economia, o oposto mesmo do transgressivo movimento do desejo. Lacan tornou isso claro a propósito de Molière:

O objeto da fantasia, imagem e pathos, é esse outro elemento que toma o lugar do que o sujeito é simbolicamente desprovido. Então o objeto imaginário está em uma posição de condensar em si mesmo as virtudes ou a dimensão do ser e tornar-se essa verdadeira ilusão do ser /leurre de l’etre/ que Simone Weil trata quando enfoca as relações muito densas e opacas de um homem com o objeto de seu desejo: a relação do Avarento de Molière com seu cofre. Esta é a culminação do caráter de fetiche do objeto no desejo humano./.../ O caráter opaco do objeto a na fantasia imaginária determina-o em suas formas mais pronunciadas como o pólo do desejo perverso.[v]    
            Assim, se queremos discernir o mistério do desejo, nós não deveríamos nos concentrar, em relação ao amante ou ao assassino, na servidão de sua paixão, pronto a por em jogo tudo por ela, mas na atitude do avarento diante de seu cofre, o lugar secreto onde ele reúne e mantém suas posses. O mistério, claro, é que, na figura do avarento, excesso coincide com falta, poder com impotência, entesouramento avaro com a elevação do objeto à Coisa intocável/proibida que se pode apenas observar, nunca desfrutar totalmente. O avaro derradeiro não seria o Bartolo da ária "A un dottor della mia sorte" do Iº ato de Il barbiere di Siviglia  de Rossini? Sua loucura obsessiva mostra perfeitamente o fato de que ele é totalmente indiferente à perspectiva de fazer sexo com a jovem Rosina – ele quer desposá-la a fim de possuí-la e guardá-la no mesmo sentido em que um avaro possui seu cofre.[vi] Em termos mais filosóficos, o paradoxo do avaro é que ele une duas tradições éticas incompatíveis: a ética aristotélica da moderação e a ética kantiana de uma demanda incondicional que descarrila o “princípio do prazer” – o avaro eleva a própria máxima da moderação em uma demanda incondicional kantiana. A mesma adesão à regra de moderação, o mesmo ato de evitar o excesso, gera, portanto, um excesso – um gozo excedente – de si mesmo.
            O modernismo capitalista, contudo, introduz uma torção nessa lógica: o capitalista não é mais o avaro solitário que se apega a seu tesouro escondido, espiando-o em segredo quando está sozinho, atrás de seguras portas cerradas, mas o sujeito que aceita o paradoxo básico de que a única maneira de preservar e multiplicar seu tesouro é gastá-lo – a fórmula de amor de Julieta da cena do balcão (“quanto mais eu dou, mais eu tenho”)  sofre aqui uma pequena torção – esta fórmula não é a própria fórmula da empresa capitalista? Quanto mais o capitalista investe (e toma dinheiro emprestado a fim de investir), mais ele tem, de modo que, no fim das contas, temos um capitalista puramente virtual, à maneira de Donald Trump, cujo “patrimônio líquido” em dinheiro é praticamente zero ou mesmo negativo, ainda que passe por rico, por conta da perspectiva de lucros futuros. Então, de volta à “determinação oposta” hegeliana, o capitalismo, em certo sentido, gira em torno da noção de poupança como a determinação oposta (a forma da aparência) de ceder ao desejo (i.e. consumir o objeto): o gênero é aqui a avareza, enquanto que o excessivo consumo ilimitado é a própria avareza em sua forma de aparição (determinação oposta).
            Este paradoxo básico nos permite gerar até mesmo fenômenos como a mais elementar estratégia de marketing, que é apelar à economia do consumidor: a derradeira mensagem dos filmes publicitários não é “Compre isto, gaste mais, e você irá economizar, você terá um adicional de graça!”? Relembremos a proverbial imagem machista da esposa que volta para casa após fazer compras e informa a seu marido: “Acabo de poupar-nos $ 200! Embora eu quisesse comprar apenas uma jaqueta, eu comprei três, e então tive $ 200 de desconto!” A incorporação desse adicional é o tubo de creme dental, cujo último terço está pintado com uma cor diferente, com letras garrafais: “VOCÊ TEM 30% DE GRAÇA!” – eu estou sempre tentado a dizer em tal situação: “OK, então me dê apenas esses 30% de creme dental de graça!”. No capitalismo a noção de “preço justo” é um preço com DESCONTO.  A designação gasta “sociedade de consumo”, portanto, serve somente se concebermos o consumo como o modo de aparição de seu próprio oposto, a poupança.[vii]
            Aqui, deveríamos voltar a Hamlet e ao valor ritual: o ritual é, em última instância, o ritual de sacrifício que inaugura o espaço para o consumo generoso – depois que sacrificamos aos deuses as vísceras do animal abatido (coração, intestinos), estamos livres para fruir uma saudável refeição com a carne remanescente. Em vez de permitir consumo livre, sem sacrifícios, a “economia total” moderna que quer dispensar esses sacrifícios ritualizados “supérfluos” gera os paradoxos da popança – NÃO existe consumo generoso, o consumo é permitido apenas na medida em que funciona como a forma da aparição de seu oposto. E o nazismo não foi a tentativa desesperada de restabelecer o valor ritual a seu lugar apropriado através do holocausto, este gigantesco sacrifício a “deuses obscuros”, como colocou Lacan em seu Seminário XI?[viii] Muito apropriadamente, o objeto sacrificado era o judeu, a própria incorporação dos paradoxos da poupança capitalistas. O fascismo deve ser situado dentro das séries de tentativas de contrariar esta lógica capitalista: além da tentativa fascista corporativista de “restabelecer o equilíbrio” através do corte do excesso incorporado no “judeu”, deve-se mencionar a as diferentes versões da tentativa de restabelecer o gesto soberano pré-moderno de puro gasto – lembremos da figura do drogado, o único verdadeiro “sujeito do consumo”, o único que consome a si mesmo, completamente, até a morte, em sua desenfreada  jouissance.[ix]


[i] LACAN, J. "Desire and the Interpretation of Desire in Hamlet," in Literature and Psychoanalysis, editado por Shoshana Felman, Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press 1982, p. 40. Em defesa de Marx, pode-se adicionar que essa “negligência” não é tanto erro de Marx, mas da própria realidade capitalista, i.e., das “acomodações elaboradas pela sociedade moderna entre valores de uso e valores de troca”.

[ii] Em relação a todo este subcapítulo, sou profundamente grato às conversas com Mladen Dolar, que desenvolveu essas noções muito mais, englobando também a gênese da figura anti-semita do judeu a partir desses paradoxos do Avaro.

[iii] HEGEL, W.F.G., Science of Logic, Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1969, p. 431.

[iv] MARX, K., Grundrisse, Harmondsworth: Penguin Books, 1972, p. 99.

[v] LACAN, J. "Desire and the Interpretation of Desire in Hamlet," p. 15.

[vi] Essa ária deve ser lida como parte do triângulo, juntamente com duas outras grandes auto-apresentações, "Largo al factotum" e "La calumnia."

[vii] Eu desenvolvo aqui outro aspecto do superego capitalista, cuja lógica é desenvolvida de maneira mais completa no capítulo 3 de ZIZEK, Slavoj, The Fragile Absolute , Londres: Verso, 2000.

[viii]  LACAN, J.  The Four Fundamental Concepts of Psycho-Analysis, New York: Norton 1979, p. 253.

[ix] A atenção atual à dependência de drogas como a ameaça derradeira ao edifício social pode ser devidamente compreendida contra o pano de fundo da predominante economia de consumo subjetivo como a forma de aparição da poupança: em épocas anteriores, o consumo de drogas era simplesmente uma entre várias práticas sociais semi-ocultadas, praticado por personagens reais (de Quincey, Baudelaire) e ficcionais (Sherlock).

Amor impiedoso da morte - Hamlet antes de Édipo Slavoj Žižek

Amor impiedoso da morte
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


 Hamlet antes de Édipo
Quando falamos sobre os mitos na psicanálise, estamos efetivamente falando sobre UM mito, o mito de Édipo – todos os outros mitos freudianos (o mito do pai primordial, a versão de Freud do mito de Moisés) são variações dele, ainda que necessárias. Contudo, com a história de Hamlet as coisas se complicam. A leitura de Hamlet padrão, ingênua, pré-lacaniana, concentra-se, claro, no desejo incestuoso de Hamlet por sua mãe. O choque de Hamlet pela morte de seu pai é assim explicado como o impacto traumático da realização de um violento desejo inconsciente (neste caso, para que o pai morra) sobre o sujeito; o espectro do pai morto que aparece para Hamlet é a projeção da própria culpa de Hamlet em relação a seu desejo-de-morte; seu ódio a Claudius é um efeito de rivalidade narcisista – Claudius, em vez de Hamlet, é quem tem sua mãe; sua aversão à Ofélia e ao sexo feminino em geral expressam seu repúdio ao sexo em sua modalidade incestuosa sufocante, que surge com a falta da interdição/sanção paterna... Assim, de acordo com essa leitura padrão, Hamlet, como uma versão modernizada de Édipo, testemunha o reforço da proibição do incesto edípica na passagem da Antiguidade para a Modernidade: no caso de Édipo, estamos ainda lidando com o incesto, enquanto que em Hamlet, o desejo incestuoso é reprimido e deslocado. E parece que a própria designação de Hamlet como um neurótico obsessivo aponta nesta direção: em contraste com a histeria que é encontrada em toda história (ao menos ocidental), a neurose obsessiva é manifestamente um fenômeno moderno.
            Embora não se deva subestimar a força de tal leitura freudiana de Hamlet, robusta e heróica, como a versão modernizada do mito de Édipo, o problema é como harmonizá-la como o fato de que, embora Hamlet – na linhagem de Goethe – possa aparecer como o modelo do intelectual moderno (introvertido, meditativo, indeciso), o mito de Hamlet é mais antigo do que o de Édipo. O arcabouço elementar da narrativa de Hamlet (o filho vinga seu pai contra o irmão malvado do pai que o assassinou e tomou seu trono; o filho sobrevive ao domínio ilegítimo de seu tio fazendo-se de bobo e proferindo observações “loucas” ainda que verdadeiras) é um mito universal encontrado em toda parte, das velhas culturas nórdicas, passando pelo antigo Egito, até o Irã e a Polinésia. Além disso, existem evidências suficientes para sustentar a conclusão de que a referência derradeira desta narrativa não concerne a traumas familiares, mas a eventos celestiais: o derradeiro “sentido” do mito de Hamlet é o movimento das estrelas em processão, i.e., o mito de Hamlet revestido pela narrativa familiar está altamente articulado com observações astronômicas...[i] Esta solução, no entanto, por mais convincente que possa parecer, se enreda em seu próprio impasse: o movimento das estrelas é em si sem sentido, apenas um fato da natureza sem ressonância libidinal, então por que as pessoas traduzem/metaforizam isso sob a forma de tal narrativa familiar que gera um tremendo envolvimento libidinal? Em outras palavras, a questão de “o que tem qual significado?” não é de forma alguma decidida por essa leitura: a narrativa de Hamlet “significa” as estrelas ou as estrelas “significam” a narrativa de Hamlet, i.e., os antigos usavam seu conhecimento astronômico para codificar impasses libidinais fundamentais da raça humana?
          Uma coisa, contudo, está clara aqui: temporalmente e logicamente a narrativa de Hamlet É mais antiga do que o mito de Édipo. Estamos aqui lidando com o bem conhecido mecanismo do deslocamento inconsciente de Freud: algo que é logicamente mais antigo é percebido (ou se torna, ou se inscreve a si mesmo na textura) como uma distorção secundária ulterior de alguma suposta narrativa “original”.  Aí reside a frequentemente desconhecida matriz elementar do “trabalho do sonho”, que envolve a distinção entre o pensamento-do-sonho latente e o desejo inconsciente articulado no sonho: no trabalho do sonho, o pensamento latente é cifrado/deslocado, mas é através desse mesmo deslocamento que o outro pensamento, verdadeiramente inconsciente se articula. Então, no caso de Édipo e Hamlet, no lugar da leitura historicista/linear de Hamlet como uma distorção secundária do texto de Édipo, o mito de Édipo é (como já reinvindicava Hegel) o mito fundador da civilização grega ocidental (o salto suicida da esfinge representando a desintegração do velho universo pré-grego); e é na “distorção” que faz Hamlet do Édipo que seu conteúdo reprimido se articula a si mesmo – a prova disso sendo o fato de que a matriz de Hamlet encontra-se em toda parte na mitologia pré-clássica, até o próprio antigo Egito, cuja derrota espiritual é assinalada pelo salto suicida da esfinge. (E se o mesmo vale, a propósito, para o cristianismo: não é tese de Freud que o assassinato de Deus no Novo Testamento traz à luz o trauma “renegado” do velho testamento?). Qual é, então, o “segredo” pré-edípico de Hamlet? Reter a idéia de que o Édipo é o mito “verdadeiro” e de que a narrativa de Hamlet é seu deslocamento/corrupção “modernizado” – a lição é que o “mito” de Édipo – e, talvez, a própria “ingenuidade” mítica – serve para obscurecer algum conhecimento proibido, em última instância o conhecimento sobre a obscenidade do pai.
          Como se relacionam ato e conhecimento em uma constelação trágica? A oposição básica é a que há entre Édipo e Hamlet: Édipo cumpre o ato (do assassinato do pai) porque ele não sabe o que faz; em contraste, Hamlet sabe, e, por essa razão, não é capaz de passar ao ato (de vingar a morte do pai). Além disso, como Lacan enfatiza, não é apenas Hamlet quem sabe, é também o pai de Hamlet quem misteriosamente sabe como está morto e como morreu, em contraste com o pai do sonho freudiano que não sabe que está morto – e é esse conhecimento excessivo que representa a tendência melodramática mínima de Hamlet. Quer dizer, em contraste com a tragédia, que é baseada em algum desconhecimento ou ignorância, o melodrama sempre envolve algum conhecimento imprevisto e excessivo possuído não pelo herói, mas por seu outro, o conhecimento comunicado ao herói no final, na reversão final melodramática. Basta relembrar a eminentemente melodramática reviravolta final de A Idade da Inocência de Wharton, na qual o marido que por muitos anos nutriu um ilícito amor apaixonado pela Condessa Olenska, toma conhecimento de que sua jovem esposa sabia o tempo todo a respeito de sua secreta paixão.  Talvez isso pudesse oferecer uma maneira de redimir o desafortunado As Pontes de Madison: se, no final do filme, a moribunda Francesca tomasse conhecimento de que seu marido supostamente simplório, terra a terra, sabia o tempo todo de seu breve affair com o fotógrafo da National Geographic e o quanto isso significava para ela, mas mantivesse o silêncio para não feri-la. Aí reside o enigma do saber: como é possível que toda a economia psíquica de uma situação radicalmente mude não quando o herói aprende diretamente alguma coisa (algum segredo a muito reprimido), mas quando ele fica sabendo que o outro (a quem ele tomava por ignorante) também sabia o tempo todo e apenas fingia não saber para manter as aparências – há algo mais humilhante do que um marido que, depois de um longo caso amoroso secreto, subitamente descobre que sua mulher sabia o tempo todo, mas manteve silêncio por polidez ou, ainda pior, por amá-lo? Em Laços de Ternura, Debra Winger, morrendo de câncer em uma cama de hospital, conta a seu filho (que a despreza energicamente por ter sido abandonado por seu pai) que sabe muito bem o quanto ele realmente a ama – ela sabe que em algum momento no futuro, depois de sua morte, ele reconhecerá isso para si mesmo; ele irá, então, sentir-se culpado pelo ódio que sentira de sua mãe, desse modo ela está deixando-o saber que ela antecipadamente o perdoa, livrando-o do futuro fardo da culpa... essa manipulação do sentimento de culpa futuro é melodrama em seu melhor; o mesmo gesto de perdão culpabiliza o filho por antecipação. (Aí, nessa inculpação, nessa imposição de uma dívida simbólica, através do próprio ato de exoneração, reside o maior truque do cristianismo).
          Há, no entanto, uma terceira fórmula a ser adicionada a esse par do “ele não sabe disso, embora ele o faça” e “ele sabe disso e, portanto, não pode fazê-lo”: “ele sabe muito bem o que ele está fazendo e, não obstante, ele o faz”. Se a primeira fórmula dá conta do herói tradicional e a segunda do herói do início da época moderna, o último, combinando saber E ato de uma maneira ambígua, dá conta do herói moderno tardio – contemporâneo. Quer dizer, essa terceira fórmula permite duas leituras completamente opostas, um pouco como o julgamento especulativo hegeliano, no qual o mais baixo e o mais alto coincidem: por um lado, “ele sabe muito bem o que está fazendo, e ele, não obstante o faz” é a mais clara expressão da atitude cínica de depravação moral – “Sim, eu sou a escória, enganando e mentindo, e daí? A vida é assim!”; por outro lado, a mesma postura do “ele sabe muito bem o que está fazendo e, não obstante, ele o faz” pode também representar o oposto mais radical do cinismo, i.e., para a consciência trágica que, embora o que eu esteja prestes s fazer traga conseqüências catastróficas para meu próprio bem-estar e para o bem-estar daqueles que me são próximos e queridos, eu, contudo, simplesmente TENHO que fazer, por conta da injunção ética inexorável. (Relembremos a paradigmática atitude do herói noir: ele está inteiramente ciente de que, se seguir o chamado da femme fatale é apenas a ruína que o aguarda, ele estará caindo em uma dupla armadilha, a mulher irá com certeza traí-lo, mas, não obstante, ele não pode resistir...) Esta divisão não é apenas a do domínio do “patológico” – bem-estar, prazer, lucro... – e da injunção ética: pode também ser a divisão das normas morais que eu normalmente sigo e a injunção incondicional que eu me sinto obrigado a obedecer, como o impasse de Abraão, que “sabe muito bem o que matar o próprio filho significa”, e, não obstante, resolve fazê-lo, ou como o cristão que está prestes a cometer um terrível pecado (sacrificar sua alma eterna) pelo objetivo maior da glória de Deus... em suma, a situação propriamente pós – ou meta – trágica moderna ocorre quando uma necessidade maior me compele a trair a própria substância ética de meu ser.


[i] Eu me refiro aqui, claro, a Hamlet’s Mill, o notório clássico New Age de Giorgio de Santillana e Hertha von Dechend (Boston: David R. Godine Publisher 1977).

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Órgãos sem Corpos – Gilles Deleuze 5. Quasi-causa por Slavoj Žižek

Órgãos sem Corpos – Gilles Deleuze

5. Quasi-causa
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Assim, por um lado, Manuel DeLanda, em sua excelente exposição sobre a ontologia de Deleuze, afirma a “desaparição do processo sob o produto”, a lógica que se apoia em uma longa tradição (hegeliano-marxista!) de reificação. “Este tema do encobrimento do processo sob o produto é chave na filosofia de Deleuze, na medida em que seu método filosófico é, ao menos em parte, concebido para superar a ilusão objetiva favorecida por essa ocultação”[1]. E o próprio nível da produção é inequivocamente designado como o nível das virtualidades: na e sob a realidade constituída, nas “extensivas e áridas propriedades ‘qualitativas’ do produto final”[2], deveríamos descobrir os traços do processo intensivo de virtualidades – Ser e Devir se relacionam como Real e Virtual. Como, então, combinamos esta inequívoca afirmação do Virtual como o lugar da produção que gera a realidade constituída com a não menos inequívoca declaração de que o virtual É produzido fora do real?
As multiplicidades não devem ser concebidas como possuindo a capacidade de interagir ativamente com outras através dessas séries. Deleuze pensa nelas como dotadas apenas de uma simples capacidade de serem afetadas, na medida em que são, em suas palavras, “entidades impassíveis – resultados impassíveis”. A neutralidade ou esterilidade das multiplicidades pode ser explicada da seguinte maneira.
Embora sua universalidade divergente faça-as independentes de qualquer mecanismo particular (a mesma multiplicidade pode ser realizada por vários mecanismos causais), elas dependem do fato empírico de que um mecanismo causal ou outro efetivamente existe.
(...) Elas não são entidades transcendentes, mas imanentes. (...) Deleuze vê as multiplicidades como “efeitos incorpóreos de causas corporais, isto é, como resultados históricos de causas reais, sem possuírem poderes causais em si mesmas. Por outro lado, como ele escreve, “na medida em que elas diferem em natureza dessas causas, elas entram, uma com a outra, em relações de quasi-causalidade. Juntas, elas entram em uma relação com uma quasi-causa, que em si mesma é incorporal e assegura-lhes uma independência muito especial. (...) Diferentemente das capacidades reais, que são sempre capacidades de afetar e serem afetadas, os afetos virtuais são nitidamente divididos em uma pura capacidade de serem afetados (exibida por multiplicidades impassíveis) e uma pura capacidade de afetar.[3]
O conceito de quasi-causa é o que previne que se regrida para um simples reducionismo: ele designa o simples agenciamento da causalidade transcendental. Tomemos um exemplo do próprio Deleuze, de seu A imagem-tempo: a emergência [emergence] do movimento neo-realista de cinema.  Podemos, claro, explicar o neo-realismo por um conjunto de circunstâncias históricas (o trauma da Segunda Guerra Mundial, etc.). No entanto, há um excesso na emergência [emergence] do Novo: o neo-realismo é um Evento que não pode simplesmente ser reduzido às suas causas materiais/históricas, e a “quasi-causa” é a causa desse excesso, a causa que torna um Evento (uma emergência [emergence] do Novo) irredutível às suas circunstâncias históricas. Pode-se dizer também que a quasi-causa é o segundo nível, a metacausa do próprio excesso do efeito sobre suas causas (corporais). Esta é a maneira como se deveria entender o que Deleuze diz sobre ser afetado: na medida em que o Evento incorporal é um puro afeto (um resultado estéril-neutro-impassível), e na medida em que algo Novo (um novo Evento, um Evento do/como o Novo) pode emergir se a cadeia de suas causas corporais não está completa, dever-se-ia postular, além e acima da rede de causas corporais, uma capacidade para afetar pura, transcendental. Este, também, é o motivo de Lacan ter apreciado tanto a Lógica do sentido: a quasi-causa de Deleuze não é o equivalente exato do objet petit a de Lacan, essa entidade imaterial, espectral, pura, que serve como o objeto-causa do desejo?
Devemos ser muito precisos aqui, no sentido de não perdermos o ponto: Deleuze não está afirmando um simples dualismo psicofísico no sentido de alguém como John Searle; ele não está oferecendo duas “descrições” diferentes do mesmo evento. Não se trata de que o mesmo processo (por exemplo, uma atividade de fala) possa ser descrito de maneira estritamente naturalista, como um processo físico e neuronal incorporado em sua causalidade efetiva, ou, por assim dizer, “de dentro”, no nível do sentido, onde a causalidade (“eu respondo sua pergunta porque eu a entendo”) é pseudocausalidade. Em tal abordagem, a causalidade corporal-material permanece completa, enquanto que a premissa básica da ontologia de Deleuze é que a causalidade corporal NÃO é completa: na emergência do novo, alguma coisa ocorre que NÃO PODE ser completamente descrita no nível das causas e efeitos corporais. A quasi-causa não é um teatro de sombras ilusório, como uma criança que pensa que é ela que magicamente faz um brinquedo correr, inconsciente sobre a causalidade mecânica que efetivamente faz o trabalho – a quasi-causa, ao contrário, preenche a lacuna da causalidade corporal. Neste sentido estrito, e na medida em que o Evento é o Evento-Sentido, a quasi-causa é o não-senso como inerente ao Sentido. Se um discurso pudesse ser reduzido a seu sentido, então ele cairia na realidade – a relação entre o Sentido e  sua realidade designada seria simplesmente a relação entre objetos no mundo. O nonsense é o que mantém a autonomia do nível do sentido, de sua superfície de fluxo de puro devir em relação à realidade designada (“referente”). E isso não nos leva de volta ao desafortunado “significante fálico” como o significante “puro” sem significado? O falo lacaniano não é precisamente o ponto de não-senso sustentando o fluxo de sentido?
  Deve-se, portanto, problematizar a DUALIDADE bastante básica do pensamento de Deleuze, que é a do devir versus ser, que aparece em diferentes versões (Nômade versus Estado, molecular versus molar, esquizo versus paranóico, etc.) Essa dualidade é em última instância sobredeterminada como “bom versus mau”: o objetivo de Deleuze é libertar a força imanente de Deveir de sua auto-escravização à ordem do Ser. Talvez o primeiro passo para essa problematização seja confrontar essa dualidade com a dualidade do Ser e do Evento, enfatizando sua derradeira incompatibilidade: o Evento não pode ser simplesmente identificado com o campo virtual do Devir que gera a ordem do Ser – muito pelo contrário, na Lógica do sentido o Evento é enfaticamente afirmado como “estéril”, capaz apenas de pseudo-causalidade. Então, e se no nível do Ser nós tivermos uma multidão irredutível de particularidades interagindo, e é o Evento quem atua como a forma elementar de unificação/totalização?
  A remobilização de Deleuze do velho tópico idealista-humanista da regressão do resultado “reificado” para seu processo de produção é revelada aqui. A oscilação de Deleuze entre os dois modelos (devir como o efeito impassível; devir como o processo gerador) não é homóloga à oscilação, na tradição marxista, entre os dois modelos de “reificação”? Primeiro, há o modelo de acordo com o qual a reificação/fetichização percebe incorretamente as propriedades pertencentes a um objeto, objeto este que é parte de um elo sócio-simbólico. Ele é percebido em suas propriedades “naturais” imediatas (como se os produtos fossem mercadorias “em si mesmas”); há, então, a noção do jovem Lukacs mais radical (et al.) de acordo com a qual a realidade “objetiva” como tal é algo “reificado”, um resultado fetichizado de algum processo de produção subjetivo oculto. Assim, num paralelo exato com Deleuze, no primeiro nível, não devemos confundir as propriedades sociais de um objeto com suas propriedades naturais imediatas (no caso de uma mercadoria, seu valor de troca com suas propriedades materiais que satisfazem nossas necessidades). Da mesma forma, nós não devemos perceber (ou reduzir) um afeto virtual imaterial ligado a uma causa corporal às propriedades materiais de um corpo. No segundo nível, então, nós devemos conceber a própria realidade objetiva como resultado do processo produtivo social – da mesma maneira que, para Deleuze, o ser real é o resultado do processo virtual de devir.
Talvez o limite de Deleuze resida em seu vitalismo, em sua elevação da noção de Vida como um novo nome para Devir como o único verdadeiro Todo englobante, a Unidade, do próprio Ser. Quando Deleuze descreve a gradual autodiferenciação do puro fluxo de Devir, sua gradual “reificação” em entidades distintas, ele efetivamente não se torna uma espécie de processo de emancipação plotiniano? Contra essa postura “idealista”, devemos nos ater à tese de Badiou sobre a matemática como a única ontologia adequada, a única ciência do puro Ser: o Real sem sentido da multidão pura, a vasta frieza infinita do Vazio. Em Deleuze, Diferença se refere a múltiplas singularidades que expressam o Um da Vida infinita, enquanto que, com Badiou, nós temos multidão(ões) sem qualquer Unidade subjacente. Em Deleuze, Vida ainda é a resposta à questão “Por que há algo em vez de Nada?”, enquanto que a resposta de Badiou é mais sóbria, próxima ao budismo E a Hegel: Apenas HÁ nada, e todos os processos ocorrem “do Nada, através do Nada para o Nada”, como colocou Hegel.
Em sua determinação nocional de a realidade constituída ser minada diante do espaço virtual de devir, Deleuze condensa os dois níveis que, para Heidegger em Sein und Zeit, formam a oposição ontológica mais elementar, aquela da Vorhandene (presente-ao-alcance)[*] e do Zuhandene (pronto-para uso):[†] Para Deleuze, essa atitude padrão considera simultaneamente os objetos como entidades positivas isoladas ocupando um local particular no espaço geométrico abstrato, como objetos de representação contemplativa, e como objetos percebidos através do ponto de vista do engajamento existencial do sujeito, reduzidos ao seu uso potencial dentro do horizonte dos interesses, projetos, desejos, e assim por diante, do sujeito. (Para Heidegger, bem como para o Husserl tardio, o gesto metafísico elementar é precisamente a retirada da imersão em um mundo-vida concreto para a posição de observador abstrato). O fato dessa condensação não implica qualquer crítica direta de Deleuze: pode facilmente ser mostrado que o que ele define como o próprio trabalho conceitual da filosofia (ou, em um nível diferente, o trabalho da arte) mina AMBOS, nossa imersão no mundo-vida e nossa posição como observadores abstratos da realidade. Quando um filósofo produz um novo conceito, ou quando um artista representa um afeto de uma nova maneira, libertado do círculo fechado da subjetividade situada em uma realidade positiva dada, ele abala nossa imersão na habitual vida-mundo, bem como nossa posição segura como observadores da realidade. Nós perdemos nossa posição de observadores abstratos; somos forçados a admitir que novos conceitos ou obras de arte são o resultado de nossa produção engajada – ainda num mesmo gesto, a filosofia ou a arte também solapam nossa imersão no habitus de uma vida-mundo particular.[4]
Essa oposição do virtual como o lugar do Devir produtivo e do virtual como o Evento-Sentido estéril não é, ao mesmo tempo, a oposição entre “corpo sem órgãos”(CsO) e “órgãos sem corpo” (OsC)?  Por um lado, o fluxo do puro Devir produtivo não é o CsO, o corpo ainda não estruturado ou determinado como órgãos funcionais? E por outro lado, o OsC não é a virtualidade de puro afeto extraída de sua fixação em um corpo, como o sorriso em Alice no País das Maravilhas que persiste sozinho, mesmo quando o corpo do gato de Cheshire não está mais presente?: “ ‘Tudo bem’ disse o gato; e desta vez ele desapareceu bem lentamente, começando pelo final do rabo e terminando pelo sorriso, que permaneceu por algum tempo depois do resto ter ido embora. ‘Bem! Eu muitas vezes vi um gato sem um sorriso’, pensou Alice, ‘mas um sorriso sem um gato! É a coisa mais curiosa que eu já vi na minha vida!’”. Essa noção de um OsC extraído reemerge vigorosamente em A imagem-tempo sob a forma do OLHAR como um órgão autônomo não mais vinculado a um corpo.[5] Essas duas lógicas (o Evento como um poder que gera realidade; o Evento como estéril, puro efeito de interações corporais) também envolve duas instâncias psicológicas privilegiadas: o Evento gerador de Devir baseia-se na força produtiva do “esquizo”, essa explosão do sujeito unificado na multidão impessoal de intensidades desejantes, intensidades que são posteriormente constrangidas pela matriz edípica; o Evento como estéril, efeito imaterial, baseia-se na figura do masoquista que encontra satisfação no tédio, jogo repetitivo de rituais encenados cuja função é adiar para sempre a passage à l’acte sexual. Pode-se efetivamente  imaginar um contraste mais forte do que a do esquizo atirando-se sem qualquer restrição no fluxo de múltiplas paixões, e do mazoquista agarrando-se ao teatro de sombras no qual suas performances meticulosamente encenadas repetem reiteradamente o mesmo gesto estéril?
E se concebermos, então, a oposição de Deleuze dos corpos materiais e do efeito imaterial do sentido de acordo com a oposição marxista entre infra-estrutura e superestrutura? O fluxo de devir não é superestrutura par excellence – O estéril teatro de sombras ontologicamente subtraído do lugar da produção material, e precisamente, como tal, o único espaço possível do Evento? Em seu irônico comentário da Revolução Francesa, Marx opõe o entusiasmo revolucionário ao efeito sóbrio da “manhã seguinte”: o resultado efetivo da explosão revolucionária sublime, do Evento de liberdade, igualdade, e irmandade, é o miserável universo utilitarista/egoísta dos cálculos de mercado. (E, aliás, essa lacuna não é ainda maior no caso da Revolução de Outubro?) Contudo, não se deve simplificar Marx: seu ponto não é o da visão bastante comum de como a realidade vulgar do comércio é a “verdade” do teatro do entusiasmo revolucionário, “o que toda essa agitação realmente significa”. Na explosão revolucionária como um Evento, outra dimensão Utópica brilha, a dimensão da emancipação universal que, precisamente, é o excesso traído pela realidade de mercado que se apodera do “dia seguinte” – como tal, esse excesso não é simplesmente abolido, descartado como irrelevante, mas é, por assim dizer, transposto para o estado virtual, continuando a assombrar o imaginário emancipatório  como um sonho esperando para ser realizado.  O excesso de entusiasmo revolucionário sobre sua “base social efetiva” ou substância é assim a de um efeito-atributo sobre sua própria causa substancial, uma espécie de Evento fantasma esperando sua incorporação oportuna. Não foi nenhum outro que C.K. Chesterton, a propósito de sua crítica da aristocracia, que ofereceu a mais sucinta refutação igualitária esquerdista daqueles que, sob o pretexto de respeita às tradições, endossam as injustiças e desigualdades existentes: “A aristocracia não é uma instituição: aristocracia é um pecado; geralmente um pecado bastante perdoável”.[6]
Aqui nós podemos discernir em que sentido preciso Deleuze quer ser um materialista – fica-se quase tentado a por em termos clássicos estalinistas: em oposição ao materialismo mecânico que simplesmente reduz o fluxo de sentido a suas causas materiais, o materialismo dialético está apto a pensar este fluxo em sua autonomia relativa. Isso quer dizer, toda a questão de Deleuze é que, embora o sentido seja um efeito estéril impassível de causas materiais, ele tem autonomia e eficiência própria. Sim, o fluxo de sentido é um teatro de sombras, mas isso não significa que devemos negligenciá-lo e nos focarmos na “luta real” – num certo sentido, esse mesmo teatro de sombras é o lugar CRUCIAL da luta; em última instância, TUDO é decidido aqui. William Hasker perspicuamente chama a atenção para o estranho fato de que os críticos do reducionismo são bastante relutantes em admitir que os argumentos contra o reducionismo radical são falsos: “Por que há tantos não-eliminativistas  fortemente resistentes à ideia de que o eliminativismo foi conclusivamente refutado?”.[7] Sua resistência trai um medo da perspectiva de que, se sua posição falha, eles irão necessitar do reducionismo como seu último recurso. Então, embora eles considerem o eliminativismo falso, eles estranhamente, no entanto, prendem-se a ele como um tipo de posição de reserva (“Fall-back”), traindo assim uma descrença secreta em sua própria conta de consciência materialista não-reducionista – sendo este um bom exemplo de posição teórica repudiada, de divisão fetichista na teoria. (Sua posição não é homóloga a dos teólogos racionais esclarecidos que, contudo, secretamente querem manter aberta a posição teológica mais “fundamentalista” que eles constantemente criticam? E não encontramos uma atitude dividida similar nesses esquerdistas que condenam os atentados suicidas com bomba aos israelenses, mas não inteiramente, mantendo uma reserva interior – de maneira que, se a política “democrática” falha, deveríamos portanto deixar a porta aberta para a opção “terrorista”?) Aqui, dever-se-ia retornar a Badiou e Deleuze, na medida em que eles realmente, completamente, rejeitam o reducionismo: a afirmação da “autonomia” do nível do Evento-Sentido não é para eles um compromisso com o idealismo, mas a tese NECESSÁRIA de um materialismo verdadeiro.[8] E o que é crucial é que essa tensão entre as duas ontologias em Deleuze claramente traduz-se em duas diferentes lógicas e práticas políticas.  A ontologia do Devir produtivo claramente conduz ao tópico esquerdista da auto-organização da multidão de grupos moleculares que resistem e minam o molar, sistemas de poder totalizantes – a velha noção da multidão viva espontânea, não hierárquica, oposta ao sistema opressivo, reificado, o caso exemplar do radicalismo de esquerda ligado ao subjetivismo filosófico idealista. O problema é que esse é o único modelo disponível de politização no pensamento de Deleuze: a outra ontologia, a da esterilidade do Sentido-Evento, parece “apolítica”. Contudo, e se essa outra ontologia também envolver uma lógica e prática políticas próprias, das quais o próprio Deleuze era inconsciente? Nós podemos, então, proceder como Lênin em 1915 quando, a fim de fundar uma nova prática revolucionária, ele retornou a Hegel – não a seus escritos diretamente políticos, mas, principalmente, à sua lógica? E se, da mesma maneira, houver outra política deleuziana a ser descoberta aqui? A primeira dica nessa direção pode ser oferecida pelo já mencionado paralelo entre o par causas corporais/fluxo de devir imaterial, e pelo velho par marxista infraestrutura/superestrutura: tal política levaria em conta tanto a irredutível dualidade dos processos materiais/socioeconômicos  “objetivos” ocorrendo na realidade, bem como a explosão dos Eventos revolucionários, ada lógica política adequada. E se o domínio da política for inerentemente “estéril”, o domínio de pseudo-causas, um teatro de sombras, porém crucial na transformação da realidade?





[*] N. do t.: No original em inglês, present-at-hand.
[†] N. do t.: No original em inglês, ready-at-hand.



[1]  DELANDA, Manuel. op.cit., p. 73.

[2]  Idem, p. 74.

[3]  Idem, p. 75.

[4] O que é um conceito? Não se trata apenas de que, frequentemente, estamos lidando com pseudo-conceitos, com meras representações (Vorstellungen) postas como conceitos; às vezes, de maneira muito mais interessante,  um conceito pode residir no que parece ser apenas uma expressão comum, até mesmo uma expressão vulgar. Em 1922, Lenin dispensou “os intelectuais, os lacaios do capital, que pensam que são os cérebros da nação. De fato, eles não são seus cérebros, mas sua merda”. ( Citado em D'ENCAUSSE, Helene Carrère. Lenin, New York: Holmes & Meier 2001, p. 308.)

[5] Uma das metáforas para a maneira como a mente se relaciona com o corpo, a do campo magnético, parece apontar na mesma direção: “como um magneto gera seu campo magnético, então o cérebro gera seu campo de consciência” (HASKER, William. The Emergent Self, Ithaca: Cornell University Press 1999, p. 190). O campo tem então uma lógica e uma consistência próprias, embora ela só possa persistir enquanto sua base corporal estiver aqui. Isto significa que a mente não pode sobreviver à desintegração do corpo? Mesmo aqui, outra analogia da física deixa a porta parcialmente aberta: quando Roger Penrose alega que, depois que um corpo cai em um buraco negro, pode-se conceber o buraco negro como um campo gravitacional auto-sustentado – assim, mesmo na física, se considera a possibilidade de que um campo gerado por um objeto material poderia persistir na ausência do objeto. See Hasker, op.cit., p. 232).

[6] G.K.Chesterton, Orthodoxy, San Francisco: Ignatius Press 1995, p. 127.

[7] William Hasker, op.cit., p. 24.

[8] Há, no entanto, um charme sedutor específico na posição (semelhante a Dennett no que concerne a qualia) de flagrantemente NEGAR nossa experiência mais “imediata”.  Não é esse o paradoxo derradeiro: de que os materialistas cujo ponto de partida padrão é a defesa da realidade material imediata contra todas as reivindicações de transcendência terminem negando nossa experiência mais imediata da realidade?