O FANTASMA FUNDAMENTAL
Jacques-Alain Miller
Tradução do inglês: Rodrigo Nunes Lopes Pereira
Minhas quatro leituras irão lidar com o mesmo tópico: sintoma e fantasma. Esclareço isso agora porque algumas pessoas estavam em dúvida. Eu vou me ater a este tópico, pois me parece ser fundamental para a prática e para a teoria da clínica psicanalítica. Este é o motivo pelo qual eu não tentarei mostrar a importância clínica do matema lacaniano do A barrado.
O desejo do Outro
O matema é traduzido como “o desejo do Outro”, na medida em que é necessário para o Outro carecer de algo, que ele possa ter algo para desejar. Mas, ao mesmo tempo, isso é uma tradução parcial. Não seria muito interessante inventar e usar este tipo de escrita se tivesse apenas um sentido. A vantagem do A barrado reside precisamente no fato de que ele é único ao menos para duas significações: 1) o desejo do Outro, e 2) uma falta no campo significante.
E isso, quando se lida com o fantasma, é muito útil quando o fantasma corresponde tanto à manifestação do desejo do Outro quanto à manifestação da falta no campo significante.
Este é o motivo de que o fantasma apareça na experiência clínica analítica como um limite e uma resistência à intervenção do analista. Freud indica isto em “Uma criança é espancada”, que envolve a conexão do fantasma com o A barrado. Freud diz que “o analista deve admitir para si que estes fantasmas, em sua maior parte, subsistem independentemente do resto do conteúdo de uma neurose, e em última instância não tem uma localização apropriada dentro de sua estrutura”.
Para nós, a tradução formalizada dessa sentença – que eu penso ser essencial para essa questão do fantasma – é a ligação do fantasma a essa falta no Outro como um locus para o significante. Vamos também observar, no gráfico de Lacan, como há uma conexão direta entre o A barrado e a fórmula do fantasma, $ ◊ a.
Esta é uma conexão eminentemente freudiana. A questão não diz respeito apenas à resistência ou relutância de se falar sobre o fantasma, – um dado experimental que todos os analistas podem testemunhar – mas também de articulá-lo e formalizá-lo, porque isso não surge da má vontade do paciente, nem é uma resistência da parte do ego ou um aspecto do superego. A verdade da resistência reside precisamente em sua ocorrência no lugar do Outro, que é uma falta no significante.
Estes dois aspectos do fantasma devem ser levados em conta: seu papel como uma resposta ao desejo do Outro, e sua ligação à falta no campo significante. De outro modo, nós iríamos encontrar contradições no ensino de Lacan neste tópico. Apesar de ser verdade que Lacan não dê o mesmo sentido às coisas o tempo todo, é possível não perder as referências, não perdendo de vista os dois sentidos do matema A barrado. Este matema não é uma invenção gratuita, mas, antes, corresponde de maneira muito precisa ao que aparece na clínica. Se não há interpretação do fantasma fundamental, é precisamente por ele estar localizado na falta do significante – por consequência, podemos dizer que esta é a questão mais difícil na direção da cura e no fim da análise.
Há uma dimensão da experiência analítica que é uma demanda por movimento. Por um lado há a demanda e, por outro, como o analista responde a isso. A maneira analítica de responder não é senão a interpretação, e pode-se dizer que, apesar de que existem muitas demandas diferentes, a demanda fundamental da parte do paciente na análise é a demanda por interpretação. Há a demanda por parte do paciente da mesma forma que há o desejo do analista como tal.
O analista, por sua vez, em um primeiro nível da experiência, pode ter certos fantasmas. Este é um problema que eu penso ser matéria de muita preocupação aqui, e esta é uma das razões para se prestar atenção à contratransferência. Não obstante, existem certos fantasmas da parte do analista, dentre os quais um muito frequente e bem conhecido é o de alimentar o paciente, amamentando-o. Mas dado que os seios do analista são seios significantes, eles encontram um limite no próprio fantasma do paciente, porque o paciente não o leva à interpretação e o mantém escondido. Geralmente, o fantasma não é sujeito à interpretação e alcançar sua revelação é uma questão pertencente à direção da cura, ao trabalho propriamente do analista. Por isso podemos definir o fantasma fundamental como o que aparece na experiência como intocado, não diretamente atingido pelo significante.
Quando uma teoria da experiência analítica é elaborada na base unilateral da dimensão do sintoma – isto é, exclusivamente sobre a base da demanda inicial do paciente – a análise aparece exclusivamente como meramente terapêutica. Seu problema se limita a como curar o sintoma. Indubitavelmente isso é descrito dessa forma através de todo o trabalho de Lacan. De acordo com Lacan, contudo, a questão não diz respeito a curar o paciente de seu fantasma fundamental, mas sim localizar o problema do fim da análise do lado do fantasma e não do lado do sintoma.
O alvo do fim da análise é uma mudança muito mais profunda do que no nível sintomático, para o qual se almeja uma certa mudança na posição subjetiva dentro do fantasma fundamental. Isto, então, não é uma questão de cura.
Apesar de o fantasma poder ser entendido como devaneio, a prática analítica mostra que sua dimensão é extraordinariamente ampla e variada. A este respeito, o fantasma fundamental é algo como o resíduo do desenvolvimento de uma análise. Ele pode até ser descrito como o resíduo da interpretação do sintoma. Para auxiliar o entendimento deste tópico, podemos tentar discernir três dimensões no fantasma.
Primeiro, o fantasma tem um aspecto imaginário que corresponde a tudo que o sujeito pode produzir como imagens, traços de ambos os seus mundos, personagens de seu ambiente, etc. Este foi o primeiro aspecto articulado por Lacan, e podemos ver como todos os fantasmas estão situados em um de seus primeiros esquemas no que aparece como a relação a ——> a’, isto é, a dimensão imaginária:
Isto é uma esplêndida simplificação de toda uma gama de material clínico que sem dúvida existe, mas que pertence, por mais variada e extraordinariamente complexa que possa ser, à relação entre o indivíduo e suas imagens. Além disso, algo mais pode ser encontrado aqui no ensino de Lacan, a saber, que toda essa dimensão pode ser simplificada para demonstrar a direção da cura.
Devemos esclarecer que há outras fórmulas e expressões de Lacan relativas ao fantasma em sua dimensão imaginária que perderiam o sentido quando aplicadas a suas outras dimensões, como já fora tentado por Lacan em sua primeira teorização.
Segundo, nós encontramos a dimensão simbólica do fantasma, uma dimensão muito mais escondida que envolve a incorporação de pequenas histórias dependentes do uso de regras particulares e da construção de leis pertencentes especificamente à linguagem.
O texto fundamental de Freud sobre este tópico, “Uma criança é espancada”, mostra muito claramente como ele lida com um fantasma que é apenas uma frase longa, e cujos três estágios são descritos como variações gramaticais. Isto quer dizer que no texto de Freud já há uma gramática do fantasma. É claro que devemos levar em conta que, diferente da dimensão imaginária, este aspecto simbólico não aparece em um primeiro nível da experiência. É apenas quando há uma profusão, quando a selva do fantasma é completamente aparente que podemos obtê-lo como uma sentença com certas variações gramaticais. Este resultado não pode ser entendido apenando-se unicamente ao imaginário, e isto pode ser visto nos Écrits como uma mudança na teorização de Lacan, um deslocamento na ênfase situada inicialmente na dimensão imaginária, em direção à questão de sua dimensão simbólica. Mas isso não é tudo. Para efetuar esse deslocamento, Lacan não situou a ênfase na gramática do fantasma, mas sim em sua lógica. Como sempre, um termo só adquire seu sentido em relação a outro termo que poderia ter sido proferido em seu lugar e não foi. Este é o motivo de o valor da expressão “lógica do fantasma” ser derivado de não se ter pronunciado “gramática do fantasma”. A ideia de Lacan surge precisamente desta questão: que tipo de sentença é o fantasma fundamental? Você pode conhecer a resposta já: o fantasma fundamental é o tipo de sentença que é conhecido como um axioma em lógica. Nós veremos mais tarde o que significa para o fantasma como simbólico ser definido como um axioma lógico, mas, claro ele deve ter algo a ver com o A – a falta no campo do significante. Mas antes de lá chegarmos, consideremos a terceira dimensão do fantasma, com a qual lida Lacan no último estágio do desenvolvimento de seu ensino. Apesar de poder parecer paradoxal, a dimensão fundamental do fantasma é sua dimensão real. Dizer que o fantasma é algo real na experiência analítica equivale a dizer que ele é um resíduo que não pode ser modificado.
É um axioma do pensamento de Lacan de que o Real é o impossível. Aqui, neste caso, é o que é impossível mudar. Por esta razão, o fim de análise para Lacan é a realização de uma modificação na relação do sujeito com o Real do fantasma, o que dá origem às variações do movimento analítico.
Aqui nós também encontramo-nos confrontados, acima de tudo, com a questão pertencente à formação de analistas não reduzida à assistência de conferências, cursos, e seminários. O problema é como alcançar essa mudança subjetiva do Real, ou do resíduo da análise através dos meios da linguagem e do significante, as únicas opções disponíveis para o analista. Por estas razões, a direção da cura requer conhecer a delimitação precisa entre sintomas e fantasmas. Quando a orientação correta é mantida, o desenvolvimento da cura se caracteriza pela obtenção de um fantasma cada vez mais puro e trágico. É muito difícil conduzir a cura neste sentido se a distinção entre sintoma e fantasma é ignorada.
Há uma dinâmica para o sintoma, a qual embora varie em velocidade é, contudo, uma dinâmica. Há, ao contrário – conforme expressou Lacan em “Kant com Sade” – uma “estática do fantasma”. Isto explica a dificuldade para o analista em situar-se em relação a uma estática, e porque é mais fácil dizer simplesmente que isto é uma resistência ou que há resistências. Há uma inércia para a experiência analítica, e a solução é ser capaz de vê-la como o Real, como o resíduo da própria operação analítica. Neste sentido, há também uma verdade para a análise das resistências, a verdade da resistência dessa inércia Real. Mas isso não é apenas um fator negativo. O que também deve ser destacado em relação ao fantasma fundamental é o fato de que no desenvolvimento da cura, o fantasma é cada vez mais reduzido a um instante essencial, ou ponto de um instante; e, portanto, ele não possui uma dimensão temporal. Em um texto de 1967 integrado aos Écrits, podemos encontrar a expressão “o instante do fantasma”, que é algo cuja importância deve se ter em mente na medida em que o fantasma não tem o mesmo tipo de tempo retroativo que é característico do sintoma.
O fato de que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem não implica que tudo possa ser interpretado, mas que mesmo o que não é interpretado também tem uma função. Eu penso que a direção da cura é precisamente seu uso como uma ferramenta desse fantasma reduzido. Quer dizer, o fantasma fundamental, que não é como tal interpretado, é ele próprio uma ferramenta para a interpretação analítica.
O sintoma aparece para o sujeito como uma opacidade subjetiva, como um enigma. O paciente não sabe o que fazer com essa irrupção e é porque ele demanda sua interpretação. Se Lacan situa o sujeito suposto saber no início da entrada do processo analítico, é porque nesse momento a demanda fundamental do paciente refere-se ao enigma, à interrogação causada por seu próprio sintoma. E a dificuldade, que é diferente em cada caso, é que o fantasma aparece para o sujeito como transparente, como se sua leitura fosse imediata. Assim a mudança que deve ser alcançada no analisando é almejada na consideração que faz o sujeito pelo que é coberto por seu fantasma.
Definir precisamente como o fantasma fundamental pode ser uma ferramenta para a interpretação é difícil, mas eu posso contar uma pequena história a fim de aproximar-nos da questão, aproveitando o fato de que para mim é mais fácil falar sobre isso aqui do que em Paris.
Trata-se de uma mulher que me contou uma história com a qual ela se confortava. Pode haver, devo dizer, uma diferença entre pacientes homens e mulheres a esse respeito, pode ser mais fácil obter uma história de uma mulher do que de um homem, embora seja difícil provar. Vamos manter isso num nível intuitivo, mas devo recordá-los que a maior parte dos relatos em “Uma criança é espancada” correspondem a casos femininos, o que não acredito que se deva ao acaso. Retornando à história com que essa paciente se confortava, vamos dizer que lhe era muito familiar, e que lhe servia bem desde muito cedo em sua vida para tornar-se sexualmente excitada. Isto pode ser comunicado, pois tem uma natureza simples e delicada que permite sua transmissão. Trata-se do seguinte: ser uma lavadeira, amar um padre, ser queimada na fogueira como uma bruxa. Devo esclarecer que tenho essa paciente em alta conta, pois tudo o que ela trouxe para a análise tem essa qualidade delimitada forte, precisa, o que geralmente não acontece. Ela é talentosa em sua capacidade de se relacionar com o inconsciente, habilidade em relação a qual as pessoas diferem.
E como ela é uma pessoa educada, ela evoca em relação a seu fantasma uma referência literária que vocês podem conhecer, o romance de Victor Hugo Notre-Dame de Paris. Este romance conta a história da bela Esmeralda, que não está apaixonada pelo padre da Notre-Dame. Pelo contrário, ela está apaixonada por uma cavaleiro, embora o padre a persiga. Finalmente, é Quasimodo quem a salva dos assaltos amorosos do padre. Na base deste notório enredo, a paciente introduziu uma variante que consistia em imaginar uma nova Esmeralda, que estava apaixonada pelo padre. Talvez ela fosse levada a fazer isso pelo fato de que seu primeiro nome é Maria, como a Virgem, Notre-Dame, Nossa Senhora, ambas de Paris e outras cidades. O fato é que, em seu fantasma, ela se identificava com a nova Esmeralda, uma mulher ligada a uma figura de autoridade – um padre, uma encarnação par excellence de alguém suprimido da indecência sexual. Outros poderiam também desempenhar este papel, na medida em que fossem de uma classe mais alta do que a da posição subordinada que ela atribuía a si na história.
Mais tarde, as coisas conduziram a uma fogueira, algo que queima [burns], expressões que são regularmente repetidas em tudo que ela emite em relação a suas paixões por uma série de homens através de sua vida: “Arder [To burn] por um homem”, “queimar em paixão”, “uma paixão ardente [a burning passion]”. Isto evoca o que Freud, em A Interpretação dos Sonhos, formula como “Pai, não vês que eu estou queimando?”. Esta foi uma de minhas associações, o que neste caso foi muito útil porque o olhar do pai tinha para ela um valor essencial. Mais importante, contudo, era o fato de que seu pai tinha um olho só. Devo esclarecer que a presença desse olho morto é neste caso estruturante, como mostrado por uma sentença proferida em sua presença por um amigo de seu pai. Este pai melancólico, que viveu em uma região na costa francesa, sempre “mantinha seu olho azul no mar” (onde “mar” e “mãe” – mer e mère – são palavras homófonas em francês). Obviamente, sua preocupação é em relação ao olho que não a está olhando. É por causa desse olho que ela arde [burns] incessantemente para os homens que ela escolhe, homens que são casados e com quem ela só deseja ter encontros violentos. De um ponto de vista sexual, estes encontros são perfeitamente satisfatórios, mas ela não pode ter relações cotidianas com esses homens. Uma dificuldade com este caso é que, de certa forma, ela não tem sintomas dos quais se queixar. Além disso, o risco de o analista ocupar um lugar dentro dessa série de homens de autoridade empresta a essa relação analítica sua própria dificuldade. De todo modo, o que é essencial e que eu gostaria de ressaltar no caso é que esta pequena história – ser uma lavadeira, amar um padre, ser queimada na fogueira – é uma formulação que é completamente destacada do resto do discurso, como um monumento isolado, enquanto que, ao mesmo tempo, a matriz para todo o seu comportamento. É por isso que se deve tomar cuidado em não ficar hipnotizado pela diferença entre os fantasmas e o fantasma. O fantasma é como um acordeão: ele pode cobrir toda a extensão da vida do sujeito e ainda ao mesmo tempo ser a coisa mais escondida e atômica do mundo.
Este ano, eu busquei um exemplo que nos permitisse retornar ao nosso caminho em direção ao A barrado, pois ele mostra precisamente a função do fantasma como uma resposta ao desejo do Outro.
Foi difícil encontrar um exemplo convincente deste problema que não fosse do campo da cultura e da literatura. Lacan também toma esta última via quando lida com o fantasma. Se compararmos as respectivas maneiras de proceder neste ponto de Freud e de Lacan, podemos observar que o primeiro toma o fantasma a partir da experiência clínica, enquanto que o segundo o toma como elaborado na literatura, por exemplo, o fantasma de Sade. Há uma razão para escolher este último caminho – a saber, que é muito difícil narrar publicamente seus próprios casos. Você tem que atravessar o Atlântico para fazê-lo. Mas há outra razão, é que um fantasma tal como o de Sade atinge certo nível de objetividade através de sua produção literária que permite um cuidadoso escrutínio. De todos os textos de Lacan, “Kant com Sade” é o que contem mais referências culturais. Ele faz referência à toda a literatura francesa, particularmente as dos séculos XVIII e XIX. Ano passado, eu realizei um seminário com algumas pessoas no sentido de seguir essas referências: isso fez com que trinta pessoas trabalhassem por um ano para coletá-las todas.