quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A vil lógica da escolha do alvo de Anders Breivik - Slavoj Žižek

A vil lógica da escolha do alvo de Anders Breivik
Slavoj Žižek
[The Guardian, 8 de agosto de 2011]
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

                Tanto na auto-justificação ideológica de Anders Breivik quanto nas reações a seu ato assassino há coisas que deveriam nos fazer pensar. O manifesto do “caçador de marxistas” cristão que matou mais de 70 pessoas na Noruega precisamente não é um caso de divagações de um homem perturbado; é simplesmente uma exposição consequente da “Crise da Europa” que serve como a fundação (mais ou menos) implícita do crescimento do populismo anti-imigração – suas próprias contradições são sintomáticas das contradições internas desta visão.
            A primeira coisa que se destaca é como Breivik constrói seu inimigo: a combinação de três elementos (marxismo, multiculturalismo e islamismo), cada um dos quais pertencente a diferentes espaços políticos: esquerda radical marxista, liberalismo multicultural, fundamentalismo religioso islâmico.  O velho hábito fascista de atribuir ao inimigo características mutuamente exclusivas (“complô judaico bolchevique plutocrático” – identidade étnico-religiosa, esquerda radical bolchevique, capitalismo plutocrático) retorna aqui sob uma nova roupagem.
            Mais indicativa ainda é a maneira como a auto-designação de Breivik embaralha as cartas da ideologia direitista radical. Breivik defende o cristianismo, mas permanece um agnóstico secular: o cristianismo é para ele meramente um construto cultural para opor ao islã. Ele é antifeminista e pensa que as mulheres deveriam ser desencorajadas de seguir o ensino superior; mas ele é a favor de uma sociedade “secular”, apoia o aborto e se declara pró-gay.
            Seu predecessor neste sentido foi Pim Fortuyn, o político populista de direita holandês, que foi assassinado no início de maio de 2002, duas semanas antes das eleições em que se esperava que ele ganhasse um quinto dos votos. Fortuyn era uma figura paradoxal: um direitista populista cujas características pessoais e mesmo as opiniões eram (em sua maioria) quase perfeitamente “politicamente corretas”. Ele era gay, tinha boas relações pessoais com muitos imigrantes, exibia um inato senso de ironia – em suma, ele era um bom liberal tolerante em relação a tudo, se excetuarmos sua postura em relação aos imigrantes muçulmanos.
            O que Fortuyn incorporava era então a interseção entre populismo direitista e correção política liberal. De fato, ele era a prova viva de que a oposição entre populismo direitista e tolerância liberal é falsa, de que estamos lidando com dois lados de uma mesma moeda: i.e., nós podemos ter um racismo que rejeita o outro com o argumento de que ele é racista.
            Além disso, Breivik combina traços nazistas (também em detalhes – por exemplo, sua simpatia por Saga, cantor folk sueco simpatizante nazista) com um ódio a Hitler: um de seus heróis é Max Manus, o líder da resistência norueguesa antinazista. Breivik não é tão nazista quanto antimuçulmano: todo o seu ódio é focado na ameaça muçulmana.
            E por último, mas não menos importante, Breivik é anti-semita, mas pró-Israel, na medida em que o Estado de Israel é a primeira linha de defesa contra a expansão muçulmana – ele quer até mesmo ver o templo de Jerusalém reconstruído.  Sua visão é de que os judeus são ok na medida em que não haja muitos deles – ou, como ele escreveu em seu manifesto: “Não há problema judaico na Europa ocidental (com exceção do Reino Unido e da França), posto que nós temos 1 milhão de judeus na Europa ocidental, enquanto que 800.000, sem contar com esse 1 milhão, vivem na França e no Reino Unido. Os Estados Unidos, por outro lado, com mais de 6 milhões de judeus (600% a mais que na Europa) efetivamente tem um considerável problema judaico”. Ele realiza o último paradoxo de um nazista sionista – como isso é possível?
            Uma chave é oferecida pelas reações da direita européia ao ataque de Breivik: seu mantra foi que mesmo condenando seus atos assassinos não devemos esquecer de que ele abordou “preocupações legítimas a respeito de problemas genuínos” – a política convencional falha ao abordar a corrosão da Europa pela islamização e multiculturalismo ou, para citar o Jerusalem Post, nós deveríamos usar a tragédia de Oslo “como uma oportunidade para reavaliar seriamente políticas para a integração de imigrantes na Noruega e em outros lugares”. O jornal se desculpou depois por este editorial. (A propósito, estamos ainda por ouvir uma interpretação similar dos atos de terror palestinos, algo como “estes atos de terror deveriam servir como uma oportunidade para reavaliar as políticas de Israel”.)
            A referência a Israel está, claro, implícita nessa avaliação: uma Israel “multicultural” não teria chance de sobreviver; o apartheid é a única opção realista. O preço para este propriamente perverso pacto sionista-direitista é que, no sentido de justificar a reivindicação para a Palestina, é preciso reconhecer retroativamente a linha de argumentação que foi previamente, no início da história da Europa, usada contra os judeus: o acordo implícito é “nós estamos prontos para reconhecer sua intolerância diante de outras culturas em seu meio se vocês reconhecerem nosso direito de não tolerar palestinos em nosso meio”.
            A trágica ironia deste acordo implícito é que, na historia da Europa dos últimos séculos, os próprios judeus foram os primeiros “multiculturalistas”: seu problema foi como sobreviver com sua cultura intacta em lugares onde outra cultura era predominante.
            Mas e se estivermos entrando em uma era em que esse novo raciocínio irá impor-se? E se a Europa devesse aceitar o paradoxo de que sua abertura democrática é baseada em exclusão – de que “não há liberdade para os inimigos da liberdade”, como colocou Roberspierre há muito tempo? Em princípio, isto é verdade, claro, mas é aqui que temos de ser muito específicos. De certa forma, houve uma lógica vil na escolha do alvo de Breivik: ele não atacou estrangeiros, mas aqueles de sua comunidade que eram demasiado tolerantes com intrusos estrangeiros. O problema não são os estrangeiros, é nossa própria identidade (europeia).
            Embora a crise em curso da União Europeia apareça como uma crise da economia e das finanças, ela é em sua dimensão fundamental uma crise político-ideológica: o fracasso do referendo sobre a constituição da UE um par de anos atrás deu um claro sinal de que os eleitores perceberam a EU como uma união econômica “tecnocrática”, sem qualquer visão que pudesse mobilizar as pessoas – até os protestos recentes, a única ideologia apta a mobilizar as pessoas foi a defesa anti-imigração da Europa.
             Recentes explosões de homofobia nos Estados do leste europeu pós-comunistas também devem nos fazer refletir. No início de 2011, houve uma parada gay em Istambul onde milhares de pessoas caminhavam em paz, sem violência ou outros distúrbios; nas paradas gay que ocorreram ao mesmo tempo na Sérvia e na Croácia (Belgrado, Split), a polícia não foi capaz de proteger participantes que foram ferozmente atacados por centenas de fundamentalistas cristãos. Estes fundamentalistas, e não os da Turquia, são a verdadeira ameaça ao legado europeu, então quando a UE basicamente bloqueou a entrada da Turquia, deveríamos fazer a pergunta óbvia: Que tal aplicar-se as mesmas regras à Europa Oriental?
            O anti-semitismo pertence a essa série, ao lado de outras formas de racismo, sexismo, homofobia, etc. O Estado de Israel está aqui cometendo um erro catastrófico: ele decidiu minimizar, senão ignorar completamente o “velho” anti-semitismo (europeu tradicional), concentrando-se sobre o anti-semitismo “novo” e supostamente “progressista” disfarçado sob a crítica da política sionista do Estado de Israel. Nessa linha, Bernard Henri-Lévy (em seu Left in Dark Times) recentemente afirmou que o anti-semitismo do século XXI seria “progressista” ou não existiria mais. Esta tese nos obriga a voltarmo-nos para a velha interpretação marxista do anti-semitismo como um anti-capitalismo mistificado (em vez de culpar o sistema capitalista, o ódio é dirigido para um grupo étnico específico acusado de corromper o sistema): para Henri-Lévy e seus partidários, o anti-capitalismo atual é uma forma disfarçada de anti-semitismo.
            Esta destituição não falada, mas não menos eficiente daqueles que atacariam o “velho” anti-semitismo está ocorrendo no mesmo momento em que o “velho” anti-semitismo está voltando em toda a Europa, especialmente nos países pós-comunistas do leste, da Hungria à Letônia. O que deve nos preocupar ainda mais é o crescimento de uma estranha acomodação entre fundamentalistas cristãos e sionistas nos Estados Unidos.  
            Há apenas uma solução para esse enigma: não se trata de que os fundamentalistas tenham mudado, mas sim que o próprio sionismo paradoxalmente veio a adotar certa lógica anti-semita em seu ódio dos judeus que não se identificam inteiramente com a política do Estado de Israel. Seu alvo, a figura do judeu que duvida do projeto sionista, é construída da mesma maneira com que os anti-semitas europeus constroem a figura do judeu – ele é perigoso porque vive entre nós, mas não é realmente um de nós. Israel está jogando um jogo perigoso aqui: a Fox News, a principal voz estadunidense da direita radical e firme defensora do expansionismo israelense, recentemente teve que rebaixar Glenn Beck, seu apresentador mais popular, cujos comentários estavam se tornando abertamente anti-semitas.
            O argumento sionista padrão contra os críticos das políticas do Estado de Israel é que, claro, como qualquer outro Estado, Israel deve ser julgado e eventualmente criticado, mas os críticos de Israel abusam da crítica justificada da política israelense para fins anti-semitas. Quando os defensores fundamentalistas cristãos da política israelense rejeitam as críticas da esquerda das políticas israelenses, sua argumentação implícita é ilustrada por uma maravilhosa charge publicada em julho de 2008 no jornal vienense Die Presse: ela mostra dois austríacos caracterizados como nazistas, atarracados, um deles segurando um jornal nas mãos e comentando com seu amigo: “Você pode ver aqui de novo como um anti-semitismo totalmente justificado está sendo usurpado para se fazer uma crítica barata do Estado de Israel!”. Estes são os atuais aliados do Estado de Israel.