terça-feira, 17 de março de 2009

Por que os cínicos estão errados - Savoj Zizek

Por que os cínicos estão errados
Slavoj Zizek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Dias antes da eleição, Noam Chomsky disse aos progressistas que eles podiam votar em Obama, mas sem ilusões. Eu compartilho inteiramente com Chomsky as dúvidas sobre as reais conseqüências da vitória de Obama: de uma perspectiva pragmático-realista, é bastante possível que Obama vá apenas fazer algumas melhorias cosméticas, transformando-se em um “Bush com um rosto humano”. Ele seguirá a mesma política básica de uma maneira mais atraente, e efetivamente reforçando ainda a hegemonia estadunidense, a qual tem sido severamente arruinada pela catástrofe dos anos Bush.
Há, no entanto, alguma coisa profundamente errada com essa reação – uma dimensão chave é perdida aqui. E é por causa desta dimensão que a vitória de Obama não é apenas outro turno nas eternas lutas parlamentares por maioria com todos os seus cálculos pragmáticos e manipulações. Ela é um sinal de algo mais. Este é o motivo de um bom amigo meu estadunidense, inveterado de esquerda sem ilusões, chorou por horas quando a mídia anunciou a vitória de Obama. Quaisquer que fosse nossa dúvidas, medos e compromissos, nesse momento de entusiasmo cada um de nós era livre e participante da liberdade universal da humanidade.
De que tipo de sinal eu estou falando? Em seu último livro publicado, O concurso das faculdades (1798), o grande filósofo idealista alemão Immanuel Kant abordou uma simples porém difícil questão: Há verdadeiro progresso na história? (Ele se referia a progresso ético em liberdade, não apenas desenvolvimento material.) Ele reconheceu que a história efetiva é confusa e não permite evidências claras: Pense sobre o século XX que trouxe democracia e bem-estar sem precedentes, mas também o holocausto e o gulag.
Contudo, Kant concluiu que, embora o progresso não possa ser confirmado, podemos discernir sinais que indicam que o progresso é possível. Kant interpretou a Revolução Francesa como um sinal que apontava para uma possibilidade de liberdade: O que era até então impensável aconteceu, todas as pessoas destemidamente afirmavam sua liberdade e igualdade. Para Kant, ainda mais importante do que a – freqüentemente sangrenta – realidade do que aconteceu nas ruas de Paris foi o entusiasmo que estes eventos engendraram em simpáticos observadores por toda a Europa:

A recente revolução de um povo que é rico em espírito bem pode falhar ou ter êxito, acumular miséria e atrocidade, mas ela, contudo, suscita no coração de todos os espectadores (aqueles que não se surpreendem a si próprios em meio a ela) uma tomada de posição de acordo com os desejos que beiram o entusiasmo e que, na medida em que sua expressão mesma não foi sem risco, pode apenas ter sido causada por uma disposição moral no interior da raça humana.

Dever-se-ia notar aqui que a Revolução Francesa gerou entusiasmo não apenas na Europa, mas também em lugares distantes como o Haiti, onde ela desencadeou outro mundialmente histórico evento: A primeira revolta de escravos Negros, que lutaram por total participação dentro do emancipatório projeto da Revolução Francesa. Possivelmente o mais sublime momento da Revolução Francesa tenha ocorrido quando a delegação do Haiti, liderada por Toussaint L’Overture, visitou Paris e foi entusiasticamente recebida na Assembléia Popular como iguais entre iguais.
A vitória de Obama pertence a essa linha; é um sinal da história no triplo sentido kantiano do signum rememorativum, demonstrativum, prognosticum. Isto é, este é um sinal de que a memória do longo passado de escravidão e luta por sua abolição reverbera; um evento que agora demonstra uma mudança; uma esperança para futuras realizações. Não surpreende que Hegel, o grande idealista alemão, tenha compartilhado o entusiasmo de Kant em sua descrição do impacto da Revolução Francesa:
Este foi, assim, um glorioso despertar das mentes. Todos os seres pensantes participando do júbilo dessa época. Emoções de um elevado caráter estimulavam as mentes dos homens nesse período; um entusiasmo espiritual vibrava através do mundo, como se a reconciliação entre o divino e o secular fosse agora pela primeira vez consumada.

A vitória de Obama não fez nascer o mesmo entusiasmo universal ao redor do mundo, com pessoas dançando nas ruas, de Chicago até Berlim, e ao Rio de Janeiro? Todo ceticismo manifestado secretamente por preocupados progressistas (e se, na privacidade da cabine de votação, o racismo publicamente negado ressurgir?) mostrou estar errado.
Há uma coisa sobre Henry Kissinger, o último cínico Realpolitiker que salta aos olhos de todos os observadores: o quão completamente errados foram a maioria de seus prognósticos. Para tomar apenas um exemplo, quando chegaram notícias ao oeste a respeito de um golpe militar a Gorbachev em 1991, ele imediatamente aceitou o novo regime (que ignominiosamente entrou em colapso três dias depois) como um fato. Em suma, quando regimes socialistas eram já mortos-vivos, Kissinger se fiava em um pacto duradouro com eles.
A posição do cínico é a de que ele detém alguma terrível, pura sabedoria. O cínico paradigmático conta-lhe privadamente em uma voz discreta e confidencial: “Mas você não percebe que tudo isso na verdade está relacionado a (dinheiro/poder/sexo), que todos os altos princípios e valores são apenas frases vazias que não contam em nada?” O que o cínico não vê é sua própria ingenuidade, a ingenuidade da sabedoria cínica que ignora o poder das ilusões.
A razão de a vitória de Obama gerar tal entusiasmo não é apenas pelo fato de que, contra todas as probabilidades, ela realmente aconteceu, mas que a possibilidade de tal coisa acontecer foi demonstrada. O mesmo vale para todas as grandes rupturas históricas. Relembrando a queda do muro de Berlim: Ainda que todos nós soubéssemos sobre a ineficiência carcomida dos regimes comunistas, de alguma forma nós não “acreditávamos realmente” que eles iriam desintegrar. Como Kissinger, nós todos fomos vítimas em demasia do pragmatismo cínico.
A atitude é mais bem resumida pela expressão francesa “je sais bien, mais quand meme” (eu sei muito bem que isso pode acontecer, mas mesmo assim... eu não posso realmente aceitar que isso possa acontecer). Este é o motivo de que, ainda que a vitória de Obama fosse claramente previsível em todo caso nas duas últimas semanas antes da eleição, sua vitória efetiva foi ainda vivenciada como um choque. Num certo sentido, o impensável aconteceu, algo que nós realmente não esperávamos que pudesse acontecer. (Note-se que há uma versão trágica do impensável realmente acontecendo: holocausto, gulag... como alguém pode aceitar que algo assim poderia realmente acontecer?)
A verdadeira batalha começa agora, depois da vitória: a batalha pelo que essa vitória realmente irá significar, especialmente dentro do contexto de dois outros sinais da história muito mais sinistros: 11/9 e o desmoronamento financeiro. Nada está decidido pela vitória de Obama, mas sua vitória expande nossa liberdade e talvez o escopo de nossas decisões. Mas embora possamos ser bem sucedidos ou falhar, a vitória de Obama irá permanecer como um signo de esperança em nossos de outra maneira sombrios tempos, um sinal de que a última palavra não pertence aos cínicos “realistas”, sejam eles de esquerda ou de direita.

In These Times, November 13, 2008.





Um comentário:

  1. Fala rapaz!!!
    Se blog é ótimo, bem psicodélico!
    Já peguei os artigos do Zizek, valeu!
    Abraços!

    ResponderExcluir