O terceiro tiro: entre-duas-mortes*
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira
Sobre esse filme, Hitchcock costumava dizer que era um exercício na arte do understatement (eufemismo, subestimação). Esse traço fundamental do humor inglês consiste para ele em subverter de maneira irônica o procedimento elementar de toda sua obra. Longe de transformar de uma só vez uma situação pacífica em Unheimliche, longe de funcionar como irrupção de um real perturbando o curso tranquilo da vida, a famosa “mancha” tem aqui um efeito inesperado. Simbolizada pelo corpo de Harry, ela representa uma perturbação sem importância, um detalhe, uma ocorrência perfeitamente negligenciável. A vida social não é de maneira alguma perturbada; troca de pilhérias, encontros marcados, crianças brincando com coelhos e rãs, tudo continua funcionando em harmonia.
Apesar dessa magistral despreocupação, a lição do filme não é nada do tipo “não leve a vida muito a sério, a sexualidade e a morte não são senão frivolidades e futilidades”. Não é, sobretudo, uma incitação à tolerância hedonista. Como em relação ao obsessivo de que fala Freud no final de sua análise do homem dos ratos, o eu oficial dos personagens do filme, aberto e tolerante, esconde um conjunto de regras, de inibições que interdizem todo o gozar. A indiferença irônica que eles demonstram diante do corpo de Harry traduz a mesma vontade de neutralizar um complexo traumático subjacente. Com efeito, da mesma maneira que as regras e as inibições obsessivas são o testemunho de uma dívida simbólica contraída quando da disjunção da morte real e da morte simbólica do pai (o pai está morto sem ter ajustado suas contas, como diz Freud), também os “Problemas com Harry” (tal é o título original do filme) consistem em que seu corpo está aí sem que ele esteja morto no plano simbólico. “Entre duas mortes” seria um bom subtítulo para este filme. Diante da pequena comunidade de pessoas cujo destino estava, de uma maneira ou de outra, ligado a Harry, ficando bastante desconcertada em presença de seu corpo, vemos que a intriga só poderá se resolver com a morte simbólica desse intruso. Assim, quando o garotinho descobre pela segunda vez o corpo, as contas são apuradas e o rito fúnebre pode afinal ter lugar.
O problema posto por Harry é o mesmo que o de Hamlet (é necessário relembrar que Hamlet é um caso típico de obsessivo?). O drama shakespeariano é efetivamente uma variação do tema da morte real sem “ajuste de contas” simbólico. Polônio e Ofélia são enterrados em segredo e sem os ritos prescritos, mas, sobretudo o pai de Hamlet é confrontado com o julgamento eterno sem ter podido confessar seus pecados: é por esta razão, e não por causa do assassinato, que ele retorna como fantasma para reclamar vingança a seu filho. A mesma questão se coloca, aliás, em Antígona, onde a ação é posta em movimento quando Creonte proíbe a jovem de enterrar Polinice, seu irmão, de acordo com os ritos fúnebres: seu título em inglês poderia ser Troubles with Polineices, Dificuldades com Polinice. Pode-se assim mensurar o caminho percorrido pela cultura ocidental quanto ao ajuste da dívida simbólica. Da sublime figura de Antígona, que irradia beleza e calma, e em relação a qual “o ato prescinde de palavra”[1], passando pelas hesitações e pela dúvida obsessiva de Hamlet, que passará ao ato tarde demais, de maneira que seu gesto carecerá de sua visada simbólica, até a “dificuldade com Harry”, onde o caso parece justamente reter o interesse da pequena sociedade, mas cuja aparência de understatement trai no entanto a presença de uma inibição fundamental – há toda uma evolução.
O espaço entre as duas mortes – real e simbólica – o “acerto de contas”, a consumação simbólica do destino, este lugar real-traumático da Coisa pode assim ser preenchido de diferentes maneiras. Aí se aloja a maior beleza e a mais apavorante feiúra. No caso de Antígona, a morte simbólica, a exclusão da comunidade da cidade precede sua própria morte – o que lhe confere uma beleza sublime. Em Hamlet, ao contrário, a morte real do rei antecedeu sua morte simbólica – e é o motivo pelo qual seu espírito é condenado a vir assombrar seu filho em uma monstruosa aparição, até que ele quite sua dívida simbólica.
Mas entre Antígona e Hamlet de um lado, e O terceiro tiro de outro, há o corte sadiano. O grande discurso do papa, no quinto livro de Juliette, com essa idéia de um crime radical, absoluto, capaz de liberar a força criadora da Natureza, implica a distinção entre as duas mortes: a morte natural, que pertence ao ciclo de geração e degradação, e se dá como uma etapa da transformação incessante da Natureza, e a morte absoluta, que seria a destruição, o aniquilamento desse circuito, e que, livrando a Natureza de suas próprias leis, marcaria o início de uma nova era consagrando a criação ex nihil de outras formas de vida. E esta distinção está ligada ao fantasma de Sade, cujo testemunho faz com que a vítima em sua obra seja, em certo sentido, indestrutível. Nenhuma tortura, nenhum tormento pode jamais lhe arrebatar sua beleza, como se, para além de seu corpo físico inscrito no ciclo da vida e da morte, ela dispusesse de um outro corpo fora do mundo, o corpo sublime.
Esse mesmo fantasma serve de fundamento a diversos produtos da “cultura de massa” e notadamente aos desenhos animados. Tom e Jerry, por exemplo, são vítimas alternadamente das mais atrozes desventuras: Tom é apunhalado, uma banana de dinamite explode em seu bolso, um rolo compressor amassa seu corpo... E, no entanto, na cena seguinte, ele retoma posse de seu corpo intacto e o jogo pode recomeçar, exatamente como se ele tivesse um outro corpo invulnerável. Os novos jogos de videogames são um outro exemplo de operação dessa distinção. Frequentemente, a regra quer que o jogador tenha várias vidas, em geral três: quando ele é vítima de um perigo (por exemplo, um monstro que o persegue), ele perde uma vida; se, ao contrário, ele atinge rapidamente o objetivo, ele pode ganhar uma ou várias vidas suplementares. A lógica desses jogos é assim fundamentada sobre esta distinção entre a morte onde se perde uma de suas vidas e a morte total onde se perde o jogo.
A propósito do filme, o tratamento humorístico desta questão – o que nós designamos como um understatement – repousa na maneira incomum de considerar essa “mancha” que é a realidade do cadáver do pai, que consiste em agir como se a coisa não fosse séria, parecendo dizer: o pai está morto, certamente, no cause for excitment... Esta maneira de isolar a mancha e de ocultar toda sua eficácia simbólica encontra sua mais justa expressão no paradoxo que caracterizava, na época de Freud, a “filosofia de Viena”: “A situação é catastrófica, mas não está ainda realmente grave”. A chave do understatement está na distinção entre o saber (real) e a crença (simbólica): “Eu bem sei (que a situação é catastrófica), mas eu não acredito (e continuo a agir como se ela não fosse grave)”. A atitude cotidiana em relação à crise ecológica ilustra perfeitamente esta cisão: sabe-se que já é tarde demais, que nós estamos à beira da catástrofe (da qual a agonia das florestas da Alemanha é um sinal precursor), contudo, não se acredita, age-se como se se tratasse de um exagero e não de uma questão da qual depende literalmente nossa sobrevivência. A mesma matriz permite entender a palavra de ordem de 1968, “Sejamos realistas, exijamos o impossível!” como um apelo para estar no nível do real da catástrofe, exigindo o que aparece dentro do quadro de nossa crença simbólica como “impossível”.
Em relação a isso existe, contudo, uma outra leitura, cuja célebre frase de Winston Churchill contra os detratores da democracia dá uma perfeita ilustração: “É verdade que a democracia é o pior dos sistemas possíveis, o problema é que nenhum outro seria melhor”. Esta frase repousa sobre uma lógica do tipo “o conjunto de possíveis mais alguns outros possíveis”, e sua dinâmica própria diz respeito ao fato de que esses elementos a mais são exatamente os mesmos que os que figuram no primeiro conjunto, sua única diferença vindo de que eles não funcionam mais como elementos de uma totalidade fechada. Dito de outra maneira, em relação à totalidade dos governos possíveis, a democracia é inegavelmente o pior, mas em relação à série não totalizada dos sistemas políticos, nenhum outro seria melhor. Disso resulta que a vantagem da democracia é estritamente limitada a uma análise comparativa: desde que se procure formular a proposição no superlativo, o resultado inverso se produz e a democracia torna-se “o pior”.
No final de “Psicanálise e Medicina”, Freud utiliza a mesma forma paradoxal do não-todo a propósito da mulher. Ele reproduz um diálogo retirado de um jornal satírico, onde um de seus personagens se queixa de que a mulher é um ser insuportável, com o qual é impossível viver. E o outro lhe retorque que, se o primeiro tem razão, não há nada de melhor nessa matéria. Tal é a lógica da mulher como sintoma do homem: insuportável, certamente, mas viver sem ela é ainda mais difícil.
Estes dois exemplos demonstram, se havia necessidade, a pertinência da análise lacaniana para o entendimento do filme. Se a “dificuldade com Harry” é certamente catastrófica do ponto de vista da totalidade, ela não é muito séria uma vez que se leve em conta a dimensão do não-todo. O segredo do understetament parece se esclarecer graças a essa noção do não-todo: seria uma maneira particular de que tem a língua inglesa de evocar o não-todo.
Eis porque Lacan convida a apostar no pior. Uma vez transposta para o domínio do não-todo, nada poderá jamais ser melhor do que o pior.
[1] No original, l’acte va sans dire.
* The Trouble With Harry (1956). Um recanto de campo aprazível em Vermont em um belo dia de outono. Três estouros. Um cadáver, o de Harry. Um velho capitão, que acredita que foi um acidente de caça que ele teria ocasionado, enterra, desenterra, e transporta várias vezes, com a ajuda de seus amigos, este cadáver sobre cuja identidade cada um se interroga. Descobre-se que se trata de Harry, o marido de Jennifer, mas ela não acrescenta nada sobre a identidade de seu assassino. Finalmente, ficamos sabendo que Harry morreu de um ataque do coração, e é como se nada tivesse acontecido.
Fonte: ŽIŽEK, Slavoj. “Mais qui a tué Harry?: l’entre-deux-mortes” IN: DOLAR, Mladen, MOCNIK, Rastko, SUMIC-RIHA, Jelica, VRDLOUEC, Zdenko. Sous la direction de ŽIŽEK, Slavoj. Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur Lacan sans jamais oser le demander à Hitchcock. Narvin Éditeur, Paris, 1988.
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