domingo, 19 de abril de 2009

"Um corpo que cai: a sublimação e a queda do objeto" Slavoj Zizek - Tradução de Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Um corpo que cai: a sublimação e a queda do objeto*
Slavoj Žižek
Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Como o herói luta com uma imagem sublime, o filme parece querer atestar a tese de Lacan segundo a qual a sublimação quanto mais concerne à morte, mais exclui a sexualização – o poder de fascinação exercido por uma imagem sublime anunciando sempre uma dimensão letal.
A sublimação é em geral compreendida como uma dessexualização, ou um deslocamento do investimento libidinal do objeto encarado como podendo satisfazer a necessidade pulsional, em direção a uma forma mais “elevada” ou mais cultivada de satisfação. Lacan recusa radicalmente essa problemática do grau-zero, de um nível “bruto” de satisfação que seria submetido, em um segundo tempo, ao processo de sublimação. Ele articula a noção de maneira estritamente inversa. O ponto de partida não é mais o objeto “bruto”, não “cultivado” ainda, mas seu avesso, quer dizer o vazio em torno do qual se articula o desejo. O objeto a, objeto causa do desejo, encarna precisamente esse vazio. Ele é a positivação de um “nada” que, de uma certa maneira, coincide com sua própria falta, com seu lugar vazio: objeto “impossível”, não simbolizável, que Lacan designa pelo termo freudiano das Ding, a Coisa real-horrível-impossível-de-suportar. A partir daí, o objeto sublime é o que é “elevado à dignidade da Coisa” (Lacan): um objeto cotidiano, “positivo”, que graças a uma forma de transubstanciação, começa a funcionar, na economia simbólica do sujeito, como positivação do “nada”, da Coisa impossível. Este é o motivo pelo qual, paradoxalmente, este objeto não subsistiria em outro lugar do que na sombra, evocado, sempre implícito. O episódio de Roma de Fellini onde os trabalhadores encontram uma caverna inexplorada quando cavam um túnel para a construção do metrô, testemunha essa impossibilidade de explicitar este objeto a: ao perfurar um muro, os arqueólogos caem sobre uma soberba sala romana ornada de afrescos com figuras melancólicas. Contudo, como são demasiado frágeis para suportar a luz, as cores desbotam imediatamente, e o espectador estupefato limita-se a observar, impotente diante da lenta desaparição daquilo de que se aproximou demasiado. Assim é o objeto sublime: na sombra, ele evoca a Coisa fascinante, mas de perto, ela se esvanece em uma realidade banal, e se faz resto[1].
O que é a sublimação em Um corpo que cai? O gênio de Hitchcock reside aqui na maneira como ele escandiu a história, operando um corte entre a primeira e a segunda parte. O início, até o suicídio da falsa Madeleine, é um formidável engodo: a história da obsessão progressiva do herói pela fascinante imagem de Madeleine que conduz necessariamente à morte. Se o filme terminasse aí, com um herói arrasado pela perda de uma mulher amada, seria não apenas perfeitamente coerente, mas, graças a esse encurtamento, ele ganharia uma nova “profundidade”, ou ao menos uma significação suplementar. Esta seria a história de uma paixão dramática onde um homem, tentando desesperadamente salvar a amada de espíritos que a atacam, a colocaria no caminho da morte sem saber. E poder-se-ia mesmo propor uma interpretação lacaniana, de ver aí uma variação sobre o tema da impossibilidade da relação sexual. O fato de elevar uma mulher em particular à dignidade da Coisa comporta, com efeito, inevitavelmente, um perigo de morte para essa mulher em particular, desde que encarregada de encarnar essa Coisa – logo, “a mulher não existe”...
Ora, a segunda parte do filme torna obsoleta essa “significação profunda”, na medida em que ela banaliza radicalmente a intriga. Por trás da aparência do herói fascinado pelo enigma da mulher marcada pela morte, descobre-se um simples complô criminoso tramado pelo marido ávido por apropriar-se de uma herança. Enquanto o herói o ignora, ele não pode renunciar a seu fantasma. Ele se põe então a buscar a mulher perdida; quando enfim ele encontra alguém que se parece com ela, ele busca encontrar nela a imagem da morta graças às roupas, ao penteado... Ora, trata-se bem da mesma mulher, a que ele conheceu sob o nome de Madeleine, de quem o “suicídio” havia sido simulado – como no célebre diálogo dos irmãos Marx: “Você me chama de Emmanuel Ravelli – Mas eu sou Emmanuel Ravelli! – Não surpreende, então, que você se pareça com ele”.
Essa identidade cômica entre o parecer e o ser anuncia, portanto, a proximidade da morte. Com efeito, se a falsa Madeleine se assemelha, é porque, de uma certa maneira, ela já está morta. Dito de outra maneira, a sublimação de sua figura se traduz por sua mortificação no real. A mensagem do filme é, por conseguinte, completamente clara: o fantasma rege a realidade, jamais se usa uma máscara sem que cedo ou tarde se pague na própria carne.
Toda a sutileza de Hitchcock consistiu em evitar a alternativa simples: ou bem a história romântica do amor impossível ou bem o desvelamento de uma intriga comum por detrás da máscara do sublime, que teria deixado intacto o poder de fascinação exercido pelo objeto. O sujeito teria sido então simplesmente enganado, e nada lhe impediria de buscar uma outra mulher que, desta vez, não lhe enganasse. O cineasta escolheu uma via mais radical, ele dessublima o objeto, ele solapa seu poder de fascinação a partir do interior.
A esse respeito, é suficiente recordar como Judy se apresenta pela primeira vez, a jovem parecida com Madeleine. Ela é ruiva, mal maquiada, sem qualquer distinção, quase vulgar – o oposto de Madeleine, tão frágil e tão refinada. E os esforços do herói para fazer de Judy Madeleine, para assimila-la a esse objeto sublime, parecerão tanto mais derrisórios quanto necessário confrontar-se com o fato: Madeleine era na verdade essa mulher vulgar. Mas essa reviravolta não quer dizer que uma mulher não pode jamais ser identificada ao objeto sublime, ela mostra como o próprio objeto ao perder seu poder de fascinação torna-se resto.
Lembram-se desse programa de televisão realizado pelo Comandante [Jacques] Cousteau, onde se via uma espécie de polvo mover-se no mar? Sob a água, no seu elemento, o animal exercia um poder fascinante e terrificante ao mesmo tempo, seus movimentos eram rápidos e elegantes, mas quando ele foi tirado para a terra firme, não se viu mais do que uma massa informe e repulsiva. O herói de Um corpo que cai sofre a mesma experiência com Judy-Madeleine: colocada “fora de seu elemento”, não aparecendo mais sobre o fundo da Coisa, sua beleza se transmuda em um repugnante dejeto. Uma mulher de fato não está em seu elemento senão enquanto objeto do fantasma masculino: o movimento da dessublimação lhe faz perder seu estatuto de objeto. Ela se torna assim dejeto, mas se subjetiva ao mesmo tempo, na medida em que ela se encontra confrontada com o vazio de sua subjetividade, até preenchê-lo através da presença do objeto fantasmático.
O salto suicida do alto do campanário de Judy-Madeleine (que se junta à lista já longa de quedas mortais de filmes de Hitchcock: Os trinta e nove degraus, O sabotador, Janela indiscreta, etc.) parece ser o par real de sua queda como objeto sublime. Mas a relação entre essas duas quedas não é a de uma simples metáfora, onde a queda real traduziria o fato de que ela perdeu seu estatuto simbólico. Ela cai realmente depois de perceber que ela havia caído de seu estatuto no Outro: ela não é mais ligada a I, a um traço no Outro. Logo, ela cai porque ela sabe que já caiu.
Sua queda não deixa de recordar esta cena clássica de desenhos animados: um gato corre, o caminho termina diante de um precipício, o gato segue seu caminho e só cai quando percebe que está suspenso sobre o vazio. A anedota é bem feita para ilustrar a tese de Lacan segundo a qual há um saber no real (“as coisas sabem como se comportar”, os planetas conhecem a fórmula da gravitação...), pois esta história do gato constitui uma prova a contrario, como se esse saber tivesse sido, no espaço de um instante, esquecido pelo real, que não se comporta segundo suas próprias leis senão quando, de súbito, ele se lembra delas. Uma tal suspensão do saber no real permitiria dar conta desse sonho freudiano do pai que “não sabia que estava morto”. A angústia dessa cena, com efeito, reside em que o pai vive ainda porque ele não sabe que está morto. E se nós atravessássemos a passagem estreita que separa a angústia do riso nós diríamos: ele vive porque ele esqueceu de morrer.
Dessa maneira as formas institucionais anacrônicas persistem porque elas não sabem que perderam toda legitimidade: elas não se aniquilam senão quando a opinião comum descobre que elas estão mortas.
Se então o fim de Um corpo que cai constitui o mais belo exemplo de dessublimação de toda a história do cinema, a primeira parte ao contrário oferece provavelmente a mais bela manifestação de um fantasma, no sentido estrito de um cenário que realiza o desejo, ou mais exatamente encena o ato de desejar, a situação intersubjetiva que permite ao sujeito se constituir como desejante, e não simplesmente a satisfação do desejo.
A história de ficção-científica de Robert Scheckley[2], Au bazar des mondes ilustrará para nós essa distinção capital: um certo M. Wayne se dirige à casa do velho e misterioso Tompkins, que vive em uma parte deserta da cidade, em uma velha e solitária cabana, pois Wayne soube que o velho tem o poder de dar vidas paralelas – de deslocar as pessoas para um outro tempo onde seus desejos podem ser satisfeitos, sob a condição de ceder tudo o que possuem. Tompkins assegura que seus clientes são sempre satisfeitos, mas M. Wayne hesita. O outro lhe aconselha a não ter pressa e refletir bem antes de decidir. Dito e feito, ele divaga sobre isso por todo o caminho de volta, mas uma vez entrando em casa, onde sua família o espera, ele se deixa levar pelas preocupações cotidianas. Todos os dias ele promete a si mesmo voltar até lá e tentar essa experiência de realização de seu desejo, mas as imperiosas necessidades da vida – sair com sua mulher, ajudar seus filhos com os deveres, sair de férias – obrigam-no a adiar o projeto, de maneira que um ano inteiro se passa sem que ele possa tomar sua decisão, ainda que não parasse de se inquietar com essa tarefa sempre postergada. Até o dia em que desperta na cabana de Tompkins, que lhe pergunta como ele se sente e se está satisfeito. Wayne lhe responde distraidamente que sim e lhe cede toda a sua riqueza –três bibelôs enferrujados – antes de partir rapidamente para não faltar à distribuição de sopa e reaver seu abrigo antes de anoitecer, antes que os ratos que reinam sobre as ruínas da guerra atômica saiam de suas tocas.
Diferentemente da descrição imaginária da morte da civilização, esse conto faz perceber o engodo que é o verdadeiro paradoxo do desejo. O que se acredita ser o adiamento já é a “coisa mesma”, o que se toma pela busca e pela indecisão próprias ao ato de desejar já é a realização do desejo. Assim este não é nunca o estado no qual o desejo seria satisfeito, ele coincide, sobretudo, com o circuito do desejo, com sua reprodução como desejo. O herói “realizou” seu desejo por alucinação, colocando-se em um estado onde ele pode adiar sem cessar sua plena satisfação. Esse mecanismo permite também compreender o que Lacan falou da angústia: ela não é causada pela perda do objeto, mas, ao contrário, por sua proximidade demasiado perigosa, onde o sujeito arrisca perder a falta fundadora de seu desejo. Quando “a falta vem a faltar” surge a angústia de ver desaparecer o desejo.

Título original: “Sueurs froides: la sublimation et la chute de l’objet” In: ŽIŽEK, Slavoj (org.) Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur Lacan sans jamais oser le demander à Hitchcock, Paris, Navarin Éditeur, 1988.

* Vertigo (1958). Scottie, um antigo inspetor afastado da polícia devido à sua tendência à vertigem, é encarregado por um de seus velhos amigos de vigiar sua mulher, Madeleine, cujo comportamento estranho faz com que se tema seu suicídio. Ele a segue, a salva de um afogamento voluntário, apaixona-se por ela, mas não consegue, por causa de sua vertigem, impedir que ela se atire do alto de um campanário. Um dia, ele encontra na rua a sósia de Madeleine. Essa mulher afirma chamar-se Judy, mas nós percebemos tratar-se de Madeleine. Ela era não a mulher, mas a amante do amigo de Scottie, de quem a mulher legítima foi atirada, já morta, do alto do campanário pelos dois comparsas. Scottie, tendo enfim compreendido que Judy é Madeleine, arrasta-a à força para o campanário, vence sua vertigem, vê a jovem aterrorizada cair no vazio pelo susto e retorna libertado.

[1] Encontram-se essas mesmas figuras antigas e melancólicas em Satiricon: sua tristeza parece querer atestar um saber paradoxal ou impossível, em virtude do qual elas se sabem consagradas por antecipação à danação desde que, sendo pagãs, elas vieram mais cedo aceder à verdade cristã. Paradoxalmente, elas estão tão somente mais próximas da Verdade, como sublinha Fellini representando os cristãos com características hipócritas ou obscenas...
[2] Robert Scheckley, Douces Illusions, Calmam-Levy, 1978