Introdução
Alfred Hitchcock, ou, A Forma e sua Mediação Histórica
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira
O que normalmente é deixado despercebido na multidão de tentativas de se interpretar a ruptura entre modernismo e pós-modernismo é a maneira como essa mesma ruptura afeta o próprio status da interpretação. Tanto o modernismo quanto o pós-modernismo concebem a interpretação como inerente a seu objeto: sem isso nós não teríamos acesso à obra de arte – o tradicional paraíso onde, independente de sua versatilidade no artifício da interpretação, todos podem apreciar a obra de arte, está irrecuperavelmente perdido. A ruptura entre modernismo e pós-modernismo está assim situada dentro desta relação inerente entre o texto e seu comentário. Uma obra de arte modernista é, por definição, ‘incompreensível’; ela funciona como um choque, como a irrupção de um trauma que mina a complacência de nosso cotidiano e resiste em ser integrada no universo simbólico da ideologia dominante; em decorrência disso, depois desse primeiro encontro, a interpretação entra em cena e nos permite integrar esse choque – ela nos informa, por exemplo, que este trauma registra e aponta para a chocante depravação de nossas próprias vidas cotidianas ‘normais’... Neste sentido, a interpretação é o momento conclusivo de cada ato de recepção: T.S. Eliot foi bastante astuto quando complementou seu Waste Land com notas de referências literárias tal como se poderia esperar de um comentário acadêmico.
O que o pós-modernismo faz, contudo, é o exato oposto: seus objetos par excellence são produtos com um singular apelo de massa (filmes como Blade Runner, O Exterminador do Futuro ou Veludo Azul) – cabe ao intérprete detectar nessas obras as mais esotéricas sutilezas teóricas de Lacan, Derrida ou Foucault. Então, se o prazer da interpretação modernista consiste no efeito de recognição que ‘gentrifica’ a inquietante estranheza de seu objeto (‘Ah, agora eu percebo o sentido dessa aparente confusão!’), o objetivo do tratamento pós-modernista é estranhar essa mesma familiaridade inicial: ‘Você pensa que o que você vê é um simples melodrama que até o seu avô senil não teria dificuldades em acompanhar? Contudo, sem considerar.../a diferença entre sintoma e sinthomem; a estrutura do nó borromeano; o fato de que a mulher é um dos Nomes-do-Pai; etc; etc./ você perde totalmente o sentido de que se trata!’
Se há um autor cujo nome resume esse prazer interpretativo de ‘afastar’ o conteúdo mais banal, é Alfred Hitchcock. Hitchcock, como o fenômeno teórico que nós temos testemunhado nas últimas décadas – o fluxo interminável de livros, artigos, cursos universitários, temas de conferências – é um fenômeno ‘pós-moderno’ par excellence. Isso se apoia na extraordinária transferência que sua obra põe em movimento: para verdadeiros aficionados em Hitchcock, em seus filmes tudo faz sentido, o aparentemente mais simples complô esconde as mais inesperadas iguarias filosóficas (e – é inútil negá-lo – este livro compartilha irrestritamente desta loucura). No entanto, considerando tudo, Hitchcock é um ‘pós-modernista’ avant la lettre? Como se deve situá-lo em relação à tríade realismo-modernismo-pós-modernismo elaborada por Fredric Jameson, com um olhar especial na história do cinema, onde ‘realismo’ representa a Hollywood clássica – isto é, o código narrativo estabelecido nos anos 1930 e 1940, o ‘modernismo’ referindo-se aos grandes auteurs dos anos 1950 e 1960, e ‘pós-modernismo’ referindo-se à confusão em que estamos hoje – ou seja, a obsessão com a Coisa traumática que reduz toda grade narrativa a uma tentativa fracassada particular em ‘gentrificar’ a Coisa?[i]
Para uma abordagem dialética, Hitchcock é de especial interesse precisamente na medida em que ele se situa nas fronteiras dessa tríade classificatória[ii] - qualquer tentativa de classificação nos leva, mais cedo ou mais tarde, a um resultado paradoxal no qual Hitchcock é, de certa forma, os três ao mesmo tempo: ‘realista’ (dos velhos críticos e historiadores esquerdistas sob cujo olhar seu nome resume o fechamento narrativo ideológico de Hollywood, até Raymond Bellour, para quem seus filmes são variações da trajetória edipiana e, como tais, ‘são tanto versões excêntricas quanto exemplares’ da narrativa clássica hollywoodiana[iii]), ‘modernista’ (i.e., um precursor e ao mesmo tempo na linha de grandes auteurs que, às margens ou fora de Hollywood, subverteram seus códigos narrativos – Wells, Renoir, Bergman...), ‘pós-modernista’ (ainda que não houvesse outro motivo, então pela transferência acima mencionada que seus filmes engendram entre os intérpretes).
Então, o que é Hitchcock ‘na verdade’? Ou seja, fica-se tentado a tomar a saída fácil, afirmando que ele é ‘verdadeiramente um realista’, firmemente incorporado à maquinaria de Hollywood, e apenas mais tarde apropriado pelos modernistas em torno do Cahiers du cinema, e depois pelos pós-modernistas – mesmo essa solução conta com a diferença entre a ‘Coisa-em-si’ e suas interpretações secundárias, uma diferença que é epistemologicamente profundamente suspeita na medida em que uma interpretação nunca é simplesmente ‘externa’ a seu objeto. É, portanto, muito mais produtivo transpor este dilema para a própria obra de Hitchcock e conceber a tríade realismo-modernismo-pós-modernismo como um princípio classificatório que nos permite introduzir ordem aí por meio da diferenciação de seus cinco períodos:
· Os filmes anteriores a Os 39 degraus: Hitchcock antes de sua ‘ruptura epistemológica’, antes do que Elizabeth Weis chamou apropriadamente de ‘consolidação do estilo clássico [de Hitchcock]’[iv], ou – para colocar em termos hegelianos – antes que ele se tornasse seu próprio conceito. É claro, pode-se aqui jogar o jogo do ‘Todo o Hitchcock já está aí’, em filmes antes da ruptura (Rothman, por exemplo, discerniu em O Pensionista [The Lodger, 1927] os ingredientes de todo Hitchcock até Psicose[v]) – com a condição de que não se negligencie a natureza retroativa de tal procedimento: o lugar de onde se fala é a noção já-atualizada do ‘universo de Hitchcock’.
· Os filmes ingleses da segunda metade dos anos 1930 – de Os 39 degraus até A Dama Oculta: ‘realismo’ (claramente a razão pela qual mesmo um marxista linha-dura como Georges Sadoul, geralmente muito crítico em relação a Hitchcock, é simpático a estes filmes), formalmente dentro dos limites da narrativa clássica, tematicamente centrada na história edípica da jornada iniciática do casal. Quer dizer, a ação movimentada nestes filmes não deve nos enganar nem por um minuto – sua função, em última instância é tão somente por à prova o amor do casal e então tornar possível sua reunião final. Todas são histórias de um casal atado (às vezes literalmente: note o papel das algemas em Os 39 degraus) acidentalmente que então tem de amadurecer através de uma série de provações – isto é, variações sobre o tema fundamental da ideologia do casamento burguesa, que teve a sua primeira e talvez mais nobre expressão na Flauta Mágica de Mozart.[vi] Os casais atados por acaso e unidos pela provação são Hannay e Pamela em Os 39 degraus, Ashenden e Elsa em O Agente Secreto, Robert e Erica em Jovem e Inocente, Gilbert e Iris em A Dama Oculta – com a notável exceção de O Marido Era o Culpado, onde o triângulo formado por Sylvia, seu marido criminoso Verloc e o detetive Ted prenuncia a conjuntura característica da fase seguinte de Hitchcock.
· O ‘período Selznick’ – filmes que vão de Rebecca – A Mulher Inesquecível até Sob o Signo de Capricórnio: ‘modernismo’, formalmente simbolizado pela prevalência de longos planos-sequência anamorficamente distorcidos, centrados tematicamente na perspectiva da protagonista feminina, traumatizada por uma ambígua (má, impotente, obscena, fragmentada) figura paterna. Isto quer dizer, a história é, em geral, narrada do ponto de vista de uma mulher dividida entre dois homens: a figura mais velha de um vilão (seu pai ou seu marido mais velho, incorporando uma das típicas figuras hitchcockianas, o qual é consciente do mal em si mesmo e se esforça depois de sua destruição) e o mais jovem e um tanto insípido ‘bom moço’, a quem ela escolhe no final. Além de Sylvia, Verloc e Ted em O Marido era o Culpado, os principais exemplos de tais triângulos são Carol Fisher, dividida entre a lealdade ao pai pró-nazista e o amor pelo jovem jornalista americano em Correspondente Estrangeiro; Charlie, dividida entre seu tio assassino de mesmo nome e o detetive Jack em A sombra de uma Dúvida; e, claro, Alicia, dividida entre seu marido mais velho Sebastian e Devlin, em Interlúdio.[vii] O ambíguo apogeu deste período é, claro, Festim Diabólico: no lugar da heroína feminina, temos aqui o membro ‘passivo’ de um casal homossexual (Farley Granger), dividido entre seu companheiro sedutoramente mau e seu professor, o Catedrático (James Stwart), que não está preparado para reconhecer no crime cometido por seu alunos a realização de seu próprio ensino.
· Os grandes filmes dos anos 1950 e início dos anos 1960 – de Pacto Sinistro até Os Pássaros: ‘pós-modernismo’, formalmente simbolizado pela acentuada dimensão alegórica (a indexação, dentro do conteúdo diegético do filme, de seu próprio processo de enunciação e consumação: referências a ‘voyeurismo’ de Janela Indiscreta a Psicose, etc.), tematicamente centrada na perspectiva do herói masculino para quem o superego materno bloqueia o acesso à relação sexual ‘normal’ (Bruno em Pacto Sinistro, Jeff em Janel Indiscreta, Roger Thornhill em Intriga Internacional, Norman em Psicose, Mitch em Os Pássaros, até o ‘assassino da gravata’ em Frenesi).
· Filmes que vão de Marnie – Confissões de uma Ladra em diante: apesar de momentos brilhantes (a carcaça de barco em Marnie, o assassinato de Gromek em Cortina Rasgada, o plano-sequência em recuo em Frenesi, o uso de narração paralela em Trama Macabra, etc.) estes são ‘pós’-filmes, filmes de desintegração; seu principal interesse teórico reside no fato de que – precisamente por causa de sua desintegração; por causa do rompimento do universo de Hitchcock em seus ingredientes particulares – eles nos permitem isolar estes ingredientes e apreendê-los claramente.
(continua)
[i] Ver Fredric Jameson, “The Existence of Italy”, IN Signatures of Visible, New York, Routledge, 1990. A aplicabilidade da tríade jamesoniana realismo-modernismo-pós-modernismo é antes confirmada pela maneira como ela nos permite introduzir ordre raisonné em uma série de filmes contemporâneos. Assim, não é difícil perceber como, na série dos três filmes The Godfather [O Poderoso Chefão], o primeiro é ‘realista’ (no sentido do realismo hollywoodiano: o fechamento narrativo, etc.), o segundo, ‘modernista’ ( o redobramento de uma única linha narrativa: todo o filme é uma espécie de apêndice duplo do primeiro, uma prequela e sequência da já contada história principal), e o terceiro, ‘pós-modernista’ (uma bricolage de fragmentos narrativos que não formam um conjunto através de uma ligação orgânica ou de um quadro mítico formal). A qualidade decrescente de cada filme da sequência atesta que o dominante da trilogia é o ‘realista’, o que não pode ser dito de três outros filmes de meados dos anos 1980 que formam também uma espécie de trilogia: Fatal Attraction (Atração Fatal), Something Wild (Totalmente Selvagem), Blue Velvet (Veludo Azul). A tríade realismo-modernismo-pós-modernismo é aqui ilustrada pelas três diferentes atitudes em relação à Outra Mulher como o ponto de ‘atração fatal’ através do qual o Real invade a realidade cotidiana e perturba seu circuito: Atração Fatal permanece dentro dos limites da ideologia estabelecida da família, onde a Outra Mulher (Glenn Close) personifica o mal a ser rejeitado ou morto; em Totalmente Selvagem, ao contrário, Melaine Griffith representa aquela que livra Jeff Daniels do falso mundo yuppie e o força a enfrentar a vida real; em Veludo Azul, Isabella Rosselini escapa dessa simples oposição e aparece como a Coisa em toda a sua ambiguidade, simultaneamente atraindo e repelindo o herói... A qualidade ascendente prova como o dominante aqui é ‘pós-modernista’.
[ii] Foi Deleuze quem situou Hitchcock na própria fronteira da ‘image-mouvement’, no ponto no qual ‘image-mouvement’ passa para a ‘image-temps’: ‘le dernier des classiques, ou le premier des modernes’ (Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Editions de Minuit, 1990, p.79).
[iii] Raymond Bellour, “Psychosis, Neurosis, Perversion”, in Marshall Deutelbaum e Leland Poague (orgs.) A Hitchcock Reader, Ames, Iowa State University Press, 1986, p.312. Se, além disso, se aceita a definição de Bellour da matriz fundamental hollywoodiana como uma ‘máquina para a produção do casal’, tem que se procurar o funcionamento contínuo dessa máquina não em Hitchcock, mas em um grande número de filmes recentes que, ostensivamente, não tem nada em comum com a Hollywood clássica.
Vamos apenas mencionar dois filmes de 1990 que parecem não ter absolutamente nada em comum: Tempo de Despertar e Dança com Lobos – há, no entanto, uma característica crucial que os une. Em termos de seu conteúdo ‘oficial’, Tempo de Despertar é a história de um médico (Robin Williams) que, através do uso de novos remédios químicos desperta pacientes de períodos de coma de décadas e lhes permite retornar brevemente à vida normal; ainda que a chave do filme resida no fato de que o médico é tímido, reservado, sexualmente ‘não-desperto’ – o filme termina com seu despertar: i.e., quando ele convida para um encontro sua prestativa enfermeira. Em última instância, os pacientes despertam apenas para entregar ao médico a mensagem que lhe concerne: a virada no filme ocorre quando Robert de Niro, um dos pacientes despertados, pouco antes de sua recaída, diz-lhe na cara que o único verdadeiramente ‘não despertado’ é ele (o médico), incapaz de apreciar as pequenas coisas que dão sentido a nossas vidas... O desfecho do filme então se apoia numa espécie de troca simbólica não falada: como se os pacientes fossem sacrificados (permitindo a recaída no coma, i.e., ‘adormecer’ de novo) para que o médico possa despertar e ter um parceiro sexual – em suma, para que um casal seja produzido. Em Dança com Lobos, o papel do grupo de pacientes é assumido pela tribo Sioux, a qual se permite que desapareça, em uma troca simbólica implícita, de maneira que o casal, formado por Kevin Costner e a mulher branca que viveu entre os índios desde criança, possa ser produzido.
[iv] Elizabeth Weis, The Silent Scream, Londres, Associated University Presses, 1982, p.77.
[v] Ver o capítulo 1 de William Rothman, The Murderous Gaze, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1982.
[vi] O paralelo poderia ser expandido até os detalhes: a mulher misteriosa que encarrega o herói desta missão (o estranho assassinado no apartamento de Hannay em Os 39 degraus; a simpática idosa senhora que desaparece no mesmo filme) – não é ela uma espécie de reencarnação da ‘Rainha da Noite’? E o negro Monostatos não está reencarnado no baterista assassino com o rosto escurecido em Jovem e Inocente? Em A Dama Oculta o herói atrai a atenção de seu futuro amor tocando o quê? – uma flauta, claro!
[vii] A notável exceção aqui é Sob o Signo de Capricórnio, onde a heroína resiste ao charme superficial de um jovem sedutor e retorna ao seu marido mais velho e criminoso, depois de confessar que o crime pelo qual seu marido havia sido condenado tinha sido cometido por ela – em suma, a condição da possibilidade para esta exceção é a transferência da culpa, que anuncia o próximo período.
Bastante esclarecedor o texto. Tal como Baudelaire é Hitchcock. Gênio é assim mesmo: um pouco de tudo e ele só.
ResponderExcluirIvo de Souza