quinta-feira, 11 de junho de 2009

Órgãos sem Corpos-Gilles Deleuze - 3. Devir-máquina - Slavoj Zizek

Órgãos sem corpos – Gilles Deleuze
3. Devir-máquina
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Talvez o cerne do conceito de repetição de Deleuze seja a idéia de que, em contraste com a repetição mecânica (não maquínica!) da causalidade linear, em uma instância própria de repetição, o evento repetido seja recriado em um sentido radical: ele (re)surge a cada momento como Novo (ou seja, “repetir” Kant é redescobrir a novidade radical de sua ruptura, de sua problemática, não repetir os enunciados que oferecem suas soluções). Fica-se tentado aqui a estabelecer uma conexão com a ontologia cristã de Chesterton, na qual a repetição do mesmo é o grande milagre: não há nada “mecânico” no fato de que o sol nasça de novo todas as manhãs; este fato, ao contrário, mostra o mais alto milagre da criatividade de Deus.1 O que Deleuze chama de “máquinas desejantes” concerne apenas a algo completamente diferente do mecânico: o “devir-máquina”. Em que consiste esse devir? Para muitos neuróticos obsessivos, o medo de voar tem uma imagem bastante concreta: fica-se assombrado pelo pensamento de quantas partes de tal máquina tão imensamente complicada como o avião moderno tem que funcionar tranquilamente para que o avião se mantenha no ar – uma pequena peça quebra em algum lugar, e o avião pode muito bem cair em espiral... Frequentemente fala-se da mesma maneira a respeito do próprio corpo: quantas pequenas coisas têm que funcionar tranquilamente para me manter vivo? – um minúsculo coágulo de sangue em uma veia, e eu morro. Quando se começa a pensar em quantas coisas podem dar errado, não se pode experimentar senão um pânico total e aterrador. A “esquizo” deleuziana, por outro lado, meramente se identifica com essa máquina infinitamente complexa que é o nosso corpo: ela experimenta essa máquina impessoal como sua afirmação máxima, regozijando-se em seu constante estímulo. Como Deleuze enfatiza, o que temos aqui não está relacionado a uma metáfora (o velho e tedioso tema das “máquinas substituindo humanos”), mas à metamorfose, ao “devir-máquina” do homem. É aqui que o projeto “reducionista” dá errado: o problema não é reduzir a mente ao processo “material” neuronal (substituir a linguagem da mente pela linguagem dos processos cerebrais, traduzir o primeiro no segundo), mas, sobretudo, compreender como a mente pode emergir apenas sendo encaixada na rede de relações sociais e complementos materiais. Em outras palavras, o verdadeiro problema não é “Como, de qualquer maneira, as máquinas podem IMITAR a mente humana?”, mas “Como a própria identidade da mente humana depende de suplementos mecânicos externos? Como ela incorpora as máquinas?”.
Em vez de lamentar a maneira como a externação progressiva de nossas capacidades mentais em instrumentos “objetivos” (desde escrever em um papel até depender de um computador) nos priva de potenciais humanos, poder-se-ia, portanto enfocar a dimensão libertadora dessa externação: quanto mais nossas capacidades são transpostas para máquinas externas, mais nós emergimos como sujeitos “puros”, na medida em que este esvaziamento corresponde ao surgimento da subjetividade dessubstancializada. Apenas quando nós pudermos contar inteiramente com “máquinas pensantes” é que nos confrontaremos com o vazio da subjetividade. Em março de 2002, a mídia noticiou que, em Londres, Kevin Warwick se tornou o primeiro homem cibernético. Em um hospital em Oxford, seu sistema neuronal foi conectado diretamente a uma rede de computadores; ele é assim o primeiro homem cujas informações serão alimentados diretamente, contornando os cinco sentidos. ESTE é o futuro: a combinação da mente humana com o computador (em vez da substituição do antigo pelo novo).
Nós tivemos outra prova deste futuro em maio de 2002 quando foi noticiado que cientistas da Universidade de Nova York tinham conectado um chip de computador pronto para receber sinais diretamente no cérebro de um rato, com o intuito de se poder controlá-lo (determinando-se a direção em que ele irá correr) por meio de um mecanismo de navegação (da mesma maneira que se faz correr um carro de brinquedo por controle remoto). Este não é o primeiro caso de conexão direta entre o cérebro humano e um sistema de computadores: já existem semelhantes mecanismos que permitem que pessoas cegas tenham informações visuais elementares sobre o ambiente circundante, os quais alimentam diretamente o cérebro, contornando o aparato de percepção visual (olhos, etc.). O que é novo no caso do rato é que, pela primeira vez, a “vontade” de um agente animal vivo, suas decisões “espontâneas” sobre os movimentos que ele irá fazer são tomadas por uma máquina externa. A grande questão filosófica aqui, claro, é: como o desafortunado rato “experimenta” seu movimento, o qual foi, efetivamente, decidido de fora? Ele continua a experimenta-lo como algo espontâneo (i.e., ele é totalmente inconsciente de que seus movimentos são manipulados?), ou ele esta ciente de que “algo está errado”, de que outro poder externo está comandando seus movimentos? Ainda mais crucial é aplicar o mesmo raciocínio a um experimento idêntico realizado com humanos (que, apesar de questões éticas, não seria muito mais complicado, tecnicamente falando, do que em relação ao rato). No caso do rato, pode-se argumentar, não se poderia aplicar a essa experiência a categoria humana de “experiência”, como seria o caso se ela fosse feita com um ser humano. Então, mais uma vez, um ser humano cujos movimentos são comandados de fora continua a vivenciar seus movimentos como algo espontâneo? Ele permanecerá totalmente inconsciente de que seus movimentos são manipulados, ou estará ciente de que “alguma coisa está errada”, de que um poder exterior está comandando seus movimentos? E como, precisamente, este “poder externo” aparecerá – como algo “dentro de mim”, uma inexorável pulsão interna, ou como uma simples coerção externa?2 Talvez a situação seja aquela descrita no famoso experimento de Benjamin Libet3; o ser humano comandado continuará a vivenciar o impulso para se mover como sua decisão “espontânea”, mas – devido ao famoso meio segundo de defasagem – ele conservará a liberdade mínima para BLOQUEAR essa decisão. É também interessante que aplicações desse mecanismo foram mencionadas pelos cientistas e repórteres: os primeiros artigos concerniam ao par ajuda humanitária e campanha antiterrorista (alguém poderia usar os ratos ou outros animais manipulados para contactar vítimas de um terremoto sob os escombros, bem como para aproximar-se de terroristas sem arriscar vidas humanas). E o crucial que se deve ter em mente aqui é que essa estranha experiência da mente humana diretamente integrada a uma máquina não é a visão de um futuro ou de algo novo, mas o vislumbre de algo que sempre esteve em curso, que está aqui desde o começo, na medida em que é co-substancial à ordem simbólica. O que muda é que, confrontada com a materialização direta da máquina, sua integração direta à rede neuronal, não se pode mais sustentar a ilusão da autonomia da personalidade. É notório que os pacientes que necessitam de diálise no início experimentam um devastador sentimento de desamparo: é difícil aceitar o fato de que a própria sobrevivência depende de um dispositivo mecânico que eu vejo aí fora, diante de mim. Todavia, o mesmo vale para todos nós: em termos um tanto exagerados, todos nós estamos na dependência de um aparato simbólico-mental de diálise.
A tendência no desenvolvimento dos computadores é em direção à sua invisibilidade. As grandes máquinas ruidosas com misteriosas luzes que piscam serão cada vez mais substituídas por minúsculos bits encaixando-se imperceptivelmente em nossos ambientes “normais”, permitindo que eles funcionem mais facilmente. Os computadores se tornarão tão pequenos que eles serão invisíveis, em todos os lugares e em parte alguma – tão poderosos que irão sumir da vista. Poderíamos tão somente relembrar como são os carros de hoje, onde muitas funções ocorrem facilmente por causa dos pequenos computadores que nós frequentemente ignoramos (abertura de janelas, aquecimento...). Em um futuro próximo, teremos cozinhas computadorizadas, roupas, óculos e sapatos. Longe de ser uma questão para um futuro distante, essa invisibilidade já está aqui: a Phillips planeja em breve colocar no mercado um fone e tocador de música integrado a uma jaqueta de tal maneira que não apenas será possível vesti-la normalmente (sem preocupação com o que poderá acontecer com o mecanismo digital), mas até mesmo lavá-la sem dano ao equipamento eletrônico. Esta desaparição do campo de nossa experiência sensória (visual) não é tão inocente quanto pode parecer: a mesma característica que fará a jaqueta da Phillips algo fácil de se lidar (não mais uma máquina frágil e incômoda, mas uma prótese quase orgânica de nosso corpo) irá conferir-lhe a qualidade de uma espécie de fantasma de um Mestre invisível e onipotente. A prótese maquínica será menos um aparato externo com quem interagimos, e mais parte de nossa direta experiência de nós mesmos como organismos vivos – consequentemente, descentrando-nos a partir de dentro. Por essa razão, o paralelo entre o crescimento da invisibilidade dos computadores e o fato notório de que quando as pessoas aprendem algo suficientemente bem elas deixam de ser conscientes disso, é enganoso. O sinal de que aprendemos uma língua é que nós não precisamos mais enfocar suas regras: nós não apenas falamos-na “espontaneamente”, mas uma atenção ativa em suas regras até mesmo nos impede de falarmos fluentemente. Contudo, no caso da língua, nós anteriormente temos que aprendê-la (“tê-la em nossa mente”), enquanto que computadores invisíveis em nossos ambientes estão aí fora, não atuando “espontaneamente”, mas simplesmente cegamente.
Poder-se-ia aqui dar um passo a mais: Bo Dahlbom está certo, em sua crítica de Dennett4, onde ele insiste no caráter SOCIAL da “mente” – não apenas as teorias da mente são obviamente condicionadas por seu contexto social, histórico (a teoria de Dennett de múltiplos esquemas rivais não se mostra enraizada no capitalismo tardio “pós-industrial”, com seus motivos de competição, descentralização, etc.? – uma noção também desenvolvida por Fredric Jameson, que propôs uma leitura de Consciência Explicada como uma alegoria do capitalismo atual). De maneira muito mais importante, a insistência de Dennett em como ferramentas – inteligência externalizada com as quais os humanos contam – são parte inerente da identidade humana (é sem sentido imaginar um ser humano como uma entidade biológica SEM a complexa rede de suas ferramentas – tal noção seria como, por exemplo, um ganso sem suas penas), abre uma via que poderia ir muito mais longe do que vai o próprio Dennett. Dado que, para colocar nos bons e velhos termos marxistas, o homem é a totalidade de suas relações sociais, por que Dennett não dá o próximo passo lógico e analisa diretamente esta rede de relações sociais? Este domínio da “inteligência externalizada”, das ferramentas até a própria linguagem, especialmente, forma um domínio próprio, que é o que Hegel chamou de “espírito objetivo”, o domínio da substância artificial como oposta à substância natural. A fórmula proposta por Dahlbom então é: da “Sociedade de Mentes” (noção desenvolvida por Minsky, Dennett e outros) para “Mentes da Sociedade” (i.e., a mente humana como algo que pode emergir e funcionar apenas dentro de uma complexa rede de relações sociais e suplementos artificiais mecânicos que “objetivam” a inteligência).



1 G.K.Chesterton, Orthodoxy, San Francisco: Ignatius Press 1995, p. 65.

2 Cognitivistas diversas vezes nos advertiram para levar em conta uma evidência de senso comum: claro que podemos nos entregar a especulações sobre como nós não somos os agentes causais de nossos atos, de como nossos movimentos corporais são comandados por um misterioso espírito mau, no sentido em que apenas aparentemente decidimos livremente o que nossos movimentos fazem. Na falta de boas razões, tal cinismo é, no entanto, simplesmente injustificado. Não obstante, o experimento com o rato não oferece uma razão pertinente para considerar tal hipótese?

3 Benjamin Libet, "Unconscious Cerebral Initiative and the Role of Conscious Will in Voluntary Action," in The Behavioral and Brain Sciences, 1985, Vol. 8, p. 529- 539, and Benjamin Libet, "Do We Have Free Will?", in Journal of Consciousness Studies, 1999, Vol. 1, p. 47-57.

4 Bo Dahlbom, "Mind is Artificial," in Dennett and His Critics, ed. by Bo Dahlbom, Oxford: Blackwell 1993.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

"Psicose: o Nome-do-pai foracluído" 2ª parte Slavoj Zizek

Os não-tolos erram: digressão
(Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira)

O que está em jogo na arte tão particular com a qual Hitchcock manipula o espectador encontra-se nessa relação dialética do erro e da verdade. Psicose é a esse respeito exemplar: queremos que Marion escape da polícia quando esta inspeciona seu carro, queremos que Norman consiga apagar todos as pistas do assassinato do quarto do motel, queremos que o carro de Marion afunde no pântano. Em uma palavra, nós somos manipulados por Hitchcock, no entanto, dessa mentira surgirá a verdade – a verdade sobre nosso desejo de espectador. Por ser impossível alcançar diretamente a verdade, esse desvio pela mentira é indispensável, o que Lacan exprime por “os não-tolos erram”. Pois a verdade a qual se chega põe em causa o desejo, que se articula e não se constitui a não ser através dessa ilusão.
Em relação a isso, o procedimento elementar de Hitchcock consiste em impor de início uma identificação, para subvertê-la em seguida de maneira a confrontar o espectador com o desejo que sustenta essa identificação. Assim fazendo, Hitchcock age como o judeu nesta anedota: um judeu e um polonês viajam no mesmo compartimento de trem. O polonês parece agitado, nervoso, e num certo momento, não se contendo mais, pergunta a seu vizinho: - “Diga-me: como vocês, judeus, conseguem arrancar até o último centavo das pessoas e acumular tanta riqueza?” – “Eu quero te contar, mas não de graça. Dê-me cinco zlotis”, lhe responde o judeu. Quando ele recebe o dinheiro, começa então a contar: “Você deve pegar um peixe morto, cortar-lhe a cabeça, e mergulhar suas vísceras em um copo d’água. Na lua cheia, será preciso enterrar o copo em um cemitério”. “E eu vou enriquecer se fizer tudo isso?” Pergunta avidamente o polonês. “Não tão rápido! Lhe diz o outro. Ainda não acabou. Mas se você quer saber o restante, dê-me mais cinco zlotis”. O judeu, depois de ter recebido o dinheiro, prossegue sua história. Logo, ele pede novamente o dinheiro, e assim sucessivamente até que o polonês reage: “Seu escroque, acredita realmente que não compreendi o que você quer de mim? Não existe segredo. O que você quer é se apoderar de todo o meu dinheiro!” – “Bem, então você compreendeu como os judeus...”.
Tudo é dito nesta história, tudo, incluindo aí o papel do dinheiro na psicanálise. Quando o polonês se revolta, é o momento da saída da transferência; o judeu cessa de ser para ele um “sujeito suposto saber”. Ora, o essencial depende do fato de que o judeu manteve a palavra: ele efetivamente ensinou ao polonês como os judeus... Como ele enganou o polonês? O que este último ignorava? Ele simplesmente esqueceu de incluir no caso seu próprio desejo, da mesma forma como o homem do campo, diante da porta da Lei, na célebre parábola de O Processo de Kafka. A explicação final que o guarda dá ao homem do campo agonizante – que a porta era destinada somente a ele – funciona exatamente como a virada final na história do judeu e do polonês. Nós podíamos mesmo, para tornar a parábola de Kafka totalmente homóloga à piada, imaginar um pequeno acréscimo: depois de uma longa espera, o homem do campo ficaria colérico e diria: “Por que você me engana? Não há nenhum segredo além da porta, ela é destinada somente a mim!” – ao que o guarda responderia: “Bem, você então adivinhou o segredo da porta...” Nos dois casos, o sujeito é confrontado com um além enigmático que se furta. (O que haverá no final da série infinita de portas da Lei? Qual é o segredo do judeu?). E nos dois casos, sua solução consiste em perceber que, para além, não há nada, a não ser a própria forma do segredo, um lugar vazio onde se inscreve o desejo do sujeito – o único segredo residindo na arte de suscitar no sujeito o desejo de dar cabo do segredo. O polonês, como o homem do campo de Kafka, esqueceu de incluir seu próprio ato naquilo de que fala.
E o mesmo acontece na história do “encontro em Samaria”: no mercado de Bagdá, o empregado de um rico mercador encontra a Morte, que subitamente lança um olhar sobre ele; apavorado, ele adentra precipitadamente na casa e diz a seu patrão: “A Morte está atrás de mim. Eu imploro, dê-me um cavalo. Eu quero cavalgar durante toda a noite e todo o dia para chegar amanhã à tarde em Samária. Lá, certamente a Morte não me encontrará!” O patrão atende seu pedido, e depois vai ao mercado para encontrar a Morte, e lhe repreende: “Por que você lançou um olhar ameaçador para o meu empregado?” Surpresa, a Morte lhe responde: “É um mal entendido. Seu empregado enganou-se quanto ao significado do meu olhar. Não se tratava de uma ameaça, mas sim do meu espanto – o que ele faz aqui, em Bagdá, quando eu tenho um encontro com ele amanhã em Samaria?”.
Assim, a verdade surge literalmente do engano. O mito de Édipo apresenta também essa estrutura. O oráculo prediz ao pai que seu filho lhe matará e desposará sua própria mãe, e a predição se realiza justamente porque o pai tenta evitar (ele abandona seu filho recém nascido na floresta... o que faz com que Édipo não lhe reconheça e o mate). Em outras palavras, a profecia se confirma quando este que conhece por antecipação seu destino se esforça para escapar dele – provocando por isso o que ele temia. Sem a predição, talvez Édipo tivesse vivido feliz com seus pais... e nós seríamos privados do complexo de Édipo!
A temporalidade à qual nós temos lidado aqui é mediada pela subjetividade: o erro subjetivo se produz, paradoxalmente, antes do advento da verdade com a qual o erro se confronta, pois esta verdade não é verdade senão pela mediação desse erro. “Astúcia” do inconsciente: ele não é um dado transcendental e inacessível do qual não se pode “tomar consciência”, mas antes (segundo a tradução de Lacan do Unbewusste) um equívoco pelo qual o sujeito apreende seu ato na própria Coisa, e inclui na verdade seu ato de engano quanto à verdade. E esta última se articula em torno do ponto nodal da transferência. Esta estrutura verdade-erro responde, com efeito, à questão: Por que a transferência deve fazer parte da análise? – Porque ela é essa “ilusão”, esse “erro” através do qual surge, no final da análise, a verdade. Tal dialética implica um tempo que se inverte: a verdade não substitui simplesmente o erro, é o próprio erro que, retroativamente, torna-se um momento da verdade. Para dar conta desse paradoxo, Lacan toma um exemplo de ficção-científica (esta é, aliás, a única referência ao gênero em toda a sua obra). Ele explica, na verdade, o sintoma (enquanto “retorno do recalcado”) com ajuda da metáfora da sensação temporal invertida de Norbert Wiener: “Wiener supõe dois personagens cujas dimensões temporais vão em sentido inverso uma da outra. Bem entendido, isso não quer dizer nada, e é assim que as coisas que não querem dizer nada significam, de uma só vez, alguma coisa, mas em um domínio totalmente diferente. Se enviamos uma mensagem a outro, por exemplo um quadrado, o personagem que vai em sentido contrário verá de início o quadrado se esfacelando, antes de ver o quadrado. É isto que, também nós, vemos. O sintoma se apresenta a nós de início como um traço, que não será jamais um traço, e que ficará sempre incompreendido até que a análise tenha ido suficientemente longa, e que tenhamos compreendido seu sentido”10.
Tal concepção supõe, contudo, a idéia de um inconsciente fundamentalmente imaginário: “fixações imaginárias que não foram assimiladas no desenvolvimento simbólico” da história do sujeito e, por conseqüência, “alguma coisa que será realizada no simbólico ou, mais exatamente, que graças ao progresso simbólico na análise, terá sido”.11 Ora, esse quadro conceitual não dá conta do que Lacan designará mais tarde como “a instância da letra no inconsciente”. É necessário então recorrer a um modelo mais sutil do que a metáfora de Wierner – e nós o encontramos em um clássico de ficção-científica, Uma porta no Verão (The door into Summer, 1957), de Robert a. Heinlein.
A hipótese desse romance é a seguinte: em 1970, a “hibernação” se tornou uma prática habitual, largamente comercializada. Por causa de uma decepção profissional, um jovem engenheiro chamado Daniel Boone Davis resolve hibernar por um período de trinta anos. Ao despertar, em dezembro de 2000, ele conhece o velho Doutor Twitchell, professor “louco” que construiu a máquina para viajar no tempo, que o convence a se transportar para o ano de 1970. Lá, nosso herói põe em ordem suas questões: – ele investe seu dinheiro em uma empresa que ele sabe, pela sua passagem pelos anos 2000, que se tornará próspera, e também prepara seu casamento, fazendo hibernar sua futura esposa – indo, ele mesmo, hibernar por trinta anos. Despertam-no então pela segunda vez em 27 de abril de 2001. Tudo está bem. Só um pequeno problema o aborrece: os jornais da época que publicam, além dos anúncios de morte, de nascimento, uma rubrica intitulada “Ressuscitados”, mencionando as pessoas despertadas da hibernação. Seu primeiro período nos anos 2000 e 2001 durou de dezembro de 2000 a junho de 2001. O Doutor Twitchell transportou-o para o passado depois da data de seu segundo despertar, em abril de 2001. O Times de 28 de abril de 2001 publica, consequentemente, em sua lista de “Ressuscitados” do dia 27 de abril, seu próprio nome: D. B. Davis. Como ele poderia, quando de seu primeiro período no ano de 2001, perder essa menção de seu próprio nome, ainda que ele fosse um leitor atento dos “Ressuscitados”? Teria sido uma falha? “E o que teria acontecido então se eu tivesse lido meu nome? Eu teria ido me ver? Eu teria me encontrado? – e eu enlouqueceria imediatamente? Não, porque se eu tivesse lido meu nome, eu não teria feito as coisas que eu fiz em seguida – “em seguida” pra mim – e que desencadearam a publicação de meu nome. Consequentemente, nenhuma dessas coisas poderia ter acontecido. Uma espécie de feedback com efeito negativo está em curso aqui, uma “válvula de segurança” integrada à construção, porque a existência dessa linha no jornal dependia precisamente de que eu não deveria vê-la: a aparente possibilidade de vê-la era uma impossibilidade fundamental, proibida pela “conexão lógica” no plano do mundo. Aí reside o princípio do livre arbítrio, e ao mesmo tempo o do determinismo total – sem contradição”.
Esta problemática nos dá a definição literal da “instância da letra no inconsciente”: uma linha cuja “existência depende precisamente do que eu não deveria ver”. Se o sujeito, no momento de seu primeiro período em 2001, tivesse lido seu nome no jornal (quer dizer, a indicação de seu segundo período em 2001), ele teria em seguida agido de uma maneira bem diferente (ele não teria voltado ao passado, etc.). Em outras palavras, ele teria agido de maneira que seu nome não aparecesse no jornal. A falha teve mesmo um alcance negativamente ontológico: ela é a condição de possibilidade da letra desconhecida. Nós encontramos um tipo do esse-percipi. Aqui, é o non-percipi que é a condição do esse**. Assim podemos talvez apreender o estatuto do inconsciente do qual fala Lacan no livro XI do Seminário: o inconsciente seria uma letra que “insiste”, sob a condição de que ela não “exista” ontologicamente.12 É assim que, aí ainda mais, “as coisas que não querem dizer nada significam subitamente alguma coisa, mas em um domínio totalmente diferente”: a “viagem” para o futuro não é essa antecipação pela qual se supõe no outro um saber que não será obtido e constituído senão posteriormente, através de nosso trabalho significante? Não é isso precisamente a transferência? (Se o recalcado “retorna do futuro” e não do passado, a transferência como a “colocação em ato do inconsciente”13 deve necessariamente nos transferir para o futuro). E a “viagem ao passado”, o que é? – senão a encenação alucinatória desse trabalho significante, e nesse campo somente, pode-se refazer, transformar o passado. Os traços do “passado” mudam com a perlaboração da rede significante “sincrônica”, e essa perlaboração decide retroativamente o que elas “terão sido”.
O paradoxo temporal que está no princípio mesmo da ficção-científica oferece um tipo de “aparição no real” da estrutura fundamental do processo simbólico, do famoso “oito interior” – esse movimento circular “dobrado de dentro” onde não se pode avançar senão sob a condição de superar a transferência, para em seguida encontrar-se aí onde já se estava. O paradoxo é que esse desvio, esse “anel” da “ultrapassagem” não é uma “percepção”, uma “ilusão subjetiva do processo objetivo”, mas algo constitutivo dessa démarche: não se trata de que através desse “desvio” o próprio passado objetivo “se tornará o que sempre foi”. A história de William Tenn, intitulada Como Morniel Mathaway foi descoberto14, ilustrará para nós este último ponto. Um eminente historiador de arte vem do futuro para visitar Mathaway, pintor genial de meados do século XX, desconhecido e, no entanto, imortal. No lugar do gênio que esperava encontrar, ele encontra um escroque megalomaníaco que rouba sua máquina. O historiador é obrigado a ficar no século XX, e sob o nome do desaparecido, começa a pintar.
O indivíduo às voltas com uma cena de seu passado que ele desejaria mudar, graças a uma viagem no tempo, decide intervir na cena. E longe de que ele não possa “aí mudar nada”, somente sua intervenção a partir do futuro permite à cena passada, ao contrário, tornar-se o que ela sempre foi... A ilusão inicial do sujeito consiste em esquecer de incluir seu próprio ato, em desconhecer que “isso conta, é contado, e nessa conta, o contador já está aí”.15









10 J. Lacan, Le séminar, livre I, les écrits techniques de Freud, seuil, Paris, 1975, pp.181-182.

11 Ibid., p.181

** N. do T.: Esse = ser; percipi = percebido; esse-percipi = ser percebido; non-percipi = não percebido. Referência à formulação de George Berkeley (1685-1753) de que ser é ser percebido (esse est percipi).

12 Cf. J. Lacan, Le Séminar, livre XI, les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Seuil, Paris, 1973, pp. 25-26.

13 Cf. J. Lacan, ibid., p.133.
14 Resumido segundo Aléxis Lecaye, Les pirate du paradis, Denoël-Gonthier, Paris, 1981.

15 J. Lacan, Le Séminar, livre XI, p. 24.

Texto original: ŽIŽEK, Slavoj. “Psychose: le Nom-du-père forclos” IN: DOLAR, Mladen, MOCNIK, Rastko, SUMIC-RIHA, Jelica, VRDLOUEC, Zdenko. Sous la direction de ŽIŽEK, Slavoj. Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur Lacan sans jamais oser le demander à Hitchcock. Narvin Éditeur, Paris, 1988.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

"Psicose: o Nome-do-pai foracluído" 1ª parte Slavoj Zizek

Psicose: o Nome-do-pai foracluído*
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

O “maior filme” de Hitchcock, se podemos perdoar essa qualificação convencional, com o qual ele parece ter atingido seu limite. Como se a obra tivesse sido um tal choque que ele tivesse perdido o equilíbrio, e que em seguida se sentisse incapaz de retomar o controle de seus meios. (Comparado à intensidade quase intolerável de Psicose, Os Pássaros aparece como um relaxamento.)
A tonalidade do filme é desde o primeiro momento diferente do que o mestre nos havia até então acostumado, pois o aspecto do meio aonde irá se estabelecer o drama não tem nada de idílico, como era o caso de Janela indiscreta, ou de O terceiro tiro. De uma ponta a outra do filme, para retomar a bela expressão de Hölderlin, faz um “tempo de chumbo”. E essa inclinação da vida, que se desenrola apoiada no cotidiano cinza de ordinary people confinadas em suas esperanças e medos miseráveis (solidão, falta de dinheiro, medo da polícia, esforços desesperados para conseguir uma pequena porção de felicidade), é confrontada ao que se poderia chamar a vertente noturna da psicose – o crime patológico. A relação dos dois registros não é mais a de uma superfície calma e de uma profundidade tempestuosa, mas como as duas superfícies de uma tira de Mœbius: ao percorrermos um lado, subitamente nos encontramos sobre o outro. E o ponto de passagem entre as duas é o assassinato de Marion.
Este episódio é muito frequentemente citado como o maior momento do filme e se negligencia, talvez injustamente, o assassinato de Arbogast. O assassinato de Marion nos surpreende como um choque, uma surpresa “irracional” vindo interromper o desdobramento da história: a heroína, que já tinha obtido a aprovação do público, morre sem qualquer razão concebível antes da metade do filme. Sua morte é encenada de maneira bastante cinematográfica: jamais se vê ao mesmo tempo o assassino desconhecido e o corpo inteiro de Marion; o ato é como que partido por uma dezena de close-ups fragmentários que se sucedem em um ritmo frenético (a faca que se aproxima do ventre, a mão que golpeia, o grito da boca aberta...). Dir-se-ia que os golpes repetidos e bruscos do assassino contaminaram a montagem do filme afligindo a continuidade do olhar fílmico.
Mas como ultrapassar semelhante choque em um segundo assassinato? Hitchcock evidentemente encontrou a solução: ele consegue intensificar o efeito do assassinato de Arbogast filmando, ao contrário, em três ou quatro longas tomadas, de maneira que nós o aguardamos. Aliás, retrospectivamente, tudo parece anunciá-lo: quando o detetive entra na casa de Norman e se detém ao pé da escadaria vazia – este leitmotiv de Hitchcock –, nós sabemos que “alguma coisa vai acontecer”, e quando uma porta do primeiro andar se abre enquanto ele sobe, nós temos certeza de que “alguma coisa se prepara”. Há em seguida uma longa tomada durante a qual a câmera se eleva e gira em um longo travelling, para enfim se imobilizar mostrando uma visão panorâmica da cena – como se, antes do acontecimento fatal, ela quisesse nos dar uma idéia clara e geral da situação. Então acontece o que nós esperamos: a porta se abre e surge a aparição já conhecida que derruba Arbogast com uma facada.
Este segundo assassinato constitui uma verdadeira obra prima de suspense e de ascese fílmica, pois se produz sobre o fundo do primeiro e ainda o ultrapassa. O choque mais brutal intervém, com efeito, quando se realiza exatamente o que se esperava, da mesma maneira que em Hegel a contradição mais radical é a tautologia. É como se, nesse ponto, viesse a coincidir tiquê e automaton: a mais terrificante irrupção da tiquê, que perturba a estrutura, tem lugar no momento mesmo onde, por puro automatismo, advém uma necessidade de estrutura.
1
Por trás de sua aparente simplicidade, este assassinato faz apelo a uma dialética do esperado e do inesperado, ou seja, do desejo. Essa economia paradoxal, com efeito, onde a realização do que se espera se acompanha de um efeito de inesperado, não é concebível senão no universo de um sujeito dividido, logo desejante, aí onde a espera é investida de desejo. Eu sei bem que o acontecimento X se dará; mesmo assim eu me surpreendo quando ele acontece porque, ainda que sabendo, eu não acredito. Assim Hitchcock nos faz ver a crença inconsciente, que se revela muito mais subversiva do que parece. Pois longe de ser um encontro “interior”, íntimo, a crença está materialmente na atividade efetiva do sujeito: em torno dela se articula o fantasma que rege a efetividade social.
Vejamos, por exemplo, o famoso universo kafkiano, o qual se reprovou por ser uma visão exagerada, fantástica, e subjetiva da burocracia moderna. Esta leitura desconhece justamente o fato de que esse suposto exagero é o lugar de inscrição do fantasma na obra no funcionamento libidinal da própria burocracia “efetiva”. Então, em vez de o universo kafkiano ser uma imagem fantástica da realidade social, ele é, ao contrário, a encenação do fantasma que rege essa realidade. Mesmo sabendo que a burocracia não é todo-poderosa, nosso comportamento efetivo é condicionado pela crença em seu poder absoluto: a realidade social é, ela mesma, em um certo sentido, uma construção ética. Ela se sustenta na pressuposição de um como se: age-se como se se acreditasse que a burocracia é todo-poderosa, que o presidente representa a Vontade do Povo, que o Partido encarna o interesse objetivo da classe trabalhadora. Se esta crença – que, repita-se, não tem absolutamente nada de “psicológico”, mas se encontra materialmente no funcionamento “objetivo”, “efetivo”, do campo social – se perde, a textura do próprio social se dissipa.
Quanto ao desejo, ele reside, à primeira vista, nessa crença: mesmo sabendo que não-x, acredita-se, contudo, que x, porque se o deseja. Mas a realidade é totalmente diferente: essa coisa horrível na qual não se pode acreditar, é justamente o desejo. Assim, a crença inconsciente se analisa como uma defesa face à verdade insuportável do desejo. Enquanto espectadores, nós demandamos efetivamente que o x (o assassinato, a explosão) tenha lugar, e a única função da crença de que esse x não possa acontecer é de dissimular nosso desejo, investido na espera de que o x acontecerá.
Antes do assassinato em Psicose, Hitchcock já havia explorado esse mecanismo com a explosão da bomba em Agente Secreto. Quando o artefato assassino não explode no tempo previsto, a angústia que nos oprimia se transforma em uma decepção, que nos faz tomar consciência do nosso desejo. Quando pouco tempo depois ela estoura efetivamente, o atraso parece ter sido para nos fazer aprender a reconhecer o desejo.
Contrariamente ao que se produz quando de uma mentira habitual ou quando se é enganado por uma imagem falsa, aqui, o sujeito não é enganado, na medida em que ele não ignora nada da situação (ele sabe que o assassinato acontecerá, etc.), a instância enganada e surpreendida é “o próprio outro”, o Outro simbólico.
Assim, quando no conto a criança diz em voz alta com toda inocência: “O rei está nu”, quando todo o povo o sabe pertinentemente, por que o simples enunciado de tal evidência produz tal efeito catastrófico? Quem era este que não sabia, quando todos os sujeitos sabiam? O grande Outro. Que a enunciação de uma evidência comum possa desencadear essa catástrofe inter-subjetiva que é a destruição do laço social, possui de fato o valor de uma “prova ontológica da existência do grande Outro”. É por isso que o materialismo lacaniano, cuja tese fundamental é que “o Outro não existe” consiste em afirmar a inconsistência, o caráter vazio, do grande Outro, do campo simbólico.
Uma leitura analítica do filme não deveria partir, então, de um pretenso simbolismo, mas deveria, ao contrário, se ater ao aspecto formal da encenação.
Psicose é, aliás, o melhor exemplo da impotência do método psicanalítico tradicional. Pois se seu conteúdo parece se prestar a esse gênero de interpretação – um sujeito psicótico (Norman) é atormentado pelo supereu materno, etc. –, ao “ler” o filme dessa maneira, descobrindo por toda parte símbolos da “psicologia das profundezas” (como faz, por exemplo, Robin Wood
2, o qual vê no térreo da casa o eu [moi] de Norman, no primeiro andar seu supereu, e no porão, o id), fica-se com o sentimento de estar se desviando do essencial. Mas não seria necessário concluir daí, portanto, a ineficácia do método psicanalítico como tal, mas apenas rejeitar a equivalência simbólica entre os personagens, os objetos ou as situações. Não há necessidade de se encontrar as representações simbólicas do supereu materno – ela já está aí com essa presença angustiante da voz “acusmática” da mãe3, e até no olhar superegóico da câmera, quando sua “neutralidade objetiva” começa a ganhar um ar ameaçador, subvertendo a identificação do espectador com os personagens do filme4.
Os diferentes críticos de Hitchcock fazem dessa subversão da identificação do espectador um lugar comum, mas Psicose é, apesar de tudo, excepcional quanto a isso, porque aqui o procedimento de identificação do espectador e sua subversão constituem em si mesmos a chave do filme. No início, nos identificamos com Marion, seguimos a história a partir de seu ponto de vista. De súbito, seu assassinato nos desconcerta, e se faz necessário encontrarmos um outro ponto de apoio. O detetive substitui essa função, até que ele também seja assassinado. Nos desviamos finalmente para Sam e Leila e sua investigação. Falta apenas a identificação com Norman, o verdadeiro herói desta segunda parte. Aí reside precisamente o corte operado pelo primeiro assassinato: antes, a identificação se faz em torno da heroína principal; depois, torna-se impossível se fixar em um personagem que a substitua como uma outra versão dela, como seu negativo em espelho (seus nomes parecem já se refletir: Marion-Norman). Mas de onde provém então essa impossibilidade?
Tentando buscar a resposta nos dois registros que caracterizam o universo de Psicose, o mundo cotidiano de Marion (com Arbogast, Sam, Leila...) e o mundo noturno de Norman, que seria sucessivamente o do desejo e o da pulsão. A passagem de um personagem a outro seria como o reviramento do registro do desejo ao da pulsão em um mesmo personagem.
O desejo, com efeito, é um movimento metonímico ao infinito, um deslizamento em direção ao objeto-causa originariamente perdido. Sempre insatisfeito, ele se presta a todas as interpretações, coincidindo mesmo com sua interpretação, ele próprio é a passagem de um significante a outro, a incessante produção de novos significantes que dão sentido aos precedentes. A pulsão, ao contrário, é em certo sentido sempre já insatisfeita. Limitada a um circuito fechado, à sua pulsação, em vez de buscar um “sempre outro”, ela gira em torno de seu objeto e encontra seu gozo na própria pulsação. Nisso, ela é parte integrante do real – ela é o que “retorna sempre no mesmo lugar” (Lacan) –, enquanto que o desejo está inteiramente no simbólico. A partir disso, sabe-se porque toda identificação com a pulsão é interdita, uma vez que ela é do registro do real, e que “o real, é o impossível”. Só é possível uma identificação a um outro enquanto sujeito desejante. Norman, enquanto sujeito psicótico prisioneiro de suas pulsões, fracassa na identificação – ele não tem acesso ao registro do desejo, que supõe a passagem pela lei paterna.
5
A essa diferença entre o desejo e a pulsão corresponde a dualidade dos objetos hitchcockianos: de um lado o “McGuffin”, o “puro nada”, o “segredo” que impulsiona a ação (a fórmula dos motores de avião em Os trinta e nove degraus, o urânio em Interlúdio, etc.), de outro, o objeto opaco, inerte, material, positivo, que encarna um impasse não dialetizável da rede intersubjetiva (o anel em A sombra de uma dúvida, o isqueiro em Pacto sinistro, a chave em Interlúdio e em Disque M para matar, até as aves em Os pássaros). O “McGuffin” é o objeto-causa do desejo que anima o movimento incessante da interpretação, o esforço para desvendar seu segredo, ao passo que a presença massiva do objeto real, não dialetizável, permite ver a inércia pulsional sobre a qual se sustenta o movimento metonímico do desejo.
Psicose poderia hoje constituir uma crítica ao anti-Édipo transgressor. Norman Bates seria um anti-Édipo avant la lettre; para conseguir se libertar da influência do supereu materno, para se desvencilhar da submissão a esta figura cruel e arbitrária do Outro, não lhe falta senão a Lei capaz de deter o desejo – não o seu desejo, mas o desejo do Outro, da mãe. Antes da intervenção da Lei, o sujeito é vítima dos caprichos do Outro, e ela “introduz o fantasma da onipotência não do sujeito, mas do Outro onde se instala sua demanda (...) e com o fantasma a necessidade sua contenção pela Lei”.
6 Por esta razão, a intervenção da Lei é até mesmo uma “desalienação”, pois ela detém o desejo do Outro, o fantasma da onipotência do Outro onde o desejo do sujeito está alienado, introduzindo uma regra à qual o próprio Outro deve obedecer.7 Seria errôneo, contudo, concluir do que precede que a psicanálise reivindica a Lei paterna. Ela não ignora que o pai legislador é um impostor, e que esta posição se sustenta somente como um Outro do Outro8: o pai ocupa um lugar impossível, originalmente vazio, aquele da falta no Outro, do buraco em torno do qual se articula a ordem simbólica. Os defensores do anti-Édipo, que proclamam o fluxo do desejo contra a Lei paterna, desconhecem precisamente esse dado incontornável. A verdadeira transgressão da Lei paterna não consiste em libertar o desejo de entraves postos pela Lei, mas antes em provar esse vazio, esse buraco no outro onde se aloja a impostura do pai, o que vem a admitir o caráter “não-todo” do Outro. A verdade que tenta dissimular essa impostura e esse buraco, assim como a deslumbrante figura paterna, não esconde a não ser o vazio de seu lugar. Este é o motivo de a ilusão desta impostura ser consubstancial à verdade: não há verdade sem erro, como não há lugar vazio sem o elemento do qual esse lugar é o lugar.

* Psycho (1960). Marion, que é a amante de Sam, foge de Phoenix de carro levando quarenta mil dólares que seu chefe lhe havia encarregado de depositar no banco. Á noite, ela para em um motel pouco freqüentado. O jovem gerente do motel, Norman Bates, lhe conta que ele vive com sua velha mãe, que ele adora, ainda que seja difícil a convivência com ela. Marion toma um banho quando, bruscamente, a velha surge, matando-a com uma dezena de facadas e desaparecendo em seguida. Norman reaparece. Ele parece realmente desolado. Ele começa então uma escrupulosa arrumação do lugar, colocando o corpo dentro da mala do carro de Marion, do qual se desfaz deixando-o afundar em uma lagoa. Marion é logo procurada por sua irmã, Leila, por Sam e por um detetive, Arbogast. Este último vai ao motel, onde Norman se recusa formalmente a lhe apresentar sua mãe. Mas Arbogast retorna sub-repticiamente ao motel para falar com ela, sobe ao primeiro andar e aí é assassinado a facadas. Depois, Leila e Sam descobrem que a mãe de Norman já estava morta há oito anos. Eles dois vão ao motel. Norman é desmascarado: ele era ao mesmo tempo ele mesmo e sua mãe, as duas personalidades coabitando nele.

1 Esta estratégia consistindo em produzir um efeito redobrado por meio do procedimento inverso é explorada por Hitchcock em vários níveis; além do assassinato de Arbogast, lembremos ainda o grande travelling no final de Frenesi: acompanhado de sua próxima vítima, o assassino sobe a escadaria até à porta de seu apartamento, a câmera os segue, e quando a porta se fecha atrás deles, a câmera desce a escadaria até à entrada, continuando a recuar em seguida, atravessando a rua e detendo-se no lado oposto, de maneira que se possa ver toda a fachada em plano geral. O que acontece durante esse tempo no apartamento, a câmera indica pela direção de seu movimento: ela desce seguindo de uma gravata (uma volta, depois um traçado reto) – o assassino estrangula sua vítima com uma gravata... Quando a câmera retorna e sai para o espaço aberto da rua, o silêncio opressor do interior da casa é, subitamente, substituído pelo ruído cotidiano, mas o plano geral da casa guarda apesar de tudo um ar sombrio, a cena já está corrompida porque se sabe o que está acontecendo, nesse momento, no interior. Se o travelling “normal”, para frente, do plano geral ao detalhe, produz a mancha, o travelling para trás dissemina-a sobre a cena inteira.

2 Cf. Robin Wood, Hitchcock’s films, A.S. Barnes and Co., New York, 1977, pp.110-111.

3 Cf. Michel Chion, “La Voix au cinéma”, Cahiers du cinéma, ed. De l’Étoile, Paris, 1982, pp. 116-123.

4 Este é o motivo da importância de não se tomar os leitmotives que se repetem de um filme a outro de Hitchcock por símbolos com significação fixa: trata-se, de maneira totalmente oposta, da forma vazia do significante, de elementos por assim dizer “disponíveis”. Por exemplo, encontram-se em quase todos os seus filmes a escadaria sob suas duas formas principais, a grande escadaria suntuosa oval (Suspeita, Interlúdio, Marnie – confissões de uma ladra) e a escadaria reta comum (Um corpo que cai, Psicose, e, novamente Marnie – confissões de uma ladra, etc.); várias vezes, se encontra o motivo de uma mulher má de cabelos negros que, da janela, lança um olhar ameaçador sobre o herói (Miss Danvers em Rebecca, Milly em Sob o signo de capricórnio, Lil em Marnie); a cabeça seca da mãe morta, em Psicose, tem um precedente na cabeça embalsamada colocada pela criada para chocar Ingrid Bergman em Sob o signo de capricórnio; o motivo da heroína que observa de uma maneira impotente um copo de leite fascinante e luminoso – Suspeita – retorna em Interlúdio, etc. Todos esses motivos são elementos a partir dos quais Hitchcock “bricola”, em cada um de seus filmes, uma totalidade específica que sobredetermina sua significação.

5 Cada uma das duas versões alcança seu objetivo, seu ponto de fechamento. A versão do desejo termina no momento em que o sujeito desejante, levado pelo movimento interpretativo, pelo esforço de “descobrir o segredo”, se encontra confrontado ao pequeno a, a seu equivalente objetal, à presença inerte de uma coisa que detém esse movimento – trata-se do confronto final de Lila com o crânio mumificado da mãe de Norman. A versão da pulsão termina com a vitória final da Voz da mãe, que se apodera completamente de Norman.

6 J. Lacan, Écrits, Seuil, Paris, 1966, p.814.

7 O “capricho do Outro” onipotente é também uma maneira de evitar a falta do Outro. A lógica aí é a seguinte: o sujeito se encontra diante da impossibilidade-de-gozar, o gozo (a “satisfação universal”) é sempre fracassado, o Outro não pode jamais lhe conseguir o objeto; ele dá conta deste fato dizendo a si mesmo: “Se eu não estou satisfeito, não é por causa da impossibilidade fundamental da satisfação universal, mas por uma decisão livre, um capricho do Outro onipotente que quer me privar do objeto”. As dimensões teológica e política de tal lógica são extremamente importantes: de um lado, o longo debate teológico a respeito do capricho, do livre arbítrio de Deus (o arbitrário absoluto da predestinação); de outro, o fantasma do despotismo como um poder onipotente aonde reina o capricho, o arbitrário absoluto. (Cf Alain Grosrichard, Structure du sérail, Seuil, Paris, 1978.)

8 Cf. J. Lacan, Écrits, p.813.