Os não-tolos erram: digressão
(Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira)O que está em jogo na arte tão particular com a qual Hitchcock manipula o espectador encontra-se nessa relação dialética do erro e da verdade. Psicose é a esse respeito exemplar: queremos que Marion escape da polícia quando esta inspeciona seu carro, queremos que Norman consiga apagar todos as pistas do assassinato do quarto do motel, queremos que o carro de Marion afunde no pântano. Em uma palavra, nós somos manipulados por Hitchcock, no entanto, dessa mentira surgirá a verdade – a verdade sobre nosso desejo de espectador. Por ser impossível alcançar diretamente a verdade, esse desvio pela mentira é indispensável, o que Lacan exprime por “os não-tolos erram”. Pois a verdade a qual se chega põe em causa o desejo, que se articula e não se constitui a não ser através dessa ilusão.
Em relação a isso, o procedimento elementar de Hitchcock consiste em impor de início uma identificação, para subvertê-la em seguida de maneira a confrontar o espectador com o desejo que sustenta essa identificação. Assim fazendo, Hitchcock age como o judeu nesta anedota: um judeu e um polonês viajam no mesmo compartimento de trem. O polonês parece agitado, nervoso, e num certo momento, não se contendo mais, pergunta a seu vizinho: - “Diga-me: como vocês, judeus, conseguem arrancar até o último centavo das pessoas e acumular tanta riqueza?” – “Eu quero te contar, mas não de graça. Dê-me cinco zlotis”, lhe responde o judeu. Quando ele recebe o dinheiro, começa então a contar: “Você deve pegar um peixe morto, cortar-lhe a cabeça, e mergulhar suas vísceras em um copo d’água. Na lua cheia, será preciso enterrar o copo em um cemitério”. “E eu vou enriquecer se fizer tudo isso?” Pergunta avidamente o polonês. “Não tão rápido! Lhe diz o outro. Ainda não acabou. Mas se você quer saber o restante, dê-me mais cinco zlotis”. O judeu, depois de ter recebido o dinheiro, prossegue sua história. Logo, ele pede novamente o dinheiro, e assim sucessivamente até que o polonês reage: “Seu escroque, acredita realmente que não compreendi o que você quer de mim? Não existe segredo. O que você quer é se apoderar de todo o meu dinheiro!” – “Bem, então você compreendeu como os judeus...”.
Tudo é dito nesta história, tudo, incluindo aí o papel do dinheiro na psicanálise. Quando o polonês se revolta, é o momento da saída da transferência; o judeu cessa de ser para ele um “sujeito suposto saber”. Ora, o essencial depende do fato de que o judeu manteve a palavra: ele efetivamente ensinou ao polonês como os judeus... Como ele enganou o polonês? O que este último ignorava? Ele simplesmente esqueceu de incluir no caso seu próprio desejo, da mesma forma como o homem do campo, diante da porta da Lei, na célebre parábola de O Processo de Kafka. A explicação final que o guarda dá ao homem do campo agonizante – que a porta era destinada somente a ele – funciona exatamente como a virada final na história do judeu e do polonês. Nós podíamos mesmo, para tornar a parábola de Kafka totalmente homóloga à piada, imaginar um pequeno acréscimo: depois de uma longa espera, o homem do campo ficaria colérico e diria: “Por que você me engana? Não há nenhum segredo além da porta, ela é destinada somente a mim!” – ao que o guarda responderia: “Bem, você então adivinhou o segredo da porta...” Nos dois casos, o sujeito é confrontado com um além enigmático que se furta. (O que haverá no final da série infinita de portas da Lei? Qual é o segredo do judeu?). E nos dois casos, sua solução consiste em perceber que, para além, não há nada, a não ser a própria forma do segredo, um lugar vazio onde se inscreve o desejo do sujeito – o único segredo residindo na arte de suscitar no sujeito o desejo de dar cabo do segredo. O polonês, como o homem do campo de Kafka, esqueceu de incluir seu próprio ato naquilo de que fala.
E o mesmo acontece na história do “encontro em Samaria”: no mercado de Bagdá, o empregado de um rico mercador encontra a Morte, que subitamente lança um olhar sobre ele; apavorado, ele adentra precipitadamente na casa e diz a seu patrão: “A Morte está atrás de mim. Eu imploro, dê-me um cavalo. Eu quero cavalgar durante toda a noite e todo o dia para chegar amanhã à tarde em Samária. Lá, certamente a Morte não me encontrará!” O patrão atende seu pedido, e depois vai ao mercado para encontrar a Morte, e lhe repreende: “Por que você lançou um olhar ameaçador para o meu empregado?” Surpresa, a Morte lhe responde: “É um mal entendido. Seu empregado enganou-se quanto ao significado do meu olhar. Não se tratava de uma ameaça, mas sim do meu espanto – o que ele faz aqui, em Bagdá, quando eu tenho um encontro com ele amanhã em Samaria?”.
Assim, a verdade surge literalmente do engano. O mito de Édipo apresenta também essa estrutura. O oráculo prediz ao pai que seu filho lhe matará e desposará sua própria mãe, e a predição se realiza justamente porque o pai tenta evitar (ele abandona seu filho recém nascido na floresta... o que faz com que Édipo não lhe reconheça e o mate). Em outras palavras, a profecia se confirma quando este que conhece por antecipação seu destino se esforça para escapar dele – provocando por isso o que ele temia. Sem a predição, talvez Édipo tivesse vivido feliz com seus pais... e nós seríamos privados do complexo de Édipo!
A temporalidade à qual nós temos lidado aqui é mediada pela subjetividade: o erro subjetivo se produz, paradoxalmente, antes do advento da verdade com a qual o erro se confronta, pois esta verdade não é verdade senão pela mediação desse erro. “Astúcia” do inconsciente: ele não é um dado transcendental e inacessível do qual não se pode “tomar consciência”, mas antes (segundo a tradução de Lacan do Unbewusste) um equívoco pelo qual o sujeito apreende seu ato na própria Coisa, e inclui na verdade seu ato de engano quanto à verdade. E esta última se articula em torno do ponto nodal da transferência. Esta estrutura verdade-erro responde, com efeito, à questão: Por que a transferência deve fazer parte da análise? – Porque ela é essa “ilusão”, esse “erro” através do qual surge, no final da análise, a verdade. Tal dialética implica um tempo que se inverte: a verdade não substitui simplesmente o erro, é o próprio erro que, retroativamente, torna-se um momento da verdade. Para dar conta desse paradoxo, Lacan toma um exemplo de ficção-científica (esta é, aliás, a única referência ao gênero em toda a sua obra). Ele explica, na verdade, o sintoma (enquanto “retorno do recalcado”) com ajuda da metáfora da sensação temporal invertida de Norbert Wiener: “Wiener supõe dois personagens cujas dimensões temporais vão em sentido inverso uma da outra. Bem entendido, isso não quer dizer nada, e é assim que as coisas que não querem dizer nada significam, de uma só vez, alguma coisa, mas em um domínio totalmente diferente. Se enviamos uma mensagem a outro, por exemplo um quadrado, o personagem que vai em sentido contrário verá de início o quadrado se esfacelando, antes de ver o quadrado. É isto que, também nós, vemos. O sintoma se apresenta a nós de início como um traço, que não será jamais um traço, e que ficará sempre incompreendido até que a análise tenha ido suficientemente longa, e que tenhamos compreendido seu sentido”10.
Tal concepção supõe, contudo, a idéia de um inconsciente fundamentalmente imaginário: “fixações imaginárias que não foram assimiladas no desenvolvimento simbólico” da história do sujeito e, por conseqüência, “alguma coisa que será realizada no simbólico ou, mais exatamente, que graças ao progresso simbólico na análise, terá sido”.11 Ora, esse quadro conceitual não dá conta do que Lacan designará mais tarde como “a instância da letra no inconsciente”. É necessário então recorrer a um modelo mais sutil do que a metáfora de Wierner – e nós o encontramos em um clássico de ficção-científica, Uma porta no Verão (The door into Summer, 1957), de Robert a. Heinlein.
A hipótese desse romance é a seguinte: em 1970, a “hibernação” se tornou uma prática habitual, largamente comercializada. Por causa de uma decepção profissional, um jovem engenheiro chamado Daniel Boone Davis resolve hibernar por um período de trinta anos. Ao despertar, em dezembro de 2000, ele conhece o velho Doutor Twitchell, professor “louco” que construiu a máquina para viajar no tempo, que o convence a se transportar para o ano de 1970. Lá, nosso herói põe em ordem suas questões: – ele investe seu dinheiro em uma empresa que ele sabe, pela sua passagem pelos anos 2000, que se tornará próspera, e também prepara seu casamento, fazendo hibernar sua futura esposa – indo, ele mesmo, hibernar por trinta anos. Despertam-no então pela segunda vez em 27 de abril de 2001. Tudo está bem. Só um pequeno problema o aborrece: os jornais da época que publicam, além dos anúncios de morte, de nascimento, uma rubrica intitulada “Ressuscitados”, mencionando as pessoas despertadas da hibernação. Seu primeiro período nos anos 2000 e 2001 durou de dezembro de 2000 a junho de 2001. O Doutor Twitchell transportou-o para o passado depois da data de seu segundo despertar, em abril de 2001. O Times de 28 de abril de 2001 publica, consequentemente, em sua lista de “Ressuscitados” do dia 27 de abril, seu próprio nome: D. B. Davis. Como ele poderia, quando de seu primeiro período no ano de 2001, perder essa menção de seu próprio nome, ainda que ele fosse um leitor atento dos “Ressuscitados”? Teria sido uma falha? “E o que teria acontecido então se eu tivesse lido meu nome? Eu teria ido me ver? Eu teria me encontrado? – e eu enlouqueceria imediatamente? Não, porque se eu tivesse lido meu nome, eu não teria feito as coisas que eu fiz em seguida – “em seguida” pra mim – e que desencadearam a publicação de meu nome. Consequentemente, nenhuma dessas coisas poderia ter acontecido. Uma espécie de feedback com efeito negativo está em curso aqui, uma “válvula de segurança” integrada à construção, porque a existência dessa linha no jornal dependia precisamente de que eu não deveria vê-la: a aparente possibilidade de vê-la era uma impossibilidade fundamental, proibida pela “conexão lógica” no plano do mundo. Aí reside o princípio do livre arbítrio, e ao mesmo tempo o do determinismo total – sem contradição”.
Esta problemática nos dá a definição literal da “instância da letra no inconsciente”: uma linha cuja “existência depende precisamente do que eu não deveria ver”. Se o sujeito, no momento de seu primeiro período em 2001, tivesse lido seu nome no jornal (quer dizer, a indicação de seu segundo período em 2001), ele teria em seguida agido de uma maneira bem diferente (ele não teria voltado ao passado, etc.). Em outras palavras, ele teria agido de maneira que seu nome não aparecesse no jornal. A falha teve mesmo um alcance negativamente ontológico: ela é a condição de possibilidade da letra desconhecida. Nós encontramos um tipo do esse-percipi. Aqui, é o non-percipi que é a condição do esse**. Assim podemos talvez apreender o estatuto do inconsciente do qual fala Lacan no livro XI do Seminário: o inconsciente seria uma letra que “insiste”, sob a condição de que ela não “exista” ontologicamente.12 É assim que, aí ainda mais, “as coisas que não querem dizer nada significam subitamente alguma coisa, mas em um domínio totalmente diferente”: a “viagem” para o futuro não é essa antecipação pela qual se supõe no outro um saber que não será obtido e constituído senão posteriormente, através de nosso trabalho significante? Não é isso precisamente a transferência? (Se o recalcado “retorna do futuro” e não do passado, a transferência como a “colocação em ato do inconsciente”13 deve necessariamente nos transferir para o futuro). E a “viagem ao passado”, o que é? – senão a encenação alucinatória desse trabalho significante, e nesse campo somente, pode-se refazer, transformar o passado. Os traços do “passado” mudam com a perlaboração da rede significante “sincrônica”, e essa perlaboração decide retroativamente o que elas “terão sido”.
O paradoxo temporal que está no princípio mesmo da ficção-científica oferece um tipo de “aparição no real” da estrutura fundamental do processo simbólico, do famoso “oito interior” – esse movimento circular “dobrado de dentro” onde não se pode avançar senão sob a condição de superar a transferência, para em seguida encontrar-se aí onde já se estava. O paradoxo é que esse desvio, esse “anel” da “ultrapassagem” não é uma “percepção”, uma “ilusão subjetiva do processo objetivo”, mas algo constitutivo dessa démarche: não se trata de que através desse “desvio” o próprio passado objetivo “se tornará o que sempre foi”. A história de William Tenn, intitulada Como Morniel Mathaway foi descoberto14, ilustrará para nós este último ponto. Um eminente historiador de arte vem do futuro para visitar Mathaway, pintor genial de meados do século XX, desconhecido e, no entanto, imortal. No lugar do gênio que esperava encontrar, ele encontra um escroque megalomaníaco que rouba sua máquina. O historiador é obrigado a ficar no século XX, e sob o nome do desaparecido, começa a pintar.
O indivíduo às voltas com uma cena de seu passado que ele desejaria mudar, graças a uma viagem no tempo, decide intervir na cena. E longe de que ele não possa “aí mudar nada”, somente sua intervenção a partir do futuro permite à cena passada, ao contrário, tornar-se o que ela sempre foi... A ilusão inicial do sujeito consiste em esquecer de incluir seu próprio ato, em desconhecer que “isso conta, é contado, e nessa conta, o contador já está aí”.15
10 J. Lacan, Le séminar, livre I, les écrits techniques de Freud, seuil, Paris, 1975, pp.181-182.
11 Ibid., p.181
** N. do T.: Esse = ser; percipi = percebido; esse-percipi = ser percebido; non-percipi = não percebido. Referência à formulação de George Berkeley (1685-1753) de que ser é ser percebido (esse est percipi).
12 Cf. J. Lacan, Le Séminar, livre XI, les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Seuil, Paris, 1973, pp. 25-26.
13 Cf. J. Lacan, ibid., p.133.
14 Resumido segundo Aléxis Lecaye, Les pirate du paradis, Denoël-Gonthier, Paris, 1981.
15 J. Lacan, Le Séminar, livre XI, p. 24.
Texto original: ŽIŽEK, Slavoj. “Psychose: le Nom-du-père forclos” IN: DOLAR, Mladen, MOCNIK, Rastko, SUMIC-RIHA, Jelica, VRDLOUEC, Zdenko. Sous la direction de ŽIŽEK, Slavoj. Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur Lacan sans jamais oser le demander à Hitchcock. Narvin Éditeur, Paris, 1988.
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