quinta-feira, 25 de março de 2010

Como ler Lacan - 1. Introdução Slavoj Zizek


COMO LER LACAN
1.Introdução
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Vamos tentar fazer uma pequena lavagem-cerebral em nós mesmos.[1]

Em 2000, o centésimo aniversário da Interpretação dos Sonhos de Freud foi acompanhado por uma nova onda de aclamações triunfalistas de como a psicanálise está morta: com os novos avanços nas ciências do cérebro, ela é finalmente posta no lugar a que pertencia todo o tempo, no quarto de despejo da busca obscurantista por sentidos ocultos, ao lado dos confessores religiosos e leitores de sonhos. Como colocou Todd Dufresne[2], nenhuma figura na história do pensamento humano esteve mais errada em relação a todos os seus fundamentos – com exceção de Marx, alguém poderia acrescentar. E, efetivamente e de maneira previsível, em 2005, ao Livro Negro do Comunismo, listando todos os crimes comunistas[3], seguiu-se o Livro Negro da Psicanálise.[4] Desta maneira negativa, ao menos, a profunda solidariedade do marxismo e da psicanálise é agora exibida para todos verem.
Há algo nesse discurso de funeral. Há um século, com o intuito de situar o inconsciente na história da Europa moderna, Freud desenvolveu a idea das três sucessivas humilhações do homem, as três “doenças narcísicas”, como ele as chamou. Primeiro, Copérnico demonstrou que a terra girava em torno do sol, privando-nos a nós humanos do lugar central no universo. Depois Darwin demonstrou nossa origem da cega evolução, privando-nos, deste modo, do lugar privilegiado entre os seres vivos. Finalmente, quando o próprio Freud tornou visível o papel predominante do inconsciente nos processos psíquicos, ele esclareceu que nosso ego não é mesmo o mestre em sua própria casa. Hoje, uma centena de anos depois, um quadro mais extremado está se delineando: os últimos avanços científicos parecem acrescentar toda uma série de humilhações adicionais à narcísica imagem do homem: nossa mente em si mesma é meramente uma máquina de computação para processamento de dados, nosso senso de liberdade e autonomia é meramente a ilusão do usuário dessa máquina. Consequentemente, em relação às ciências do cérebro atuais, a própria psicanálise, longe de ser subversiva, parece antes pertencer ao tradicional campo humanista ameaçado pelas últimas humilhações.
A psicanálise está hoje, então, totalmente ultrapassada? Parece que sim, em três níveis interligados: (1) o do saber científico, onde o modelo cognitivista-neurobiológico da mente humana parece suplantar o modelo freudiano; (2) o nível da clínica psiquiátrica, onde o tratamento psicanalítico rapidamente perde terreno para as pílulas e para a terapia comportamental; (3) o nível do contexto social, onde a imagem de uma sociedade, das normas sociais, que reprimem as pulsões sexuais individuais não parece mais válida em relação à permissividade hedonista predominante hoje. Não obstante, no caso da psicanálise, o funeral talvez seja um pouco precipitado, celebrando um paciente que ainda tem uma longa vida pela frente. Em contraste com as verdades “evidentes” dos críticos de Freud, meu intuito é demonstrar que somente hoje é chegado o tempo da psicanálise. Na leitura de Freud através de Lacan, no que Lacan chamou seu “retorno a Freud”. Os insights chave de Freud finalmente tornam-se visíveis em sua verdadeira dimensão. Lacan não concebeu esse retorno a Freud como um retorno ao que Freud disse, mas ao âmago da revolução freudiana da qual o próprio Freud não estava inteiramente ciente.
Lacan começou seu “retorno a Freud” com a leitura linguística de todo o edifício da psicanálise, condensada pela que é talvez sua única fórmula bem conhecida: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. A percepção predominante do inconsciente é a de que ele é o domínio das pulsões irracionais, algo oposto ao self consciente racional. Para Lacan, esta noção do inconsciente pertence à Lebensphilosophie (filosofia da vida) e não tem nada a ver com Freud. O inconsciente freudiano causou tal escândalo não por causa da alegação de que o self racional é subordinado ao muito mais vasto domínio dos instintos racionais cegos, mas porque ele demonstrou como o próprio inconsciente obedece à sua própria gramática e lógica – o inconsciente fala e pensa. O inconsciente não é o reservatório de pulsões selvagens que tem que ser conquistadas pelo ego, mas o lugar onde uma verdade traumática fala e pensa.  Aí reside a versão de Lacan da máxima de Freud wo es war, soll ich werden (onde era isso, eu devo chegar): não “o ego deve conquistar o id”, o lugar das pulsões inconscientes, mas “eu devo ousar acercar o lugar de minha verdade”.  O que me espera “aí” não é uma Verdade profunda com a qual eu tenho que me identificar, mas uma insuportável verdade com a qual eu tenho que aprender a conviver.
De que maneira, então, as idéias de Lacan diferem das escolas de pensamento psicanalítico da corrente dominante e do próprio Freud? Em relação às outras escolas, a primeira coisa que salta aos olhos é o teor filosófico da teoria de Lacan. Para Lacan, a psicanálise em seu aspecto mais fundamental não é uma teoria e técnica para tratar disturbios psíquicos, mas uma teoria e uma prática que confrontam os indivíduos com a mais radical dimensão da existência humana. Ela não mostra a um indivíduo o caminho para acomodá-lo às demandas da realidade social; ela explica como alguma coisa como a “realidade” constitui-se, em primeiro lugar. Ela não possibilita meramente a um ser humano aceitar a verdade reprimida sobre si ; ela explica como a dimensão da verdade emerge na realidade humana. Na visão de Lacan, formações patológicas como neuroses, psicoses e perversões têm a dignidade das atitudes filosóficas fundamentais diante da realidade. Quando sofro de neurose obsessiva, esta ‘doença’ colore toda a minha relação com a realidade e define a estrutura global de minha personalidade. A principal crítica de Lacan às outras orientações psicanalíticas diz respeito a sua orientação clínica: para Lacan, o objetivo do tratamento psicanalítico não é o bem-estar do paciente, uma vida social bem sucedida ou auto-realização, mas levar o paciente a confrontar as coordenadas elementares e impasses de seu desejo.
Em relação a Freud, a primeira coisa que salta aos olhos é que a alavanca usada por Lacan em seu “retorno a Freud” vem de fora da psicanálise: a fim de abrir os tesouros secretos de Freud, Lacan mobilizou uma eclética série de teorias, desde a linguística de Ferdinand de Saussure, passando pela antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, até um conjunto de teorias matemáticas e de filósofos como Platão, Kant, Hegel e Heidegger. Não é de admirar que a maioria dos conceitos chave não tenha uma contraparte na própria teoria de Freud: Freud nunca mencionou a tríade Imaginário, Simbólico e Real, ele nunca falou sobre o “grande Outro” como a ordem simbólica, ele fala de “ego”, não de “sujeito”. Lacan usa esses termos importados de outras disciplinas como ferramentas para operar distinções que estão já presentes implicitamente em Freud, mesmo que ele não esteja ciente delas. Por exemplo, se a psicanálise é uma ‘cura pela fala’, se ela trata disturbios patológicos com palavras apenas, ela tem que se apoiar em certa noção de discurso; a tese da Lacan é que Freud não estava ciente da noção de discurso implicada em suas próprias teoria e prática, e que nós só podemos elaborar essa noção se nos referirmos à linguística saussureana, à teoria dos atos de fala e à dialética da recognição hegeliana.
O “retorno a Freud” de Lacan forneceu um novo fundamento teórico da psicanálise com imensas consequências para a clínica analítica. Controvérsia, crise, e mesmo escândalo acompanharam Lacan por todo o seu caminho. Ele não apenas foi, em 1953, excomungado da International Psychoanalytical Association, como também suas idéias provocativas perturbaram muitos pensadores progressistas, dos marxistas críticos às feministas. Apesar de, na academia ocidental, Lacan ser usualmente visto como um pós-moderno ou desconstrucionista, ele certamente não se limita aos espaços designados por esses rótulos. Através de toda sua vida, Lacan excedeu os rótulos atribuídos a seu nome: fenomenólogo, hegeliano, heideggeriano, estruturalista, pós-estruturalista; não é de espantar, posto que a mais marcante característica de seu ensino é o autoquestionamento. 
Lacan foi tanto um leitor quanto um intérprete voraz; para ele, a própria psicanálise é um método de leitura de textos, orais (a fala do paciente) ou escritos. Que melhor maneira de ler Lacan, então, do que praticar seu modo de leitura, ler os textos de outros com Lacan? Este é o motivo pelo qual, em cada capítulo deste livro, uma passagem de Lacan irá confrontar outro fragmento (de filosofia, de arte, de cultura popular e de ideologia). A posição lacaniana será elucidada através da leitura de Lacan de outro texto. Uma segunda característica deste livro é uma grande exclusão: ele ignora quase inteiramente a teoria de Lacan no que se refere ao tratamento psicanalítico. Lacan foi antes e acima de tudo um clínico, e considerações clínicas permeiam tudo o que ele escreveu e fez. Mesmo quando Lacan lê Platão, Tomás de Aquino, Hegel ou Kierkegaard, é sempre para elucidar um problema clínico específico. E é esta onipresença das preocupações clínicas o que nos permite excluí-las: precisamente porque a clínica está em toda parte, pode-se apagá-la e limitar-se a seus efeitos, à maneira como ela colore tudo o que se afigura como não-clínico – este é o verdadeiro teste de seu lugar central.
Em vez de explicar Lacan através de seu contexto histórico e teórico, Como ler Lacan usará o próprio Lacan para explicar nossas dificuldades sociais e libidinais. Em vez de oferecer um julgamento imparcial, este livro se engajará em uma leitura parcial – isto é parte da teoria lacaniana de que toda verdade é parcial. O próprio Lacan, em sua leitura de Freud, exemplifica a força de tal abordagem parcial. Em seu Notas para uma definição de cultura, T.S. Eliot observa que há momentos em que a única escolha que se apresenta é entre sectarismo e descrença, i.e., quando a única maneira para se manter uma religião viva é efetuar uma divisão em seu corpo principal. Através de sua divisão sectária, ao cindir-se do corpo decadente do International Psycho-Analytic Association, Lacan manteve o ensino de Freud vivo – e cabe a nós fazer o mesmo com Lacan.[5]

Lendo Lacan
            Se desconsiderarmos pequenos textos ocasionais (introduções e posfácios, transcrições improvisadas de intervenções e entrevistas, etc.), a obra de Lacan se divide em dois grupos: seminários (conduzidos semanalmente, desde o ano letivo de 1953 até a morte de Lacan, diante de um público sempre crescente) e écrits (textos escritos teóricos). O paradoxo destacado por Jean-Claude Milner é que, em contraste com a maneira usual de se opor o ensino oral secreto às publicações impressas para as pessoas comuns, os escritos de Lacan são “elitistas”, legíveis apenas para um círculo restrito, enquanto que seus seminários são destinados ao grande público e, como tais, muito mais acessíveis. É como se Lacan primeiro desenvolvesse diretamente uma certa linha teórica de maneira direta, com todas as oscilações e becos sem saída, e depois passa a condensar o resultado em cifras precisas, mas comprimidas. Na verdade, os seminários e os escritos de Lacan se relacionam como as falas do analisando e do analista no tratamento. Nos seminários, Lacan age como analisando, ele faz “livres associações”, improvisa, salta, fala com seu público, que é de forma colocado no papel de uma espécie de analista coletivo. Em comparação, seus escritos são mais condensados, feitos de fórmulas, atirando ao leitor proposições ambíguas ilegíveis que frequentemente aparecem como oráculos, desafiando o leitor a começar a trabalhar neles, a traduzi-los em teses claras e a oferecer exemplos e demonstrações lógicas deles. Em contraste com o procedimento acadêmico usual, onde o autor formula a tese e tenta sustentá-la através de argumentos, Lacan não apenas mais frequentemente deixa esse trabalho para o leitor – o leitor, amiúde, tem até que discernir o que exatamente são as teses efetivas de Lacan entre a multidão de formulações conflitantes ou a ambiguidade de um oráculo como única formulação. Neste sentido preciso, os écrits de Lacan são como intervenções de um analista cujo alvo não é fornecer ao analisando uma opinião ou afirmação pré-fabricada, mas colocar o analisando para trabalhar.
            Então, o que e como ler?  Os Écrits ou os seminários? A única resposta apropriada é uma variação da velha piada “chá ou café”: sim, por favor! Deve-se ler ambos. Se você for diretamente aos Écrits, não vai conseguir nada, então você deve começar – mas não parar – com os seminários, uma vez que, se você ler apenas os seminários, também não vai aprender. A impressão de que os seminários são mais claros e mais transparentes que os Écrits é profundamente ilusória: eles frequentemente oscilam, experimentam diferentes abordagens. A maneira apropriada é ler um seminário e então ler o écrit correspondente para “captar a questão” do seminário. Nós lidamos aqui com uma temporalidade de Nachtraeglichkeit (desajeitadamente traduzido como “ação retardada”[*]) que é própria do tratamento analítico mesmo: os Écrits são claros, eles oferecem fórmulas precisas, mas nós só podemos entendê-los depois de lermos os seminários os quais oferecem seu fundo. Dois casos marcantes são o Seminário VII sobre A ética da psicanálise e o écrit correspondente “Kant com Sade”, assim como o Seminário XI sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise e “A posição do inconsciente”. Igualmente significativo é o ensaio de abertura de Lacan nos Écrits “O Seminário sobre A carta roubada”.
            Mais da metade dos seminários de Lacan estão agora disponíveis em francês; as traduções em inglês que se seguem com um atraso de alguns anos são normalmente de alta qualidade. Os Écrits estão disponíveis agora apenas em coletânea (a nova tradução de Bruce Fink é bem melhor do que a anterior). O próprio Lacan conferiu a Jacques-Alain Miller a tarefa de editar seus seminários para publicação, designando-o como “o (único) que sabe ler-me” – nisto ele estava certo: os numerosos escritos e seminários do próprio Miller são, de longe, a melhor introdução a Lacan. Miller realiza o milagre de tornar uma obscura página dos escritos completamente transparente, de maneira que nos perguntemos “como é que eu não pude entender?”.





[*] De acordo com o glossário da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, teríamos: ação “a posteriori, posterior, ação protraída, ação deferida. Fonte: http://www.sbpsp.org.br/glossario/default.asp?letra=a


[1] Jacques Lacan, The Ethics of Psychoanalysis, London: Routledge 1992, p. 307.

[2] Todd Dufresne, Killing Freud: 20th Century Culture and the Death of Psychoanalysis, London: Continuum Books 2004.

[3] Le livre noir du communisme, Paris: Robert Laffont 2000.

[4] Le livre noir de la psychanalyse: vivre, penser et aller mieux sans Freud, Paris: Arenes 2005.

[5] Uma vez que este livro é uma introdução a Lacan, centrado em alguns de seus conceitos básicos, e uma vez que este tópico é o foco do meu trabalho nas últimas décadas, não pude evitar certo grau de “canibalização” de meus livros já publicados. Como desculpa, eu tomei muito cuidado para dar a cada uma dessas passagens emprestadas um novo tratamento.

Um comentário:

  1. Querido Rodrigo,

    Eu, Ivo de Souza, e Simone lemos sua resenha sobre Lacan. É interessante como seu texto oferece-nos erudição, simplicidade e elucida-nos de maneira exemplar Lacan. Simone se lembrou de aulas que teve sobre ele no mestrado e eu de uma professora e psicóloga que tive que trabalhou em sua tese Lacan e Todos os Nomes de José Saramago. Pelo que vimos Lacan não se restringe ao universo da psicologia e busca se direcionar em outros campos.

    Adoramos!

    Abraços,

    Si e Ivo

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