PAVOR NOS BASTIDORES: VERDADE, DESEJO E MENTIRA (Iª parte)[*]
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira
Esta obra menor, que sucede o fracasso comercial de Sob o Signo de Capricórnio é, sobretudo, conhecida pelo flashback inicial que acompanha o relato de Jonathan a Eve. Compreenderemos mais tarde que seu relato era mentiroso, que Jonathan havia forjado essa história para se justificar. Ora, nesta ocasião, suspeitava-se que Hitchcock queria violar a sacrossanta regra do cinema “realista”, aquela segundo a qual a imagem fílmica não deve mentir nunca (salvo tratar-se expressamente de mostrar um sonho ou uma miragem). Mas através de uma análise minuciosa do filme, seus ardentes defensores foram bem sucedidos em provar que as imagens do flashback não mentiam. Tudo o que se vê efetivamente se produziu: Charlotte na soleira da porta do apartamento de Jonathan com seu vestido ensanguentado, Jonthan que entra no apartamento de Eve para pegar outro vestido, tudo isso é verdade, stricto sensu, a única mentira se encontrava no comentário que Jonathan faz dessas imagens. Não há propriamente fala sem esse fundo de silêncio.
Assim, para retomar o “argumento do caldeirão” freudiano – apresentar argumentos contraditórios –, este não é o único flashback mentiroso em Hitchcock. Um outro, igualmente mentiroso, acompanha o depoimento de Ann Baxter diante do juiz de instrução no filme A tortura do silêncio. Ela narra a maneira como conheceu o padre Logan, antes que este se tornasse padre. Embora seu depoimento não o mencione propriamente, sugere que eles tiveram relações sexuais quando dessa famosa noite de tempestade que os obrigou a permanecer fora. Mais tarde, Logan desmentirá formalmente o fato de que tenham sido amantes.
Os críticos que tiveram como principal reclamação contra esse flashback seu sentimentalismo excessivo e simplório, revelam-se incapazes para apreender sua verdadeira natureza: não se trata, de maneira alguma, de um relato “objetivo” sobre o passado, mas da versão de sua ex-noiva, colorida pelo desejo de Logan. Umas vez mais, Hitchcock nos faz seus bobos: nós imaginamos que eles se amam, pois tal é nosso desejo, idêntico aí ao da narradora do flashback. Esse engôdo será para nós muito instrutivo: a falsificação do “estado de coisas” desvela a verdade do desejo da histérica, enquanto que, para o obsessivo, o desconhecimento da verdade sobre seu desejo toma, via de regra, a forma de “dizer o que se passou realmente”. A histérica, mentindo, diz a verdade; o obsessivo, dizendo a verdade, mente.
Recordemos, a esse respeito, a resposta que Hitchcock deu à pergunta feita por Peter Bogdanovich sobre se eles, de fato, teriam dormido juntos àquela noite: “Assim espero. Ainda que, sendo eu um jesuíta, não encorage essa maneira de agir”. A contradição flagrante de sua resposta tem o mérito de deslocar a questão para o terreno do desejo e de sua interdição, isto é, para o plano da divisão do sujeito enquanto sujeito desejante: a mentira que diz a verdade sobre o desejo é para o sujeito uma das maneiras de suportar sua divisão.
[*] Stage Fright (1950). Richard Todd, perseguido pela polícia, entra no carro de Jane Wyman, que sai a toda velocidade. Ela lhe pergunta o que aconteceu, e ele lhe conta. Ele estava em sua casa quando subitamente apareceu Marlène Dietrich, em pânico, com seu vestido branco manchado de sangue, para lhe dizer o que acaba de acontecer: ela matou seu marido, e veio pedir a Todd para lhe ajudar a suprimir uma prova. Ele aceita e, tendo aparecido nos lugares relacionados ao crime, teme ser considerado suspeito. Nós ficamos sabendo que Todd mentiu para Marlène Dietrich, para Jane Wyman e para a polícia, e que ele é o assassino.
Fonte: ŽIŽEK, Slavoj. “Le Grand alibi: vérité, désir et mensonge” IN: DOLAR, Mladen, MOCNIK, Rastko, SUMIC-RIHA, Jelica, VRDLOUEC, Zdenko. Sous la direction de ŽIŽEK, Slavoj. Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur Lacan sans jamais oser le demander à Hitchcock. Narvin Éditeur, Paris, 1988.
Não achei a segunda parte do artigo. Tem?
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