terça-feira, 12 de abril de 2011

O HOMEM PÂNICO - Fernando Arrabal (Iª parte)

ARRABAL

1963

O HOMEM PÂNICO

 Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


No começo havia um texto: o conto Le Bucher (24º Labirinto de meu livro Fêtes et rites de la confusion).[1]

Alguns dias depois de ter escrito este texto, em cuja gênese minha consciência teve pouca participação, suponho, eu o reli como faço sempre, na esperança de encontrar um reflexo de uma de minhas particularidades. Bruscamente, o conto me pareceu muito característico. Uma vez mais, tive a impressão de que esse escrito havia sido “ditado”, e eu fiquei surpreso com a insistência com que eram tratados os grandes temas desse texto curto.  Minha atenção se voltava para a memória, faculdade que, até então, eu havia, senão desdenhado, ao menos julgado de interesse secundário.
Alguns dias mais tarde, eu li um manual de mitologia destinado ao grande público. Nesse livro figurava o quadro seguinte:

URANO (o céu)                                                       GEO (a terra)

               
              

                Assim, segundo a mitologia (que é, ao menos, uma criação humana), a Memória (Mnemosine) é a irmã do Tempo (Chronos). Por outro lado, na hierarquia mitológica a memória é a única faculdade humana que figura entre os titãs, filhos do céu e da terra, e pais dos deuses.
                Esse livro me ensinou ainda que Zeus (filho do Tempo) seduziu Mnemosine (a Memória). Nasceram as nove musas, frutos dessa união. Este detalhe terá para mim certa importância.
                Cada vez mais intrigado com a memória – este mistério? – eu li tudo o que me caía nas mãos sobre este tema; Barbiset, Bergson, Gusdorf, Ellenberger, Merleau-Ponty e até mesmo Aristóteles (Parva Naturalis). Que os escritores e filósofos mais “iminentes” tenham deixado escapar seu embaraço diante desse prodigioso e fascinante enigma, ou que eles tenham se arriscado a oferecer uma definição superficial, incompleta ou inexata, me causou espanto. O muito sutil Montaigne, por exemplo, tropeça sobre o tema: “A memória é assunto da ciência”, ele afirma.
                Os dicionários nos fornecem um índice interessante, mostrando-se pouco perspicazes em suas definições:
                Littré: “Faculdade de trazer de volta as idéias e as noções de objetos que produziram sensações”.
                Larousse: “Faculdade pela qual o espírito conserva as idéias anteriormente adquiridas”.
                Dicionário da Academia Real da Língua Espanhola: “Faculdade da alma graças a qual se retém o passado e se o recorda” etc.
(continua)

[1]              “Sobre a parede, diante de meu leito, centenas de olhos deslizavam me observando. Eles desciam do teto até o chão. Eram de todos os tipos: grandes, pequenos, belos, feios, azuis, negros... Eu os via escorregar até o chão, depois desaparecer.
                “No quintal, a fogueira estava sempre acesa, e de meu leito, eu escutava o crepitar dos galhos e os gritos dos dançarinos que, provavelmente, se divertiam em saltar por sobre o fogo.
                “Eu estava feliz em ver tantos olhos sobre a parede; eu imaginava que eles pertenciam a todas as pessoas que eu tinha conhecido. Talvez também a meus ancestrais e à humanidade inteira.
                “Do quintal subiam risadas juvenis e a claridade das chamas que iluminavam meu quarto.
                “Às vezes, um único olho progredia sobre a parede, lentamente, e me observava, nos observávamos e eu me sentia satisfeito e até orgulhoso.
                “De repente, uma grande ave entrou em meu quarto e planou em torno de minha cama. Eu não conhecia aquela ave. Parecia uma águia, ou um abutre, ou um condor. Ela parecia muito afetuosa.
                “Ela pousou sobre o dossel da cama e contemplou comigo o espetáculo da parede. Eu fiz o possível para ficar completamente imóvel e não assustá-la.
                “Por um longo tempo – talvez horas – nos unimos por uma tácita conivência encantadora.
                “Imaginei que a ave era, como eu, sensível a alguns olhares, a alguns olhos. Um deles lhe fez emitir um grito rouco e doloroso.
                “Bruscamente ela voou. Eu vou à janela desejando lhe dizer adeus. Ela descreve três círculos concêntricos em torno do fogo e, mergulhando, se atira às chamas. A multidão gritou, no auge da excitação.
                “Eu senti e ouvi suas asas e seu corpo queimarem. Fui tomado por uma súbita dor de cabeça de uma intensidade inabitual, enquanto a ave se consumia. Era uma sensação cerebral quase insuportável: era uma dor de segundo grau.
                “Com uma pá, um dos jovens recolheu as cinzas da ave e as colocou sobre uma pedra. Notei certo alívio.
                 “Observei que as cinzas se moviam. Finalmente, elas se agitaram: surge um bico, depois a cabeça,  as pontas das asas; logo a ave renascia de suas cinzas. Ela se reerguia mais altiva do que nunca.
                “Eu me sentei na cadeira e compreendi o mecanismo de minha memória, de minha Fênix.”