quinta-feira, 14 de maio de 2009

A lição de sabedoria das vacas loucas - Claude Lévi-Strauss

A Lição de Sabedoria das Vacas Loucas
Claude Lévi-Strauss
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


Para os ameríndios e a maior parte dos povos que permaneceram muito tempo sem escrita, o tempo dos mitos foi aquele onde os homens e os animais não eram realmente distintos uns dos outros e podiam comunicar-se entre si. Fazer com que os tempos históricos se iniciem com a torre de Babel, quando os homens perderam o uso de uma língua comum e pararam de se compreender, parecer-lhes-ia uma visão singularmente estreita das coisas. Esse fim de uma harmonia se produziu, segundo eles, sobre uma cena muito mais vasta; ela afligiu não apenas seres humanos, mas todos os seres vivos.

Hoje ainda, dir-se-ia que nós permanecemos confusamente conscientes dessa solidariedade primeira entre todas as formas de vida. Nada nos parece mais urgente do que imprimir, desde o nascimento ou quase, o sentimento dessa continuidade no espírito de nossas crianças. Nós os rodeamos de simulacros de animais de borracha ou de pelúcia, e os primeiros livros de imagens que nós lhes colocamos sob os olhos lhes mostram, bem antes que elas os encontrem, o urso, o elefante, o cavalo, o asno, o cachorro, o gato, o galo, a galinha, o camundongo, o coelho, etc.; como se fosse preciso, desde a mais tenra idade, lhes dar a nostalgia de uma unidade que eles saberão logo superada.

Não surpreende que matar seres vivos para deles se nutrir coloque aos humanos, estejam eles conscientes ou não, um problema filosófico que todas as outras sociedades tentaram resolver. O Antigo Testamento faz disso uma conseqüência indireta da queda. No jardim do Éden, Adão e Eva se alimentavam de frutas e grãos (Gênese, I, 29). É somente a partir de Noé que o homem se torna carnívoro (IX, 3). É significativo que essa ruptura entre o gênero humano e os outros animais preceda imediatamente a história da torre de Babel, quer dizer, a separação dos homens uns dos outros, como se esta fosse uma conseqüência ou um caso particular daquela.

Essa concepção faz da alimentação carnívora um tipo de enriquecimento do regime vegetariano. Por sua vez, alguns povos sem escrita vêem aí uma forma de pena atenuada do canibalismo. Eles humanizam a relação entre o caçador (ou o pescador) e sua presa concebendo-a sob o modelo de uma relação de parentesco: entre os unidos por casamento ou, mais diretamente ainda, entre cônjuges (assimilação facilitada pelo que todas as línguas do mundo, e mesmo as nossas em expressões argóticas, fazem entre o ato de comer e o de copular). A caça e a pesca aparecem assim como um gênero de endocanibalismo.

Outros povos, às vezes também os mesmos, julgam que a quantidade total de vida existente em cada momento no universo deve sempre estar em equilíbrio. O caçador ou o pescador que, por subtraírem uma fração da vida existente, deveram, se podemos dizer, reembolsá-la a expensas de sua própria esperança de vida; uma outra maneira de ver na alimentação carnívora uma forma de canibalismo: autocanibalismo desta vez, posto que, segundo essa concepção, come-se a si mesmo acreditando-se comer um outro.

Há cerca de três anos, a propósito da epidemia chamada de vaca louca, que não era então tão atual quanto hoje, eu explicava aos leitores de La Republica em um artigo (“Siamo tutti canibali” 10-11 de outubro de 1993) que as patologias vizinhas das quais o homem era às vezes vítima – Kuru na Nova-Guiné, casos novos da doença de Creutzfeldt-Jacob na Europa (resultantes da administração de extratos de cérebros humanos para tratar problemas de crescimento) – estavam ligados a práticas que dizem respeito ao sentido próprio do canibalismo donde seria necessário alargar a noção para poder aí incluir todas as outras. E eis que no presente se nos ensinam que a doença da mesma família que atinge as vacas em vários países europeus (e que oferece risco mortal para o consumidor) se transmite por farinhas de origem bovina com as quais se alimenta o gado. Ela resultou então de sua transformação pelo homem em canibais, sobre um modelo que não é, aliás, sem precedente na história. Textos de época afirmam que durante as guerras de Religião que ensangüentaram a França no século XVI, os parisienses esfomeados foram obrigados a se alimentar de pão feito à base de farinha feita de ossos humanos que eram extraídos das catacumbas para serem moídos.
A ligação entre a alimentação carnívora e um canibalismo ampliado até lhe dar uma conotação universal tem, assim, no pensamento, raízes muito profundas. Isso passa para o primeiro plano com a epidemia das vacas loucas posto que ao medo de contrair uma doença mortal se junta o horror que nos inspira tradicionalmente o canibalismo estendido agora aos bovinos. Condicionados desde a primeira infância, ficamos certamente carnívoros e nos desviamos para as carnes de substituição. Não resta dúvida que o consumo de carne baixou de maneira espetacular. Mas quantos somos nós, bem antes desses acontecimentos, que não poderíamos passar diante de uma banca de açougue sem experimentar um mal estar, vendo por antecipação, pela ótica de futuros séculos? Assim virá um dia onde a idéia de que, para se alimentar, os homens do passado criavam e massacravam seres vivos, expondo com satisfação sua carne em pedaços nas vitrines, inspirará sem dúvida a mesma repulsão que aos viajantes do século XVI ou XVII as refeições canibais de selvagens americanos, oceânicos ou africanos.

A moda crescente dos movimentos em defesa dos animais testemunha: percebemos com cada vez mais clareza a contradição na qual nossos costumes nos encerram, entre a unidade da criação tal como ela se manifestava ainda na entrada da Arca de Noé, e sua negação pelo próprio criador, na saída.

Entre os filósofos, Auguste Comte foi um dos que prestaram mais atenção ao problema das relações entre o homem e o animal. Ele o fez sob uma forma que os comentadores preferiram ignorar, por conta dessas extravagâncias às quais esse grande gênio freqüentemente se dedicou. Ele merece, portanto, que nos detenhamos.

Comte reparte os animais em três categorias. Na primeira, ele situa aqueles que, de uma maneira ou de outra, apresentam para o homem um perigo, e ele propõe tão simplesmente destruí-los.

Ele reúne numa segunda categoria as espécies protegidas e criadas pelo homem: bovinos, ovinos, animais de galinheiro... Depois de milênios, o homem os transformou tão profundamente que não se pode mesmo mais chamá-los de animais. Deve-se encara-los como os “laboratórios nutritivos” onde são elaborados os compostos orgânicos necessários à nossa subsistência.

Se Comte exclui essa segunda categoria da animalidade, ele integra a terceira à humanidade. Ele agrupa as espécies sociáveis onde encontramos nossos companheiros e freqüentemente nossos auxiliares ativos: animais em relação aos quais “se exagerou muito a inferioridade mental”. Alguns, como o cachorro e o gato, são carnívoros. Outros, devido à sua natureza herbívora, não possuem nível intelectual suficiente para que se lhes torne utilizáveis. Comte preconiza que se os transforme em carnívoros, o que de forma alguma é impossível a seus olhos posto que, na Noruega, quando falta a forragem, se alimenta o gado com peixe seco. Assim, alguns herbívoros serão levados ao mais alto grau de perfeição que comporta a natureza animal. Tornados mais ativos e mais inteligentes pelo novo regime alimentar, eles estarão mais aptos a se dedicar a seus senhores, a se comportar como servidores da humanidade. Poder-se-á confiar-lhes a vigilância das fontes de energia e de máquinas, tornando os homens, dessa forma, disponíveis para outras tarefas. Utopia certamente, reconhece Comte, mas não mais do que a transmutação dos metais que está, no entanto, na origem da química moderna. Aplicando a idéia de transmutação aos animais, tão somente se estende a utopia da ordem material para a ordem vital.

Com um século e meio de idade, essas idéias são proféticas sob vários pontos de vista enquanto confere a outras perspectivas um caráter paradoxal. É bastante verdadeiro que o homem provoca direta ou indiretamente a desaparição de inúmeras espécies e que outras estão, por isso, gravemente ameaçadas. Que se pense nos ursos, lobos, tigres, rinocerontes, elefantes, baleias, etc., mais as espécies de insetos e outros invertebrados que as degradações infligidas pelo homem destroem a cada dia.

Igualmente profética, e a um ponto em que Comte não poderia imaginar, é essa visão dos animais, dos quais se alimenta o homem, impiedosamente reduzidos à condição de laboratórios nutritivos. A criação em bateria de bezerros, porcos, galinhas oferece a ilustração mais horrível. O parlamento europeu mostrou-se recentemente preocupado.

Profética também, enfim, a idéia de que os animais que formam a terceira categoria concebida por Comte tornar-se-ão colaboradores ativos para o homem, como atestam as tarefas cada vez mais diversificadas confiadas aos cães-guia, o recurso aos macacos treinados especialmente para assistir aos deficientes, as esperanças depositadas nos golfinhos.

A transmutação de herbívoros em carnívoros é, também ela, profética, como o prova o drama das vacas loucas, embora nesse caso as coisas não ocorram como previu Comte. Se nós transformamos herbívoros em carnívoros, primeiro, essa transformação talvez não seja tão original quanto acreditamos. Sustentou-se que os ruminantes não são verdadeiros herbívoros porque eles se nutrem principalmente de microorganismos, os quais se nutrem de vegetais fermentados com auxílio de um estômago especialmente adaptado.

Essa transformação não foi, sobretudo, desenvolvida em favor dos auxiliares ativos do homem, mas em detrimento desses animais qualificados por Comte de laboratórios nutritivos: erro fatal contra o qual ele mesmo havia prevenido, quando dizia que “o excesso de animalidade lhes será nocivo”. Nocivo não somente a eles, mas a nós: ao conferir-lhes um excesso de animalidade (devido à sua transformação, bem mais que em carnívoros, em canibais) não estaríamos transformando, certo que involuntariamente , nossos “laboratórios nutritivos” em laboratórios mortíferos?

A doença da vaca louca não alcançou ainda todos os países. A Itália até o momento presente está, creio, indene. Talvez ela seja logo esquecida: seja porque a epidemia cesse por si mesma, como prevêem os cientistas britânicos, seja porque sejam descobertas vacinas ou tratamentos, ou que uma política de saúde rigorosa garanta a saúde dos animais destinados ao açougue. Mas outros cenários são também concebíveis.

Suspeita-se que, contrariamente às idéias aceitas, a doença poderia atravessar as fronteiras biológicas entre as espécies. Atingindo todos os animais dos quais nos alimentamos, ela se instalaria de maneira durável e tomaria lugar entre os males nascidos da civilização industrial que comprometem cada vez mais as necessidades de todos os seres vivos.

Nós já não respiramos mais que um ar poluído. Igualmente poluída, a água não é mais esse bem que se acreditava disponível sem limite: nós sabemos que ela é contada tanto na agricultura quanto nos usos domésticos. Desde a aparição da aids, as relações sexuais comportam um risco fatal. Todos esses fenômenos perturbam e perturbarão de maneira profunda as condições de vida da humanidade, anunciando uma nova era onde tomará lugar, simplesmente como consequêencia, esse perigo mortal que apresentará daí em diante a alimentação carnívora.

Esse não é, aliás, o único fator que poderia compelir o homem a abandonar a alimentação carnívora. Em um mundo onde a população global irá provavelmente dobrar em menos de meio século, o gado e os outros animais de criação tornar-se-ão temerários concorrentes para o homem. Calculou-se que nos Estados Unidos, dois terços dos cereais produzidos servem para alimenta-los. E não esqueçamos que esses animais rendem em carne muito menos calorias do que consomem ao longo de sua vida (a quinta parte, me disseram, para uma galinha). Uma população humana em expansão terá logo necessidade para sobreviver de toda a atual produção de cereais: não restará nada para o gado e os animais de galinheiro, de maneira que todos os humanos deverão calcar seu regime alimentar sobre o dos indianos e chineses onde a carne animal cobre uma parte muito pequena das necessidades de proteínas e de calorias. Será mesmo necessário, talvez, renunciar completamente à carne porque, enquanto a população aumenta, a superfície das terras cultiváveis diminui sob o efeito da erosão e da urbanização, as reservas de hidrocarbonetos baixam e as fontes de água se reduzem. Em contrapartida, os especialistas estimam que se a humanidade se tornar integralmente vegetariana, as superfícies hoje cultivadas poderão alimentar uma população em dobro.

É notável que nas sociedades ocidentais o consumo de carne tenda espontaneamente a cair, como se essas sociedades começassem a mudar de regime alimentar. Nesse caso, a epidemia da vaca louca, ao desviar os consumidores da carne, não faria senão acelerar uma evolução em curso. Ela lhe acrescentaria apenas um componente místico feito de um sentimento difuso que nossa espécie paga por ter contrariado à ordem natural.

Os agrônomos se encarregarão de aumentar o teor de proteínas das plantas alimentícias, os químicos de produzir proteínas sintéticas em quantidade industrial. Mas mesmo se a encefalopatia espongiforme (nome científico da doença da vaca louca e de outras da mesma família) se instale de maneira durável, apostamos que o apetite por carne não desaparecerá na mesma medida. Sua satisfação tornar-se-á tão somente uma ocasião rara, custosa e arriscada. (o Japão conhece situação semelhante com o fugu, peixe tetradontídeo de raro sabor que se não for bem limpo pode ser mortal.) A carne figurará no cardápio em circunstâncias excepcionais. Ela será consumida com um misto de reverência piedosa e ansiedade que, de acordo com os antigos viajantes, impregnava as refeições canibais de alguns povos. Nos dois casos, trata-se ao mesmo tempo da comunhão com os ancestrais e de assumir o risco de incorporar a substância perigosa de seres vivos que foram ou se tornam inimigos.

A criação, não rentável, ao ter desaparecido por completo, fará com que essa carne comprada em lojas de luxo, venha somente da caça. Nossos antigos rebanhos, abandonados, se tornarão caça, entre outras, em um campo entregue à selvageria.

Não se pode, contudo, afirmar que a expansão de uma civilização que se pretende mundial uniformizará o planeta. Ao acumular, como se observa hoje, uma população em megalópoles tão grande quanto estados, uma parte dela se deslocará para outros espaços. Totalmente desabitados, esses espaços retornarão às condições arcaicas; aqui e ali, os mais estranhos gêneros de vida tomarão lugar. Em vez de ir em direção à monotonia, a evolução da humanidade acentuará os contrastes, recriando, restabelecendo o reino da diversidade. Rompendo hábitos milenares, tal é a lição de sabedoria que nós teremos, talvez um dia, aprendido com as vacas loucas.

Fonte: Études rurales 157-158. Jeux, Conflits, Représentations http://etudesrurales.revues.org/document27.html

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