sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Intervenção do Doutor Jacques Lacan

Intervenção do Doutor Jacques LACAN na discussão sobre a exposição de Claude Lévi-Strauss a respeito das relações entre a mitologia e o ritual

Sociedade Francesa de Psicanálise, sessão de 26 de maio de 1956
AREP édition, Alençon, 1977, sob o título: “Jacques Lacan, Travaux et interventions”
Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes Pereira

J. Lacan: Eu fiquei bastante sensibilizado com a cortesia que me mostrou o senhor Jean Wahl em se incomodar em me perguntar se eu queria falar, em perguntar por que eu não quero falar.

Quero, portanto, que se saiba que quando eu venho ouvir Claude Lévi-Strauss é sempre para me instruir. Se, então, eu me ocupo de colocar alguma questão, ela não deixará de ser marcada pela parcialidade dos meus interesses.

Se ouso fazê-lo, é que desde muito tempo esses interesses foram bastante nutridos e aumentados pelas coisas que eu aprendi com Claude Lévi-Strauss. De maneira que hoje eu venho com certa expectativa: que eu chamaria de o passo seguinte, depois do que ele já nos trouxe sobre os mitos, e que vou interrogar sobre o que deixou a desejar em relação ao que ele nos traz hoje.

Se eu quiser caracterizar em que sentido eu fui amparado e orientado pelo discurso de Claude Lévi-Strauss, diria que é devido ao acento que ele pôs – espero que ele não vá declinar diante da amplitude dessa fórmula, a qual eu não pretendo reduzir sua pesquisa sociológica ou etnográfica, – sobre o que eu chamarei a função do significante, no sentido que tem esse termo em lingüística, na medida em que esse significante, eu diria que não só se distingue por suas leis, mas prevalece sobre o significado a que impõe.

Claude Lévi-Strauss nos mostra todos os lugares onde a estrutura simbólica domina as relações sensíveis. Dizemos, para exprimir as coisas aproximativamente, para nos fazer entender rápido, bem como a todo mundo, que ele nos mostrou que as estruturas do parentesco se ordenam segundo uma série em que as possibilidades da combinatória explicam em última instância; de maneira que quase todas essas possibilidades podem realizar-se em qualquer lugar no conjunto concreto que recolhemos no mundo. Quer dizer que, por uma lado, pode-se dar conta do que nós não encontramos por algum impasse para conduzir seu uso e, por outro, para fazer uma aproximação, eu direi que não tem nada de descortês, Claude Lévi-Strauss admitiria, como o fazia Fourier em seu sistema bastante audacioso ao menos por reduzir o alcance da natureza, que, se há classes possíveis que restam vazias, espera-se encontrar algum dia o que as preencheria. Depois de tudo, o que faz que uma estrutura seja possível são razões internas ao significante, o que faz que uma certa forma de troca seja concebível ou não são razões propriamente aritméticas; creio que ele não recuará diante desse termo.

O segundo passo que graças a ele eu já havia dado antes de chegar aqui hoje diz respeito ao que nós lhe devemos sobre seus desenvolvimentos a respeito do mitema, que eu tomo como uma extensão à noção de mito, desse acento posto sobre o significante. A análise dos mitemas, tal como ele nos propõe desvendá-la, desenvolvê-la, consistiria, em suma, em buscar esses elementos significantes, essas unidades significantes no nível do mito, que se chamam mitemas, como no nível do material elementar nós temos os fonemas, para aí reencontrar uma espécie de lingüística generalizada.
Eu fiquei muito impressionado, em relação a essa primeira análise do mitema, pelo caráter excessivamente avançado de suas fórmulas: propondo de início o método de seriação que nos permite identificar as unidades homólogas através dos mitos paralelos quando chegam até nós apenas o que nos resta da mitologia grega; mas no intuito de desvendar na diacronia interna às linhagens heróicas algumas combinações tais como as que ele nos mostrou hoje, como um agrupamento de termos que se produz na primeira geração, se reproduz, mas em uma combinação transformada, na segunda geração. Assim o que se passa na geração de Édipo pode ser homólogo à geração de Etéocles e Polinice segundo um modo de transformação previsível em seu rigor; pois a falta arbitrária, se podemos chamar assim, aparece aqui nos dois níveis, onde encontramos uma coerência igual, ponto por ponto.

Eis então onde eu estava hoje. A coisa para mim é altamente apreciada em seu relevo, pois como Claude Lévi-Strauss não ignora, eu tentei quase imediatamente e, ouso dizer, com pleno sucesso, aplicar a grade aos sintomas da neurose obsessiva e especialmente à admirável análise que Freud fez do “Homem dos ratos”, em uma conferência que intitulei o “Mito individual do neurótico”. Eu pude até formalizar estritamente o caso segundo uma fórmula dada por Lévi-Strauss, pela qual um a no início associado a um b, enquanto que um c é associado a um d, muda seu par na segunda geração, mas não sem que subsista um resíduo irredutível sob forma de negativação de um desses quatro termos, que se impõe como correlativo a transformação do grupo: onde se lê o que chamarei o signo de uma espécie de impossibilidade da total resolução do problema do mito. De maneira que o mito estaria aí para nos mostrar o equacionamento, sob uma forma significante, de uma problemática que deve por si mesma deixar algo em aberto, que responde ao insolúvel significando a insolubilidade, com seu relevo encontrado em suas equivalências, que fornece (e essa seria a função do mito) o significante do impossível. Teria eu avançado talvez um pouco? Quero introduzir, com efeito, um sistema de transformação significante que é totalmente da mesma ordem, e que não posso deixar de sublinhar a distância que há entre o método de Lévi-Strauss e esse modo de análise onde abundam nossos clínicos e que não têm nada a invejar a esses de que nos fala o senhor Métraux, nos complexos desses personagens que ele encontrou na América do Sul, que eu adoraria, aliás, saber exatamente onde, por pura curiosidade, logo todos os meus pacientes estariam a sua disposição: quer dizer que é verdade que se teme estar grávido mesmo sem ser homossexual; há muitas razões para esse temor; nós não tocamos aí nada além desse estado movente das relações desse ser singular que é atirado na existência sob o nome de homem; todos os medos possíveis dele fazem parte. Eu direi que os significantes são feitos de certa maneira para lhes ordenar, organizar, para possibilitar uma escolha. É este o fundo sobre o qual se inscreve a experiência analítica, e até mesmo a experiência etnográfica, quer dizer que se pode encontrar longe o que se pode encontrar entre nós; que para encontrar não há, então, necessidade de se ir buscar tão longe. O medo de um garoto de estar grávido é coisa completamente diferente que a utilização da função da gravidez, em um sistema significante; ele está aí para ter um certo papel, uma certa ligação, onde ela pode ser transformada, imediatamente, em outra coisa; é algo de outra natureza, é alguma coisa onde o páthos humano, com toda sua confusão, e todos os seus temores, encontra seu sentido, por mais longe que leve.

O que nos importa aqui é o sistema significante na medida em que ele organiza, em que é a sustentação de tudo isso, determinando as vertentes, pontos cardinais, reversões, conversões e o jogo da dívida.

Evidentemente, essa ordem de estudo única em si permite uma tal mudança de perspectiva que permite reclassificar os problemas de uma maneira inteiramente diferente. Por exemplo, pode-se perguntar o que será exatamente o sistema de transformação do significante nas diferentes manifestações do simbolismo que a análise revelou no psiquismo: ela provavelmente não se apresenta da mesma maneira que na neurose obsessiva; é de uma maneira mais completa ou incompleta, em outros registros? Pode-se desde já encontrá-lo no sonho e, se essa chave lhes tivesse sido dada, os autores que se interessam pela função do que eles chamaram os sonhos em dois tempos, ou sonhos redobrados, teriam sido mais pertinentes em suas observações, menos grosseiros em seus recursos em relação às instâncias psíquicas em sua maneira obstinada para explicar a necessidade de reduplicação de um mesmo tema e do que se esgota.

Isso não faz senão aumentar ainda mais a intensidade do problema, pois se isso funciona no nível do sonho, a que nos conduz em relação à atividade mental? Renova completamente o alcance das questões; mostra que depois de Freud nós não avançamos muito, mas, sobretudo, recuamos.

Hoje nos encontramos, graças à exposição de Lévi-Strauss, diante de algo que me surpreende, e que é em suma o sentido de minha observação, no que diz respeito ao que me parece ser um recuo diante do que parecia oferecer como princípio de estruturação o artigo do Journal of American Folklore sobre a estrutura do mito. Eu quero dizer, por exemplo, que eu não encontro aí as fórmulas de transformação já bastante elaboradas das quais eu falava há pouco. Há aí um tipo de combinação ternária na qual eu vejo bem o agrupamento dois por dois em um sentido giratório. Direi que é a intrusão massiva de uma elemento vindo do real na função formadora do mito que me parece ao mesmo tempo elemento novo e elemento que, eu não diria que me desconcerta, mas me faz interrogá-lo.1

Em outros termos, para que possamos conceber ou buscar as motivações dessas estruturas míticas em um tipo de relação em espelho de um grupo em relação à estrutura social de um grupo vizinho, parece que você considerava por assim dizer que o grupo sonha com o que foi deixado de lado em sua estrutura social em relação aos dados de troca econômica, agricultura ou nomadismo que a determinam.

Há um tipo de função de complementaridade simbólica. Eu não penso, em relação ao sonho, na parte em que você se refere no sentido próprio do onrismo, mas, sobretudo como um tipo de bovarismo social que se exprimiria no mito. É por uma espécie de miragem, de reflexo ou de imagem do que se passa com os outros que você relacionaria o mito em sua profunda anomalia no interior de um grupo. Está aí para você inteiramente a explicação derradeira? Eu direi que generalização poder-se-ia dar: ou bem você conceberia todo esse conjunto de pequenas civilizações por assim dizer minúsculas, empoeiradas, de índios da planície formando algo como um vasto grupo do qual tudo faria parte, afinal, de um mesmo mundo coerente, onde cada um dedicar-se-ia a uma espécie de especialização tentando compensar o outro como pode. Em poucas palavras, é a relação, a idéia precisa que você tem da ligação dessa elaboração do significante tal como você nos ofereceu, com a estrutura real, concreta e muito limitada das sociedades primitivas, que me faz questioná-lo sobre a tendência, a direção na qual você orienta essa coordenação do que chamarei, na minha linguagem, o simbólico e o imaginário. Eu esperava um circuito mais longo na ordem do puro simbólico antes que você nos conduzisse a essas motivações imaginárias. Esse é aproximadamente o sentido de minha questão.

C. Lévi-Strauss: Estou muito agradecido por você ter posto um problema essencial. Desculpo-me por tê-lo decepcionado ao resumir o circuito. Tinha prometido ao presidente que falaria uma meia hora; receio que tenha ultrapassado de cinco a dez minutos do tempo concedido. Se eu tivesse tentado tratar o problema de maneira puramente formal, como você esperava, teria faltado tempo para escrever os símbolos no quadro, definir o sentido, etc.

Dito isso, estou inteiramente de acordo com você, de que o problema hoje é um pouco diferente do que tratei em outros trabalhos. No artigo sobre o qual você fez alusão, eu me pus o problema das relações entre as variantes de um mesmo mito e tentei demonstrar que cada variante pode ser assimilada por um grupo de permutações de elementos dispostos de uma maneira diferente nas variantes vizinhas, de tal modo que o mito progrida, se desenvolva, engendre novas variantes, até o esgotamento da totalidade das combinações.

O problema hoje é diferente. É o das relações entre a mitologia e o ritual, problema geralmente escamoteado sob o pretexto de que o mito é da ordem da representação, e o rito da ordem da ação. Ora, o homem é um ser pensante e atuante. Nada mais natural, nos dizem, que ele tente se expressar dessas duas maneiras. Mas isso só seria verdade se as ações, os gestos do rito sendo os gestos e ações verdadeiras, chegassem a um resultado.

Você falou a pouco do significante e do impossível; se o ritual não produz resultado, é necessário concluir que consiste em pseudogestos executados, não no sentido de um resultado concreto, mas, sobretudo, porque são um suporte de significação. Nessa perspectiva, ainda que se tratasse de dois sistemas de signos diferentes, de dois códigos diferentes, tanto no plano do mito quanto no plano do rito, estamos diante de um código. Em certo momento caracterizei o mito como uma metalinguagem e o rito como uma para-linguagem, mas, nos dois casos, linguagem. Por que, então, duas linguagens? É o problema que tentei colocar. Espero que seja possível fazer progredir a solução mostrando que essa assimilação do mito e do rito é de tal maneira que os tipos de combinação que uma sociedade realiza sob forma de mito, a que está ao lado o faz sob forma de rito. As razões pelas quais essas escolhas diferentes se produzem tornam-se, de certo modo, razões residuais, que não tocam o essencial da interpretação simbólica e colocam em causa a história respectiva dessas populações. Não penso em me retratar sobre minhas hipóteses precedentes. Eu quero um meio de entendê-las e desenvolvê-las, uma vez que se trata de englobar no reino do simbolismo o domínio do ritual, que eu havia deixado até o momento de fora.

J. Lacan: Isso acentua ainda a relativização total desses sistemas simbólicos.

1 Cf. "The structural study of myth", por Claude Lévi-Strauss, in : Journal of American Folklore out.-dec. 55, vol. 68, n° 270, pp. 428-444.

Fonte: http://www.lutecium.fr/Jacques_Lacan/transcriptions/intervention_levi_strauss.htm

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