terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Deleuze e o Real lacaniano por Slavoj Zizek


Deleuze e o Real Lacaniano

Slavoj Žižek

Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Por que o estruturalismo é sério? Para o sério ser verdadeiramente sério ele deve ser consecutivo, composto por elementos, resultados, configurações, homologias, e repetições. O que é sério para Lacan é a lógica do significante, i.e., o oposto da filosofia, visto que toda a filosofia repousa na congruência, transparência, concordância, harmonia do pensamento consigo mesmo. Há sempre uma parte escondida numa filosofia, um Eu=Eu, que constitui o que Lacan chamou em algum momento “o erro inicial em filosofia”, que consiste em privilegiar essa igualdade e então fazer com que se acredite que o ‘Eu’ é coetâneo a si mesmo, enquanto que sua constituição é sempre depois da emergência de sua causa, do petit a. O inconsciente significa que o pensamento é causado pelo não-pensamento, que não pode ser recapturado no presente, exceto através de suas conseqüências. Esta é a maneira como Georges Dandin recaptura a conseqüência do tempo parado, quando pára para dizer: Tu l’as voulu, Geoges Dandin! (Você quis isso, Georges Dandin!). Ele faz o tempo parar para recapturar na conseqüência o que foi causado pelo não-pensamento1.
A única coisa com a qual não se pode concordar inteiramente em relação à passagem citada diz respeito à condenação demasiado rápida e superficial de Miller (e Lacan) à filosofia: o mesmo idealista alemão que articulou o infame Eu=Eu, a fórmula da auto-identidade do Eu de Lacan distanciado de si mesmo, Fitche, também tornou clara a dependência do sujeito de uma causa des-centrada em relação a ele mesmo. Fitche foi o primeiro filósofo a enfocar a estranha contingência no coração mesmo da subjetividade: o sujeito fitchiano não é o extravagante Ego=Ego como a Origem absoluta de toda realidade, mas um sujeito finito intimidado, apanhado, em uma situação social contingente evitando para sempre a maestria. É importante ter em mente os dois sentidos primários da Anstoss em alemão: Impedimento, obstáculo, estorvo, algo que resiste a ilimitada expansão de nosso esforço, mas também ímpeto, estímulo, algo que incita nossa atividade. Anstoss não é simplesmente o obstáculo que o Eu absoluto põe a si mesmo, pela superação do obstáculo autoposicionado, isso afirma seu poder criativo, como os jogos feitos pelo proverbial santo ascético pervertido, que inventa novas tentações para si mesmo, resistindo-as vitoriosamente, confirmando sua resistência. Se à Ding an sich kantiana corresponde a Coisa freud-lacaniana, Anstoss está mais próxima do objet petit a, do primordial corpo estranho que “atravessa na garganta” do sujeito, do objeto causa do desejo que o divide: Fitche, ele mesmo, define Anstoss como o não assimilável corpo estranho que causa a divisão do sujeito dentro do sujeito vazio absoluto e o sujeito finito determinado, limitado pelo não-Eu. Anstoss então designa o momento do “confronto”, do golpe arriscado, do encontro do Real no cerne da idealidade do Eu absoluto: não há sujeito sem Anstoss, sem a colisão com um elemento de irredutível facticidade e contingência – “o Eu é suposto encontrar dentro de si mesmo algo estranho.” O ponto é então reconhecer “a presença, no Eu mesmo, de um reino de irredutível alteridade, de absoluta contingência e incompreensibilidade... Afinal, não apenas a rosa de Angelus Silesius, mas todo Anstoss, qualquer que seja, ist ohne Warum.” Em claro contraste com a Coisa numenal kantiana que afeta nossos sentidos, Anstoss  não vem de fora, é stricto sensu ex-tímia: um corpo estranho não assimilável no núcleo mesmo do sujeito – como Fitche, ele mesmo, enfatiza, o paradoxo da Anstoss reside no fato de que ela é simultaneamente “puramente subjetiva” e não produzida pela atividade do Eu. Se Anstoss não fosse “puramente subjetiva”, se já fosse o não-Eu, parte da objetividade, recairíamos no “dogmatismo”, i.e., Anstoss efetivamente equivaleria a um vago resíduo da Ding an sich kantiana e corroboraria a inconseqüência de Fitche (a reprovação usual a Fitche); se Anstoss fosse simplesmente subjetiva, estaríamos diante do vazio do sujeito jogando consigo mesmo e jamais alcançaríamos o nível da realidade objetiva, i.e., Fitche seria efetivamente um solipsista (outra reprovação comum à sua filosofia). O ponto crucial é que Anstoss põe em movimento a constituição da “realidade”: no início é o puro Eu com o inassimilável corpo estranho em seu cerne; o sujeito constitui a realidade no sentido de assumir a distância para com o Real do informe Anstoss e conferindo a ela estrutura de objetividade. O que se impõe aqui é o paralelo entre o Anstoss fitchiano e o esquema freud-lacaniano da relação entre o Ich (Ur-Ich) primordial e o objeto, o corpo estranho em seu cerne, que perturba seu equilíbrio narcísico, colocando em movimento o longo processo da expulsão gradual e estruturação do seu obstáculo interno, através do qual (o que experimentamos como) “realidade objetiva, externa” é constituída.
A temporalidade da causa do sujeito não é a da linear disposição do tempo (e da correspondente noção de que causas passadas determinam o presente); é a temporalidade do tempo circular na qual o “tempo para” quando, numa intrincada autonarração, o sujeito coloca sua própria causa pressuposta. Miller mesmo reconhece isso quando salienta que a causa do desejo é “além disso, uma causa posta por retroação”. É nesse preciso sentido que sujeito e objeto são correlativos: a emergência [emergence] do sujeito, seu rompimento (corte interno, suspensão) da causalidade linear da “realidade” tem uma causa, mas uma causa que é retroativamente posta por seu próprio efeito. É essa retroatividade mínima, não apenas algum tipo de “complexidade” estrutural, que nos permite passar da causalidade linear natural, por complexa que seja, à própria causalidade estrutural.
“Você quis isso, Georges Dandin” citado por Miller é uma passagem de Molière na qual o sujeito é lembrado de que o impasse presente no qual se encontra é o não intencional resultado de seus próprios atos passados; Miller dá a isso uma reviravolta adicional: o sujeito poderia recapturar na conseqüência que ele encontra na realidade os resultados de sua causa ausente e não considerada – no caso de Billy Bathgate, ele poderia recapturar em dois objetos “reais”, o romance e o filme, as conseqüências de sua causa virtual, o espectral “melhor romance”.
Deleuze caracterizou sua leitura dos filósofos como guiada pela tendência “de ver a história da filosofia um tipo de coito anal ou (o que vem a ser a mesma coisa) concepção imaculada. Eu me vejo a mim mesmo pegando um autor por trás e oferecendo-lhe uma criança que seria sua própria cria, ainda que monstruosa. Era realmente importante ser sua própria cria, porque o autor tinha, de fato, que dizer tudo o que eu tinha lhe dito. Mas a criança também tinha que ser monstruosa, pois é resultado de todo tipo de mudança, deslizamento, deslocamentos e emissões ocultas com as quais eu realmente me deleitei”2. Deleuze é aqui profundamente lacaniano: Lacan não faz o mesmo em sua leitura de “Kant com Sade”? Jacques-Alain Miller certa vez caracterizou essa leitura com as mesmas palavras de Deleuze: o intuito de Lacan é “pegar Kant por trás”, para produzir o monstro sádico como a própria cria de Kant. (E, a propósito, o mesmo não vale também para a leitura de Heidegger dos fragmentos dos Pré-Socráticos? Ele também não “pegou por trás” Parmênides e Heráclito? Sua extensa explanação de “Ser e pensamento são o mesmo” de Parmênides não é uma das maiores penetrações anais da história da filosofia?) O termo “concepção imaculada” está relacionado à noção, de A Lógica do Sentido, do fluxo de sentido como infértil, sem um poder causal próprio: a leitura de Deleuze não se move no nível das imbricações presentes das causas e efeitos; ela está para as interpretações “realistas” como a penetração anal está em relação à própria penetração vaginal.
Esse procedimento deleuziano tem um inesperado precedente teológico – não a imaculada concepção de Cristo, a qual ele mesmo se refere, mas a lenda judaica sobre o nascimento do Messias contada por Joseph em um manuscrito do século treze. Deus quer dar à luz o Messias, mas sabe que todas as forças do mal estão esperando diante da vagina de Shekina para matar o Messias no instante em que ele nascer. Assim, Deus a noite vai até sua amante, Lilith, o símbolo do mal, e a sodomiza (a expressão utilizada pode significar que ele urinou em sua vagina). O Messias virá de Lilith depois do sexo anal: essa é a maneira pela qual Deus engana as forças do mal, dando origem ao Messias através do mal3. Se o movimento fundador que estabelece o universo simbólico é o gesto vazio, como ele é esvaziado? Como seu conteúdo é neutralizado? Através da repetição. Giorgio Agamben tentou indicar esse processo com a noção de profanação: na oposição entre sagrado e secular, profanação do secular não equivale a secularização; profanação põe o texto ou prática sagrada em um contexto diferente, subtraindo-o de sua função e contexto próprios. Como tal, a profanação permanece no contexto da não utilidade, meramente representando uma não utilidade “pervertida”. Profanar uma missa é realizar uma missa negra, não estudar a missa como objeto da psicologia da religião. Em O Processo de Kafka, o estranho extenso debate entre Joseph K. e o Sacerdote sobre a Lei (o qual segue a parábola da Porta da Lei) é profundamente profanador – pode-se até dizer que Kafka é o grande profanador da Lei judaica. Assim, profanação – não secularização – é a verdade materialista minando o Sagrado: Secularização sempre conta com sua fundação sagrada rejeitada, que sobrevive ou como exceção ou como estrutura formal. O Protestantismo realiza sua divisão entre o sagrado e o secular da maneira mais radical: seculariza o mundo material, mas mantém a religião aparte, mais ainda, introduz o princípio religioso formal na economia capitalista mesmo. (Mutatis mutandis, o mesmo vale para o comunismo stalinista – ele é secularizado, não religião profanada).
Aqui, dever-se-ia talvez suplementar Agamben: se concebermos profanação como o gesto de extração da própria vida-mundo, contexto e uso, tal extração não é também A DEFINIÇÃO MESMA DE SACRALIZAÇÃO? Quer dizer, a propósito da poesia: não é o “nascimento” da poesia quando uma frase ou grupo de palavras é “descontextualizada” e apanhada em uma insistência repetitiva autônoma? Quando, ao invés de “venha aqui” eu digo “venha, venha aqui”, isso não é um mínimo de poetização? Há, assim, um nível-zero no qual profanação não pode ser distinguida de sacralização. Temos aqui então o mesmo paradoxo da classificação deslocada de verbos em ativos, passivos e médios analisados por Emile Benveniste (a oposição original não é entre passivo e ativo, com o médio intervindo como um terceiro momento neutro/mediado, mas entre ativo e médio): a oposição original é entre o secular-cotidiano-útil e o Profano, e o “Sagrado” representa a mistificação/deslocamento secundário do Profano. A emergência do universo humano/simbólico reside no gesto mínimo de “descontextualização profanatória” de um sinal ou gesto, e a “sacralização” vem posteriormente, como uma tentativa de reformar, de domesticar esse excesso, esse impacto extático, do profano. Em japonês, bakku-shan significa “uma garota que embora possa ser bonita quando vista detrás, não é quando vista de frente” – não é a relação entre sagrado e profano algo semelhante a isso? Uma coisa que aparece (é experimentada como) sagrada quando vista detrás, de uma distância apropriada, é precisamente um excesso profano... Parafraseando Rilke, Sagrado é o último véu que encobre o horror do Profano.
O que seria a profanação do Cristianismo? E se o próprio Cristo – a incorporação de Deus em um ridículo mortal, seu cômico aspecto – já É a profanação da divindade? E se, em contraste com outras religiões que podem ser profanadas pelo homem, apenas no Cristianismo Deus profana a SI MESMO?
A dualidade da diferença e equivalência de Laclau permanece presa na lógica da oposição exterior. O que Laclau não desenvolve é a mediação conceitual dos dois opostos, i.e., como a mesma lógica da diferença (diferencialidade: a identidade de cada elemento reside apenas em sua diferença em relação a todos os outros) IMANENTEMENTE conduz ao antagonismo. Diferencialidade, no sentido de permanecer pura (i.e., evitar a referência a qualquer tipo de suporte externo no sentido de algum elemento que não é baseado em diferenças, mas se mantém em sua identidade), tem que incluir um marcador da diferença em meio ao campo (das diferenças) e seu exterior, i.e., uma “pura” diferença. Essa “pura” diferença, contudo, já tem que funcionar como puro antagonismo, i.e., isso é o que restringe/frustra a identidade de cada um dos elementos. Isso é porque, como propôs Laclau, diferença externa é sempre também diferença interna: não apenas que a diferença entre o próprio campo e seu exterior tem que se refletir no campo ele mesmo, impedindo seu fechamento, frustrando sua plenitude; a identidade diferencial de cada elemento é simultaneamente constituída e restringida/frustrada pela rede diferencial.
Nas séries policiais de Henning Mankel, o inspetor Kurt Wallander tem um pai cujo meio de vida é pintar – ele pinta o tempo todo, em centenas de cópias, a mesma pintura, a paisagem de uma floresta na qual o sol nunca se põe (nisso reside a mensagem da pintura: é possível tornar o sol cativo, impedindo seu ocaso, congelando um momento mágico, extraindo sua pura manifestação do circular movimento eterno da natureza de geração e degeneração). Há, no entanto, uma “diferença mínima” nessas de outro modo idênticas pinturas: em algumas delas há um pequeno galo na paisagem, enquanto que em outras não há o galo, como se a própria eternidade, tempo congelado, tivesse que ser sustentada por uma variação mínima, um tipo de substituto da realidade da pintura para o que realmente distingue cada pintura, sua virtual intensidade puramente única.
Se “individuação é uma relação concebida como um puro ou absoluto no meio de, um no meio de subentendido como inteiramente independente de ou externo aos seus termos – e então um no meio de que pode ser descrito afinal com ‘no meio de’ nada,” (Hallward 154), seu status é então o de um puro antagonismo. Sua estrutura foi disposta por Lacan em relação à diferença sexual que, como uma diferença, precede os dois termos entre os quais há diferença: o ponto das “fórmulas de sexuação” de Lacan é que ambas as posições, masculina e feminina, são dois modos de evitar o impasse da diferença como tal. Isso é porque a afirmação de Lacan de que a diferença sexual é “real-impossível” é rigorosamente sinônima à afirmação de que “não há relação sexual”. Diferença sexual é para Lacan não um sólido conjunto de oposições e inclusões/exclusões simbólicas “estáticas” (normatividade heterossexual que relega a homossexualidade e outras “perversões” a algum papel secundário), mas o nome do impasse, do trauma, de uma questão aberta, de algo que RESISTE a toda tentativa de simbolização. Todas as traduções da diferença sexual em um conjunto de oposições simbólicas estão condenadas a falhar, e é essa mesma “impossibilidade” que abre o terreno da luta hegemônica através da qual a diferença sexual ganhará sentido. E o mesmo vale para a diferença política (luta de classes): a diferença entre Esquerda e Direita não é apenas a diferença entre dois termos em um campo comum, ela é “real” desde que não é possível oferecer sua descrição neutra – a diferença entre Esquerda e Direita aparece diferentemente se observada a partir da Esquerda ou da Direita: para a primeira, representa o antagonismo que atravessa todo o campo social (antagonismo encoberto pela Direita), enquanto que a Direita percebe a si mesma como a força de moderação, estabilidade social, e unidade orgânica, com a Esquerda reduzida à posição de um intruso que perturba a estabilidade orgânica do corpo social – para a Direita, a Esquerda é em si “excessiva”.
            Vamos de novo tomar a exemplar análise de Lévi-Strauss de seu Antropologia Estrutural, a respeito da disposição espacial das casas entre os Winnebago, uma das tribos dos Grandes Lagos. A tribo é dividida em dois subgrupos (“moieties”), “os que são de cima” e “os de baixo”; quando pedimos a um indivíduo para desenhar em um pedaço de papel, ou na areia, a planta de sua aldeia (a disposição espacial das cottages), obtemos duas respostas completamente diferentes, dependendo do subgrupo ao qual o respondente pertença.  Ambos percebem a aldeia como um círculo; mas para um subgrupo, há dentro desse círculo um outro de casas centrais, onde se formam então dois círculos concêntricos, enquanto que para o outro subgrupo, o círculo é dividido em dois por uma clara linha divisória. Em outras palavras, um membro do primeiro subgrupo (vamos chamá-lo de “conservador-corporativista”) percebe a planta da aldeia como um anel de casas dispostas mais ou menos simetricamente em torno do templo central, enquanto que um membro do segundo subgrupo (“antagonista-revolucionário”) percebe sua aldeia como dois montes de casas separados por uma fronteira invisível... A questão central de Lévi-Strauss é que esse exemplo não deveria de maneira alguma nos induzir a um relativismo cultural, de acordo como o qual a percepção do espaço social depende do grupo ao qual pertence o observador: a mesma divisão nas duas percepções “relativas” implica uma referência oculta a uma constante – não uma disposição das casas objetiva, “real”, mas um cerne traumático, um antagonismo fundamental que os habitantes da aldeia foram incapazes de simbolizar, explicar, “internalizar”, chegar a um acordo, uma discrepância nas relações sociais que impossibilitou a comunidade de estabilizar-se em completa harmonia. As duas percepções da planta da aldeia são simplesmente duas mutuamente excludentes tentativas de lidar com esse antagonismo traumático, curar sua ferida através da imposição de uma estrutura simbólica equilibrada. É necessário acrescentar que as coisas se passam da mesma forma para a diferença sexual: “masculino” e “feminino” são como duas configurações de casas na aldeia levistraussiana? E com o intuito de dissipar a ilusão de que nosso universo “desenvolvido” não é dominado pela mesma lógica, vamos retornar ao nosso exemplo das lutas políticas, da cisão de nosso espaço político em Esquerda e Direita: um esquerdista e um direitista comportam-se exatamente como membros dos subgrupos opostos da aldeia de Lévi-Strauss. Eles não apenas ocupam posições diferentes dentro do espaço político; cada um deles percebe diferentemente a própria disposição do espaço político – um Esquerdista percebe o campo como fundamentalmente cindido por algum antagonismo fundamental, e um Direitista como uma unidade orgânica de uma Comunidade perturbada apenas pelos estrangeiros intrometidos.
Nesse preciso sentido, diferença política (ou sexual) é o “precursor sombrio”, nunca presente, uma puramente virtual “pseudocausa”, o X que sempre (constitutivamente) “falta em seu próprio lugar” (todas as suas atualizações já são deslocadas) e, como tal, distribui as duas séries existentes (masculino e feminino na sexualidade, Direita e Esquerda na política). Nesse, Lacan defende um conceito de falo não-relacional: o significante fálico “funda a sexualidade em sua inteireza como sistema ou estrutura”: é em relação ao objeto fálico
que a variedade de termos e a variação das relações diferenciais são determinadas em cada caso /.../. Os lugares relativos dos termos na estrutura dependem primeiro do lugar absoluto de cada um, a cada momento, em relação ao objeto=x que está sempre circulando, sempre deslocado em relação a si próprio /.../. Distribuindo as diferenças através de toda a estrutura, fazendo as relações diferenciais variarem com seus deslocamentos, o objeto=x constitui o elemento de diferenciação da própria diferenciação.4

            Aqui, contudo, dever-se-ia ter cuidado para se evitar a mesma armadilha que se oculta na noção de Deleuze de “passado puro”: esse elemento fixo que, como “causa ausente”, distribui os elementos, é um elemento puramente virtual que está presente apenas em seus efeitos e é, como tal, retroativamente posto (pré-suposto) por seus efeitos; ele não tem existência substancial independente anterior a esse processo.
            Isso nos traz a dimensão da castração simbólica: o falo como significante da pura virtualidade de sentido tem que ser “um significante sem significado”: ele é nonsense, a ausência de qualquer significado determinado, representa a virtualidade do sentido puro. (Ou, para por em termos mais deleuzianos: a mesma contra-atualização, o movimento para trás da atualidade para o campo virtual que é sua condição transcendental, tem que ocorrer NA atualidade, como um deslocamento, desordem, disjunção dos elementos dentro dessa ordem.) Esse é o motivo de não ser sem sentido falar em “significante sem significado”: essa falta de significado é em si um atributo positivo, inscrito no campo do significado como um buraco aberto em seu centro. (De maneira homóloga, Judeus são a nação “fálica”, o elemento fálico entre as nações: eles são a nação sem terra, mas no sentido de que essa falta é inscrita em seu próprio ser, como a referência absoluta à terra virtual de Israel.)
            A arte “abre caminho para uma liberação-expressão absoluta e genuinamente transformativa, precisamente porque o que ela libera não é outra coisa que a própria liberação, o movimento de pura espiritualização ou desmaterialização” (Hallward, p.122): o que tem que ser liberado afinal é a própria liberação, o movimento de “desterritorializar” todas as entidades existentes. Esse movimento auto-referente é crucial – e, nesse sentido, o que o desejo deseja não é um objeto determinado, mas uma afirmação incondicional do próprio desejo (ou, como escreveu Nietzsche, a vontade mais radical é a vontade da própria vontade).
            Aí reside a definitiva ironia da crítica de Deleuze a Hegel: quando, contra Hegel, Deleuze sustenta que a criação “é imediatamente criativa; não há sujeito transcendental ou negativo de criação que requer tempo no sentido de tornar-se consciente de si ou de outro modo alcançar a si mesmo” (Hallward, p.149), ele talvez impute a Hegel uma reificação-substancialização que não há e, nesse sentido, oblitera precisamente essa dimensão em Hegel que é mais próxima de Deleuze ele mesmo. Hegel repetidamente insiste que o Espírito é “um produto de si”: não há um Sujeito pré-existente intervindo na objetividade, mediando-suprassumindo a objetividade, mas o resultado de seu próprio movimento, i.e., puro processo. Como tal, ele não necessita de tempo para “alcançar a si mesmo”, mas simplesmente para gerar a si mesmo.
            No sentido de descrever o “vidente” cego (cego para a realidade concreta, mas sensível à virtual dimensão das coisas), Deleuze recorre a uma metáfora maravilhosa, de uma aranha desprovida de olhos e ouvidos, mas infinitamente sensível a qualquer coisa que ressoe através de sua teia virtual: “Formas concretas ou constituídas escorregam pela teia e não deixam impressão, pois a teia é designada para vibrar apenas em contato com formas virtuais ou intensivas. Quanto mais efêmero ou molecular o movimento, mais intensa é sua ressonância através da teia. A teia responde aos movimentos de uma pura multiplicidade antes que ela assuma qualquer forma definida.” (Hallward, p.118)
            Quando Deleuze se refere a um processo que cria e vê em um único movimento, ele conscientemente evoca, desse modo, a fórmula da intuição intelectual, a prerrogativa do Deus solitário. Deleuze segue um programa pré-crítico, defendendo apaixonadamente o “realismo” metafísico de Espinosa e Leibniz (revelação diretamente no próprio cerne das coisas) contra a limitação “crítica” de Kant de nosso conhecimento do domínio das representações fenomenais. No entanto, a resposta de Hegel a isso poderia ter sido: e se a distância da representação, a distância que torna a coisa inacessível a nós, é inscrita no coração da própria coisa, no sentido de que a mesma lacuna que nos separa da coisa nos inclui nela – nisso está o âmago da Cristologia hegeliana, onde nossa alienação de Deus coincide com a alienação de Deus de si mesmo. Deleuze diz que proposições não descrevem coisas, mas são atualizações verbais dessas coisas, i.e., essas próprias coisas em seu modo verbal – Hegel não afirmaria, nesse sentido, que nossa re-presentação de Deus é o próprio Deus no modo de representação, que nossa percepção errada de Deus é o próprio Deus em um modo errado?
            Eis como Hallward formula o âmago da rejeição crítica de Deleuze a Hegel: “enquanto que de acordo com Hegel, qualquer suposta ‘coisa difere de si mesma porque difere primeiro de todas as coisas que ela não é’, i.e., de todos os objetos com os quais está relacionado, o Bergson de Deleuze afirma que uma ‘coisa difere de si mesma primeiro, imediatamente’, por conta da ‘força interna explosiva’ que ele carrega dentro de si.” Se alguma vez existiu um homem de palha, esse é o Hegel de Deleuze: o insight básico de Hegel não é precisamente que cada oposição externa está baseada na auto-oposição imanente das coisas, i.e., que cada diferença externa implica em autodiferença? Um ser finito difere de outras coisas (finitas) porque ele já não é idêntico a si mesmo.
            Deleuze aceita a hierarquia das mônadas leibniziana: a diferença entre as mônadas é afinal quantitativa, i.e., cada mônada é substancialmente a mesma, ela expressa o total infinito do mundo, mas com uma diferença, sempre específica, intensidade quantitativa e adequação: em um extremo – mais baixo – estão as “mônadas escuras”, as quais têm apenas uma percepção nítida, seu ódio de Deus; no outro extremo – mais alto – estão as “mônadas razoáveis” que podem abrir-se para refletir o universo inteiro. O que, em uma mônada, resiste à completa expressão de Deus é sua obstinada fixação à sua ilusão de criatura, à sua identidade (em última instância material) particular. A humanidade ocupa aqui o lugar da mais alta tensão: por um lado os humanos são, bem mais que outros seres viventes, presos na escravidão do egoísmo absoluto, obstinadamente focados na preservação da identidade de seu Self (o qual é o motivo, para Deleuze, de ser a máxima tarefa da filosofia elevar o homem acima de sua condição humana para o nível “desumano” do “super-homem” [overman]); por um lado, Deleuze concorda com Bergson de que o homem representa um avanço único e o ponto mais alto na evolução da vida - com a emergência (emergence) da consciência, um ser vivente é finalmente capaz de contornar as limitações materiais (orgânicas) e avançar para um plano puramente espiritual de unidade com o Todo divino... De um ponto de vista hegeliano, pode-se dizer que o que Deleuze falha em perceber inteiramente é o que Schelling, entre outros, viu claramente: a identidade decisiva desses dois aspectos, o mais baixo e o mais alto: é precisamente ATRAVÉS de sua obstinada fixação ao seu Self singular que um indivíduo humano é capaz de extrair-se das circunvoluções particulares da vida concreta (com seu movimento circular de geração e corrupção) e entrar em relação com a eternidade virtual. Isso é porque (na medida em que o outro nome para essa obstinação egoísta é Mal) o Mal é uma é uma condição formal para se ascender ao Bem: ele cria literalmente o espaço para o Bem.
            Por exemplo, na esfera social, essa é a maneira como a economia exerce seu papel de determinar a estrutura social “em última instância”: a economia nesse papel nunca está diretamente presente como um agente causal tangível, sua presença é puramente virtual, ela é a “pseudocausa” social, mas, precisamente como tal, absoluta, não relacional, a causa ausente, algo que nunca “está em seu próprio lugar”: “isso é porque o ‘econômico’ nunca é dado, propriamente falando, mas designa, ao contrário uma virtualidade diferencial a ser interpretada, sempre recoberto por suas formas de atualização” (DR, p.186). Isto é o X ausente que circula entre as múltiplas séries do campo social (econômica, política, ideológica, legal...), distribuindo-as em sua articulação específica. Poder-se-ia então insistir na diferença radical entre o econômico como esse X virtual, o ponto de referência absoluto do campo social, e o econômico em sua efetividade, como um dos elementos (“sub-sistemas”) da totalidade social efetiva: quando eles se encontram, i.e., colocando as coisas em termos hegelianos, quando o econômico virtual encontra a si mesmo sob o disfarce de sua efetiva contraparte em sua “determinação oposta”, sua identidade coincide com a (auto)contradição absoluta.
            Isso nos traz o paradoxo central do pensamento de Deleuze: talvez a mais sucinta definição de sua filosofia seria a de um “espinosismo fitchiano” – e poderíamos tão somente ter em mente que Fitche foi (ele mesmo percebendo-se dessa forma) o absoluto antiespinosista.  Na noção de Deleuze de pura Vida como fluxo de criatividade virtual, a substância de Espinosa como causa sui coincide com o autoposicionamento do puro Eu absoluto fitchiano:
O conceito coloca-se a si mesmo na medida em que é criado. O que depende de uma atividade criativa livre é também o que, independentemente e necessariamente, põe a si mesmo em si mesmo: o mais subjetivo será o mais objetivo. (WP, p.11)

Esse puramente virtual auto-referencial cria movimento em velocidade infinita, na medida em que o mesmo não necessita de externalidade em/através da qual mediar seu movimento de autoposicionar-se: “Velocidade infinita assim descreve um movimento que não tem mais nada a ver com movimento real, um ‘movimento ‘puramente virtual que sempre alcança seu destino, cujo movimento é ele mesmo seu próprio destino”.5

Dissolve a pseudoligação do desejo com o prazer como sua medida extrínseca. Prazer é algo que de modo algum pode ser alcançado através do desvio da dor, mas que tem que ser atrasado ao máximo na medida em que é algo que interrompe o contínuo processo do desejo positivo. Há um júbilo de desejo imanente, como se o desejo satisfizesse a si mesmo, com ele mesmo e suas contemplações, e que não implique qualquer falta, qualquer impossibilidade. (MP, p.192)

            E o mesmo vale para o amor cortês: seu eterno adiamento de completude não obedece a uma lei da falta ou a um ideal de transcendência: aqui também há um desejo em que nada falta, na medida em que ele obtém sua completude em si mesmo, em sua própria imanência; cada prazer já é, ao contrário, a re-territorialização do livre fluxo do desejo. (193) 




1 Jacques-Alain Miller, "Detached Pieces," lacanian ink 28, Fall 2007, p. 37.

2 Deleuze, Negotiations 1972-1990, New York: Columbia Univ. Press, 1997, p. 6.

3 Moshe Idel, Kabbalah: New Perspectives, New Haven: Yale Univ. Press, 1988.

4 Gilles Deleuze, Desert Islands and Other Texts, Cambridge: Semiotext(e), 2004, p. 185-6.

5 Peter Hallward, Out of This World, London: Verso, 2006, p. 142.

Um comentário:

  1. Muito obrigado pelo texto e pela tradução! No caso da citação da metáfora da teia, o (Hallward, p.118) seria de um apud do Deleuze?


    Parabéns pelo Blog, adicionarei em meus favoritos!

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