terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Platonismo de Deleuze: Idéias como o Real por Slavoj Zizek

Platonismo de Deleuze: Idéias como o Real
Slavoj Zizek
Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Relembrando a velha estratégia católica para salvar o homem da tentação da carne: quando estiver diante de um voluptuoso corpo feminino, imagine como ele será em algumas décadas: a pele seca, seios caídos... (Ou, ainda melhor, imagine o que está sob a pele: carne crua e ossos, fluidos internos, comida semidigerida e excrementos...). Longe de realizar um retorno ao real destinado a quebrar o encanto imaginário do corpo, tal procedimento equivale a uma fuga do Real, o Real anunciando a si mesmo na aparência sedutora do corpo nu. Quer dizer, na oposição entre a aparência espectral do corpo e o corpo repulsivo em decadência, a aparência espectral é o Real, e o corpo decadente, a realidade – nós recorremos ao corpo decadente com o intuito de evitar a fascinação mortífera do Real que ameaça arrastar-nos para dentro de seu vórtice de jouissance.

Um Platonismo “cru” poderia reivindicar aqui que apenas o corpo belo materializa inteiramente a Idéia, e que um corpo em sua decadência material simplesmente não coincide com sua Idéia, não é mais sua cópia fiel. De uma perspectiva deleuziana (e, aqui, lacaniana), ao contrário, o espectro que nos atrai é a idéia do corpo como Real. Esse corpo não é o corpo de fato, mas o corpo virtual no sentido deleuziano do termo: o incorpóreo/imaterial corpo de puras intensidades.
O mais radical argumento anti-hegeliano de Deleuze diz respeito à pura diferença: Hegel é incapaz de pensar a pura diferença que está fora do horizonte da identidade/contradição; Hegel concebe uma diferença radicalizada como contradição que, então, através de sua resolução dialética é de novo subsumida na identidade. (Aqui, Deleuze se opõe também a Derrida, o qual, sob sua perspectiva, permanece preso no círculo vicioso da contradição/identidade, meramente adiando a resolução indefinidamente.) E na medida em que Hegel é o filósofo da atualidade/atualização, na medida em que, para ele, a “verdade” de uma potencialidade é revelada em sua atualização, a incapacidade de Hegel para pensar a pura diferença se iguala a sua incapacidade para pensar o virtual em sua própria dimensão, como uma possibilidade que, qua possibilidade, possui sua própria realidade: a pura diferença não é efetiva, não concerne a propriedades diferentes efetivas de uma coisa, ou entre duas coisas, seu status é puramente virtual, é uma diferença que se realiza em sua pureza precisamente quando nada muda na realidade, quando, realmente, a MESMA coisa repete a si mesma. – De fato, pode parecer que é apenas Deleuze quem formula o verdadeiro programa pós-hegeliano de pensar a diferença: a “inauguração” derridiana que enfatiza a diferença contínua, a disseminação que não pode nunca ser suprassumida/reapropriada, etc., permanece dentro da construção hegeliana, meramente “inaugurando-a”...

Mas, aqui, o contra-argumento hegeliano poderia ter sido: a diferença virtual pura não é um outro nome para a efetiva auto-identidade? Não é CONSTITUTIVA da efetiva identidade? Mais precisamente, nos termos do empirismo transcendental de Deleuze, diferença pura é o suporte/condição virtual da efetiva identidade: uma entidade é percebida como “(auto-)
idêntica” quando (e apenas quando) seu suporte virtual é reduzido a uma pura diferença. Em lacanês, a pura diferença concerne ao suplemento do objeto virtual (o objeto a de Lacan); sua experiência mais plástica é a de uma súbita mudança em (nossa percepção de) um objeto que, com relação às suas qualidades positivas, permanece o mesmo: “Ainda que nada mude, a coisa parece, subitamente, totalmente diferente” – como Deleuze poderia dizer, é a intensidade da coisa que muda. (Para Lacan, o problema/tarefa aqui é distinguir entre o Significante Mestre e o objet a, pois ambos se referem ao X abissal no objeto por trás de suas propriedades positivas.) Como tal, a pura diferença está mais próxima do antagonismo do que da diferença entre dois grupos sociais positivos onde um deles deve ser aniquilado. O universalismo que sustenta uma luta antagonística não é exclusivo de nenhum deles, motivo pelo qual o mais alto triunfo da luta antagonística não é a destruição do inimigo, mas a explosão da “irmandade universal”, na qual os agentes dos campos opostos mudam de lado e se unem (relembremos as proverbiais cenas da polícia ou unidades militares unindo-se aos demonstrators). É tal a explosão de uma entusiástica irmandade inclusiva que a diferença entre “nós” e o “inimigo” como agentes efetivos é reduzida a uma PURA diferença formal.

Isso nos introduz ao tópico da diferença, repetição, e mudança (no sentido de ascender a algo realmente novo). A tese de Deleuze de acordo com a qual o Novo e a repetição não são opostos, i.e., de que o Novo resulta apenas da repetição, deve ser lida contra o pano de fundo da diferença entre o Virtual e o Efetivo. Colocando diretamente: mudanças que concernem apenas ao aspecto efetivo das coisas são apenas mudanças dentro da moldura existente, não a emergência [emergence] de algo realmente Novo – o Novo emerge quando o suporte virtual do Efetivo muda, e essa mudança ocorre precisamente sob a aparência da repetição na qual uma coisa permanece a mesma em sua efetividade. Em outras palavras, coisas realmente mudam, não quando a se transforma em B, mas, enquanto A permanece exatamente o mesmo em relação às suas propriedades efetivas, imperceptivelmente ele “muda totalmente”...

O Real Lacaniano, em sua oposição ao Simbólico, não tem nada, em absoluto, a ver com o tema empirista padrão (ou fenomenológico, ou historicista, Lebensphilosophie, por essa razão) da abundância de realidade que resiste às estruturas formais, que não pode ser reduzida às suas determinações conceituais – a linguagem é cinza, a realidade é verde… O Real Lacaniano é, ao contrário, ainda mais “reducionista” do que qualquer estrutura simbólica: nós o tocamos quando subtraímos de um campo simbólico toda a abundância de suas diferenças, reduzindo-o a um mínimo de antagonismo. O próprio Lacan não está livre de reprovação, na medida em que às vezes ele é seduzido pela rizomática abundância de linguagem além (ou, mais exatamente, abaixo) da estrutura formal que a sustenta. É nesse sentido que, na última década de seu ensino, ele empregou a noção de lalangue (ás vezes simplesmente traduzido como “alíngua”) que representa a linguagem como o espaço de prazeres ilícitos que desafiam qualquer normatividade: a caótica multidão de homonímias, jogos de palavras, ligações metafóricas “irregulares” e ressonâncias... Produtiva como é essa noção, deve-se estar, contudo, ciente de suas limitações. Muitos comentadores notaram que a última grande interpretação literária de Lacan, dedicada a
Joyce em seu recentemente lançado seminário (XXIII Le sinthome1), não está no mesmo nível de suas grandes leituras anteriores (Hamlet, Antígona, Trilogia Coufontaine de Claudel). Há efetivamente algo falso na fascinação de Lacan com o último Joyce, com Finnegan’s Wake como a última versão da Gesamtkunstwerk literária com sua riqueza de alíngua na qual não apenas a fissura entre linguagens singulares, mas a mesma fissura entre significado lingüístico e jouissance parece triunfar, e o rizoma como jouis-sense (gozo-no-sentido: goza-o-sentido) prolifera em todas as direções. A verdadeira contraparte de Joyce é, claro, Samuel Becket: depois de seu período inicial no qual ele mais ou menos escreveu algumas variações de Joyce, o “verdadeiro” Becket constituiu-se através de um verdadeiro ato ético, de um CORTE, uma rejeição da abundância joyceana de goza-o-sentido, e do ascético retorno em direção à “diferença mínima”, em direção à minimalização, “subtração”, do conteúdo narrativo e da própria linguagem (essa linha é mais claramente discernível em sua obra prima, a trilogia Molloy - Malone Dies - L'innomable. O que é então a “diferença mínima” – a pura fissura em paralaxe – que sustenta a produção da maturidade de Becket? Pode-se ser tentado em propor a tese de que é a mesma diferença entre o francês e o inglês: como se sabe, Becket escreveu mais em francês em sua maturidade (que não é sua língua materna) e, desesperado com a baixa qualidade das traduções, ele mesmo traduziu para o inglês, e essas traduções não são meras traduções literais, mas são, efetivamente, textos diferentes.

É por causa de seu “minimalista” – puramente formal e insubstancial – status de Real que, para Lacan, a repetição precede a repressão – ou, como colocou sucintamente Deleuze: “Nós não repetimos porque reprimimos, mas reprimimos porque repetimos”.(DR –105) Não é que, primeiro, reprimimos algum conteúdo traumático e, então, uma vez que somos incapazes de rememorá-lo e então elucidar nossa relação com ele, esse conteúdo continua a nos perseguir, repetindo a si mesmo em suas formas disfarçadas. Se o Real é uma diferença mínima, então a repetição (que estabelece essa diferença) é primordial; a primazia da repressão emerge com a “reificação” do Real dentro de uma Coisa que resiste à simbolização – só então, de acordo com o que dissemos, o Real insiste e repete a si mesmo.

A conseqüência disso é também a inversão na relação entre repetição e lembrança. A famosa máxima de Freud “o que nós não lembramos, estamos compelidos a repetir” deveria ser invertida: o que nós somos incapazes de repetir, nos persegue e nos compele a memorizar. O caminho para livrar-se de um trauma passado não é rememora-lo, mas REPETI-LO inteiramente, no sentido kierkegaardiano. O que é a “pura diferença” deleuziana em sua pureza, se podemos colocar assim, de maneira tautológica? É a diferença puramente virtual de uma entidade que repete a si mesma como totalmente idêntica em relação a suas propriedades efetivas: “há diferenças significativas nas intensidades virtuais exprimidas em nossas sensações efetivas. Essas diferenças não correspondem a diferenças reconhecíveis tangíveis. Que a nuance de rosa tenha mudado de uma maneira identificável não é muito importante. É que a mudança é um sinal de um rearranjo de uma infinidade de outras relações efetivas e virtuais.”2 Não é como uma pura diferença o que ocorre na repetição da mesma linha melódica efetiva no “Humoresque” de Robert Schumann? Essa peça deve ser lida contra o pano de fundo da gradual perda da voz nas canções de Schumann: não é uma simples
peça para piano, mas uma canção sem a linha vocal, com a linha vocal reduzida ao silêncio, no sentido em que o que efetivamente escutamos é o acompanhamento do piano. Essa é maneira como poderíamos ler a “voz interior/innere Stimme/” adicionada por Schumann (na partitura) como uma terceira linha entre as duas linhas de piano, a mais alta e a mais baixa: como uma linha melódica vocal que permanece uma “voz interior” não vocalizada (que existe apenas como Augenmusik, música para os olhos apenas sob a forma de notas escritas). Essa melodia ausente deve ser reconstruída baseada no fato de que o primeiro e terceiro níveis (as partes do piano das mãos esquerda e direita) não estão relacionadas uma com a outra diretamente, i.e., a relação entre elas não é a de um espelhamento imediato: para dar conta de sua conexão, fica-se então compelido a (re)construir uma terceira linha, nível intermediário “virtual” (linha melódica) que, por razões estruturais, não pode ser tocado. Schumann introduz esse procedimento de melodia ausente em uma aparentemente absurda auto-referência quando, mais tarde, no mesmo fragmento de Humoresque, ele repete as mesmas duas linhas melódicas de fato tocadas, contudo, desta vez, a partitura não contém a terceira linha melódica ausente, a voz interior – o que está ausente aqui é a melodia ausente, i.e., a própria ausência. Como tocamos essas notas se, no plano do que é efetivamente tocado, as mesmas notas tocadas anteriormente são repetidas? As notas realmente tocadas são desprovidas apenas do que não está lá, de sua falta constitutiva, ou, em referência à Bíblia, eles perdem mesmo o que nunca tiveram. O verdadeiro pianista poderia ter então o savoir-faire de tocar as notas existentes de tal maneira que se pudesse ser capaz de discernir o eco de notas virtuais do acompanhamento “silencioso” não tocado ou sua ausência... Isto, então é a pura diferença: o nada-efetivo, o fundo virtual que justifica a diferença das duas linhas melódicas.

A lógica da diferença virtual pode também ser discernida em outro paradoxo, nomeadamente a anteriormente mencionada versão para o cinema de Billy Bathgate é basicamente um fracasso, mas interessante: um fracasso que, no entanto, evoca no espectador o espectro do romance muito melhor. Contudo, quando se lê o romance no qual o filme é baseado, fica-se desapontado – NÃO é este o romance que o filme evoca como padrão em relação ao qual ele fracassa. A repetição (de um romance malogrado em um filme malogrado) origina um terceiro elemento, puramente virtual, o melhor romance. Este é um caso exemplar do que dispõe Deleuze nas páginas cruciais de Diferença e Repetição:

Enquanto pode parecer que os dois presentes são sucessivos, na variável distância, à parte na série de reais, de fato eles formam, mais exatamente, duas séries reais que coexistem em relação a um objeto virtual de outro tipo, que constantemente circula e é neles deslocado /.../ A Repetição é constituída não de um presente a outro, mas entre duas séries coexistentes que esses presentes formam em função do objeto virtual (objeto = x). (DR-104-105)

Em relação a Billy Bathgate, o filme não “repete” o romance no qual é baseado; por melhor dizer, ambos “repetem” o não repetível x virtual, o “verdadeiro” romance cujo espectro é engendrado na passagem do romance efetivo para o filme. Esse virtual ponto de referência, embora “irreal” é, num certo sentido, mais real do que a realidade: é o ponto de referência ABSOLUTO das tentativas reais fracassadas. Esse é o modo, na perspectiva da teologia materialista, como o divino emerge da repetição de elementos materiais terrestres, como sua “causa” retroativamente posta por eles. Deleuze está certo em referir-se a Lacan aqui: esse “melhor livro” é o que Lacan chama de objet petit a, o objeto-causa do desejo que “não se pode recapturar no presente, exceto através de suas conseqüências”, os dois livros realmente existentes.

O movimento subjacente aqui é mais complexo do que pode parecer. Não é que devêssemos simplesmente conceber o ponto de partida (o romance) como uma “obra aberta”, plena de possibilidades que podem ser desdobradas posteriormente, atualizada em versões posteriores; ou – ainda pior – que devêssemos conceber a obra original como pré-texto que pode depois ser incorporados em outros com-textos, e conferindo assim um sentido totalmente diferente da obra original. O que se perde aqui é o movimento retroativo, de trás pra frente, movimento que foi descrito pela primeira vez por Henri Bergson, uma referência chave para Deleuze. Em seu “Duas Fontes de Moralidade e Religião”, Bergson descreve as estranhas sensações que ele experimentou em 4 de agosto de 1914, quando foi declarada guerra entre França e Alemanha: “Apesar de minha perturbação, e embora uma guerra, ainda que vitoriosa, me parecia uma catástrofe, eu experimentei o que [William] James disse a respeito, um sentimento de admiração pela facilidade da passagem do abstrato para o concreto: quem poderia haver pensado que tal acontecimento formidável pudesse emergir na realidade com tão pouca comoção?” 3 Crucial aqui é a modalidade de ruptura entre antes e depois: antes de sua explosão, a guerra parece a Bergson “simultaneamente provável e impossível: uma noção complexa e contraditória que persiste até o fim”4; depois de sua explosão, de uma só vez torna-se real E possível, e o paradoxo reside em sua retroativa aparência de probabilidade:

Eu nunca pretendi que se pudesse inserir a realidade no passado e então trabalhar de trás para frente no tempo. Contudo, pode-se sem sombra de dúvida inserir aí o possível, ou, por melhor dizer, em cada momento, o possível se insere aí. Na medida em que uma nova realidade, impredicável e nova cria-se a si mesma, sua imagem reflete-se a si mesma por trás de si mesma no passado indefinido: essa nova realidade encontra-se todo tempo sendo possível; mas é apenas no preciso momento de sua efetiva emergência [emergence] que ela começa a sempre ter sido, e é por isso que eu digo que sua possibilidade, que não precede sua realidade, irá precedê-la uma vez que sua realidade emerge.5

ISSO é o que ocorre no exemplo de Billy Bathgate: o filme insere posteriormente no romance a possibilidade de um romance diferente, muito melhor. E nós não encontramos uma relação similar entre o stalinismo e o leninismo? Aqui também, TRÊS momentos estão em jogo: a política de Lênin antes da tomada de poder stalinista; a política stalinista; o espectro do “leninismo” retroativamente gerado pelo stalinismo (em sua versão oficial stalinista, mas TAMBÉM na versão crítica do stalinismo, como quando no processo de “desestalinização” na União Soviética o slogan evocado era o do “retorno ao originai princípios leninistas”). Dever-se-ia, contudo, interromper
o ridículo jogo de opor o terror stalinista ao “autêntico” legado leninista traído pelo stalinismo: “leninismo” é rigorosamente uma noção stalinista. O gesto de se projetar o potencial utópico-emancipatório para trás, em um tempo anterior, sinaliza a incapacidade do pensamento em suportar a “contradição absoluta, a insuportável tensão inerente ao próprio projeto stalinista”.6 É conseqüentemente crucial distinguir “leninismo” (como o autêntico cerne do stalinismo) da efetiva prática política e a ideologia do período de Lênin: a efetiva grandeza de Lênin NÃO é equivalente ao autêntico mito do leninismo stalinista.

E a ironia é que essa lógica da repetição, elaborada por Deleuze, O anti-hegeliano, está no cerne mesmo da dialética hegeliana: ela depende de uma relação propriamente dialética entre a realidade temporal e o Absoluto eterno. O Absoluto eterno é o ponto imóvel de referência em torno do qual as figurações temporais circulam, sua pressuposição; contudo, precisamente como tal, ele é posto por essas figurações temporais, visto que ele não pré-existe a elas: ele emerge na lacuna entre o primeiro e o segundo – no caso de Billy Bathgate, entre a novela e sua repetição no filme. Ou, de volta ao Humoresque de Schumann, o absoluto eterno é a terceira linha melódica não tocada, o ponto de referência das duas linhas melódicas tocadas realmente: ele é absoluto, mas um absoluto frágil – se as duas linhas são tocadas incorretamente, ele desaparece... Isto é o que se fica tentado a chamar de “teologia materialista”: sucessão temporal cria eternidade.

A noção deleuziana de signo só pode ser alcançada contra o fundo de sua redefinição do que é um problema. O senso comum nos diz que há soluções verdadeiras e falsas para todos os problemas; para Deleuze, ao contrário, não há soluções definitivas para os problemas, soluções são apenas repetidas tentando lidar com o problema, com seu real-impossível. Os próprios problemas, não as soluções, são verdadeiros ou falsos. Cada solução não apenas responde ao “seu” problema, mas retroativamente o redefine, formulando-o de dentro de seu horizonte específico. Este é o porquê de o problema ser universal e as soluções/respostas serem particulares.

Deleuze é aqui inesperadamente mais próximo de Hegel: para Hegel, por exemplo, a Idéia de Estado é um problema, e cada específica forma de estado (República antiga, monarquia feudal, democracia moderna, ...) propôs uma solução a esse problema, redefinindo o próprio problema. E, precisamente, a passagem ao próximo estágio “superior” do processo dialético ocorre quando, em vez de continuar a buscar por uma solução, nós problematizamos o próprio problema – quer dizer, quando, em vez de continuar a buscar por um “verdadeiro” Estado, nós abandonamos a própria referência ao Estado e buscamos uma existência comunal por detrás do Estado.

Problema é, então, não apenas “subjetivo”, não apenas epistemológico, um problema para o sujeito que tenta resolve-lo; ele é sticto senso ontológico, inscrito na própria coisa: a estrutura da realidade é “problemática”. Ou seja, a realidade efetiva só pode ser alcançada como séries de respostas a problemas virtuais – quer dizer, na leitura de Deleuze da biologia, o desenvolvimento dos olhos só pode ser compreendido como tentativa de solução para o problema de como lidar com a luz. E isto nos introduz ao signo – a realidade efetiva aparece como “signo” apenas quando é percebida como resposta a um problema virtual:

Nem o problema nem a questão é uma determinação subjetiva marcando um momento de insuficiência em saber. A estrutura problemática é parte dos próprios objetos, permitindo que sejam alcançados como signos (DR-63-4).

Isso explica a estranha maneira em que Deleuze opõe signos e representações: para o senso comum, uma representação mental reproduz diretamente a maneira como uma coisa é, enquanto que um signo apenas aponta em direção a ela, designando-a com um (mais ou menos) significante arbitrário. (Na representação de uma mesa, eu “vejo diretamente” uma mesa, enquanto que seu signo apenas aponta em direção à mesa.) Para Deleuze, ao contrário, representações são mediadas, enquanto que os signos são diretos, e a tarefa de um pensamento criativo é a de “fazer do próprio movimento um trabalho, sem interposições; de substituir signos diretos por representações mediadas” (DR-16).

Representações são figuras de objetos como entidades objetivas desprovidas de seu suporte/fundo virtual, e nós passamos da representação ao signo quando estamos aptos a discernir em um objeto o que aponta em direção a seu fundamento virtual, em direção ao problema em relação ao qual ele é uma resposta. Sucintamente, cada resposta é um signo de seu problema. O argumento de Deleuze contra o negativo (hegeliano) não se sustenta apenas se reduzimos o negativo à negação de uma entidade positiva pré-existente? E uma negatividade que é em si mesma positiva, benevolente, “generativa”?

Para uma Cristologia deleuziana. Como fazemos para alcançar a (muitas vezes assinalada) impassibilidade da figura de Cristo, sua “esterilidade”? E se Cristo é um Evento, no sentido deleuziano – uma ocorrência de pura individualidade sem poder próprio causal? É o porquê de Cristo sofrer, mas de uma maneira inteiramente impassível. Cristo é “individual” no sentido deleuziano: ele é um puro indivíduo, não caracterizado por propriedades positivas que poderiam fazê-lo “mais” do que um humano comum, i.e., a diferença entre Cristo e outros humanos é puramente virtual – voltando a Schumann, Cristo é, no nível da efetividade, igual aos outros humanos, apenas a “melodia virtual” não escrita que o acompanha é adicionada. E no Espírito Santo, temos essa “melodia virtual” em si mesma: o Espírito Sagrado é um campo coletivo de pura virtualidade, sem poder causal próprio. A morte e ressurreição de Cristo é a morte da pessoa efetiva que nos confronta diretamente com o (“ressurrecto”) campo virtual que o sustenta. O nome cristão para essa força virtual é “amor”: quando Cristo diz para seus aflitos seguidores que depois de sua morte “quando houver amor entre dois de vocês, eu lá estarei” ele assim afirma seu status virtual.

A repetição de Deleuze “não é um fato objetivo, mas um ato – uma forma de comportamento em direção ao que não pode ser repetido” (JW-33). Este é o porquê de que aqui a assimetria entre os dois níveis – efetividade de fatos e virtualidades de diferenças puras – é radical: não apenas a repetição de puras diferenças está na base de todas as identidades efetivas (como vimos no caso de Schumann), i.e., não apenas encontramos pura diferença virtual em sua maior pureza na identidade efetiva; mas também que “a repetição das identidades efetivas está disfarçada em cada determinada idéia de diferenças puras” (JW-28): não há diferença “pura” fora da efetividade, a esfera virtual de diferenças apenas persiste/insiste como uma sombra acompanhando as identidades efetivas e suas interações. Mais uma vez, como no caso de Billy Bathgate o espectro virtual (“Idéia”) da verdadeira novela surge apenas através da efetiva repetição da novela efetiva no filme.

O ponto de partida do “empirismo transcendental” de Deleuze é que há sempre um aspecto virtual escondido em todo objeto ou processo determinado/efetivo dado: coisas efetivas não são ontologicamente “completas”; no sentido de se ter uma visão completa deles, devemos adicionar a ele seu complemento virtual. Esse movimento de uma dada coisa efetiva para suas condições virtuais é o movimento transcendental, o desdobramento das condições transcendentais do dado. Contudo, isso não significa que o virtual de alguma maneira produza, cause, ou gere o efetivo: quando Deleuze fala sobre gênese (do efetivo fora do virtual) ele não quer dizer gênese temporal-evolutiva, o devir espaço-temporal de algo, mas uma “gênese sem dinamismo, evoluindo necessariamente no elemento de uma supra-historicidade, uma gênese estática” (DR-183). Essa característica estática do campo virtual encontra sua mais radical expressão na noção de Deleuze de passado puro: não um passado no qual coisas presentes passam, mas um passado absoluto, “onde todos os eventos, incluindo aqueles que desapareceram sem deixar traços, são armazenados e relembrados como sua morte” (JW-94), um passado virtual que já contém também coisas que são ainda presentes (um presente pode se tornar passado porque em um sentido ele já é, ele pode perceber-se como parte do passado (“o que nós estamos fazendo agora é (terá sido) história”): “É em relação ao puro elemento do passado, entendido como passado em geral, como um passado a priori, que uma dada forma presente é reproduzível e o presente presente é capaz de refletir-se” (DR-81). Isso significa que este passado puro envolve uma meticulosa noção determinista do universo na qual tudo acontece (surge), toda disposição espaço-temporal efetiva já é parte de uma rede virtual imemorial/atemporal? Não, e por uma razão extremamente precisa: porque “o passado puro deve ser todo o passado, mas deve ser também aberto a mudança através do acontecimento de cada presente novo” (JW-96). Não foi outro se não T.S. Eliot, este grande conservador, quem primeiro formulou claramente essa ligação entre nossa dependência da tradição e nosso poder de mudar o passado: tradição

não pode ser herdada, e se você a quer, deve obtê-la através de um grande labor. Isso envolve, em primeiro lugar, o senso histórico, que podemos considerar praticamente indispensável para qualquer um que continuasse a ser poeta após seus vinte e cinco anos; e o sentido histórico envolve uma percepção, não apenas do passado do pretérito, mas de sua presença; o sentido histórico compele um homem a escrever não meramente com sua própria geração em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura da Europa desde Homero e nela toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é um sentido do atemporal bem como do temporal, e do atemporal e do temporal juntos é o que faz um escritor tradicional. E isso é, ao mesmo tempo, o que faz um escritor mais vivamente consciente de seu lugar no tempo, de sua contemporaneidade.

Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem seu completo significado sozinho. Sua significância, sua apreciação é a apreciação de sua relação com os poetas e artistas mortos. Você não pode valora-lo sozinho; você deve situa-lo, por contraste e comparação, entre os mortos. Eu me refiro a isto como um princípio de crítica estética, não meramente histórica. A necessidade que ele conformará, que ele conciliará, não é parcial; o que acontece quando uma nova obra de arte é criada é algo que acontece simultaneamente a todas as obras de arte que a precederam. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si mesmos, a qual é modificada pela introdução da nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra chegue; para a ordem persistir depois da aparição da novidade, toda a ordem existente deve ser, ainda que ligeiramente, alterada; e então as relações, proporções, valores de cada obra de arte diante do todo são reajustados; e isto é conformidade entre o velho e o novo. Quem quer que tenha aprovado essa idéia de ordem, da forma da literatura inglesa, da literatura européia, não considerará ridículo que o passado fosse alterado pelo presente tanto quanto o presente é direcionado pelo passado. E o poeta que é ciente disso deverá estar ciente das dificuldades e responsabilidades.

O que acontece é uma contínua abdicação de si mesmo quando ele agora se vê diante de algo que é mais valioso. O progresso de um artista é um auto-sacrifício contínuo, uma contínua extinção da personalidade. Resta aqui definir este processo de despersonalização e sua relação com o senso de tradição. É nessa despersonalização que pode-se dizer que a arte se aproxima da condição da ciência.7

Quando Eliot escreve que, quando julgar um poeta vivo, “você deve situá-lo entre os mortos”, ele formula precisamente um exemplo do passado puro de Deleuze. E quando ele escreve que “a ordem existente é completa antes que o novo chegue; para a ordem persistir depois da aparição da novidade, toda a ordem existente deve ser, ainda que ligeiramente, alterada; e então as relações, proporções, valores de cada obra de arte diante do todo são reajustados”, ele não menos claramente formula a ligação paradoxal entre a completude do passado e nossa capacidade para mudá-lo retroativamente: precisamente porque o passado puro é completo, cada novo trabalho re-arranja todo o seu balanço. Retomemos a precisa formulação de Borges da relação entre Kafka e a multidão de seus precursores, dos velhos autores chineses a Robert Browning: “a idiossincrasia de Kafka, em maior ou menor grau, está presente em cada um destes autores, mas se Kafka não tivesse escrito nós não perceberíamos isso; quer dizer, isso não existiria. /.../ cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa percepção do passado, bem como modificará o futuro”8. A solução propriamente dialética para o dilema do “Isto está realmente aí, na fonte, ou nós é que lemos como se estivesse na fonte?”, é, então: Isto está aí, mas nós só podemos perceber e estabelecer isto retroativamente, pela perspectiva atual.

Aqui, Peter Hallward erra o alvo em seu de outro modo excelente Out of This World, onde ele acentua apenas o aspecto do passado puro como o campo virtual em que o fato de que todos os eventos estão selados antecipadamente, desde que nele “tudo já está escrito”. Neste ponto onde vemos a realidade sub specie aeternitatis, a liberdade absoluta coincide com a necessidade absoluta e seu automatismo puro: ser livre significa fluir na/com a necessidade substancial. Este tópico reverbera hoje ainda no atual debate cognitivista sobre o problema do livre arbítrio. Conciliadores como Daniel Dennett têm uma elegante solução para as reclamações não conciliadoras sobre determinismo (ver, de Dennett, Freedom Evolves): quando não conciliadores protestam que nossa liberdade não pode ser combinada com o fato de que todos os nossos atos são parte da grande cadeia de determinismo natural, eles secretamente fazem uma injustificada suposição ontológica: primeiro, eles assumem que nós (o Self, o agente livre) nos situamos FORA da realidade, e então reclamam que se sentem oprimidos pela noção de que a realidade com seu determinismo os controla totalmente. Isto é o que está errado com a noção de que nosso ser está “aprisionado” pela cadeia do determinismo natural: nós assim ofuscamos o fato de que somos PARTE da realidade, que o conflito (possível, local) entre nosso “livre” esforço e a realidade externa resistindo a ele é um conflito inerente à própria realidade. Quer dizer, não há nada “opressivo” ou “constritivo” em relação ao fato de que nossos mais profundos esforços são (pré)determinados: quando nos sentimos frustrados em nossa liberdade pela pressão constritiva da realidade externa, deve haver algo em nós, alguns desejos, esforços, que são assim frustrados, e de onde poderiam vir esses esforços senão da própria realidade? Nosso “livre arbítrio”, de alguma maneira misteriosa, não “perturba o curso natural das coisas” ele é parte e parcela deste curso. Para sermos “verdadeiramente” e “radicalmente” livres, isso poderia requerer que não houvesse conteúdos positivos que quiséssemos impor como nossos atos livres – se não queremos nada “externo” e particular/dado para determinar nosso comportamento, então “isso envolveria ser livre de cada parte de nós mesmos” (Fearn 24). Quando um determinista clama que nossa livre escolha é “determinada”, não significa que nosso livre arbítrio é restringido, que nós somos forçados a agir CONTRA nosso livre arbítrio – o que é “determinada” é a mesma coisa que queremos fazer “livremente”, i.e., sem sermos frustrados pelos obstáculos externos. Assim, Voltando a Hallward: Enquanto ele está certo em enfatizar que, para Deleuze, liberdade “não diz respeito à liberdade humana, mas à libertação da humanidade” (139), de submergir inteiramente no fluxo criativo da Vida absoluta, sua conclusão política é demasiado prematura:

A imediata implicação política de tal posição /.../ é suficientemente clara: na medida em que um modo livre ou uma mônada é simplesmente alguém que eliminou sua resistência ao bem soberano que funciona através dela, segue-se então que o mais absoluto poder soberano, os mais livres são aqueles assujeitados a ele. (139)

Mas Hallward não ignora o movimento retroativo sobre o qual Deleuze também insiste, i.e., como esse eterno passado puro que nos determina inteiramente é ele mesmo assujeitado à mudança retroativa? Nós somos então simultaneamente mais livres e menos livres do que pensamos: nós somos inteiramente passivos, determinados por e dependentes do passado, mas temos a liberdade de definir o escopo dessa determinação, i.e., (sobre)determinar o passado que nos determinará. Deleuze é aqui inesperadamente próximo de Kant, para quem Eu sou determinado por causas, mas eu (posso) retroativamente determinar que causas irão me determinar: nós, sujeitos, somos passivamente afetados por objetos patológicos e motivações; mas, de uma maneira reflexiva, nós mesmos temos o poder mínimo para aceitar (ou rejeitar) sermos afetados dessa maneira, i.e., nós retroativamente determinamos as causas que têm permissão de nos determinar ou, ao menos, a MANEIRA dessa determinação linear. A “liberdade” é então inerentemente retroativa: de maneira mais elementar, não é simplesmente um ato livre que, vindo de nenhuma parte, inicia uma nova ligação causal, mas um ato retroativo de aprovação cuja ligação/seqüência irá me determinar. Aqui, poder-se-ia adicionar a guinada hegeliana para Spinoza: liberdade não é simplesmente “necessidade conhecida/reconhecida”, mas necessidade reconhecida/assumida, a necessidade constituída/atualizada através desta recognição. Então, quando Deleuze se refere à descrição de Proust da música de Vinteuil que obseda Swann – “como se os músicos não tivessem tocado a pequena frase, mas executado os ritos necessários para que ela aparecesse” –, ele está evocando a ilusão necessária: gerando o sentido-evento experimentado como evocação ritualística de um evento pré-existente, como se o acontecimento já estivesse aí, esperando por nosso chamado em sua presença virtual.

O que ressoa diretamente neste tópico é, claro, o motivo protestante da predestinação: longe de ser um motivo teológico reacionário, a predestinação é um elemento chave da teoria materialista do sentido, com a condição de ser lido ao longo do que escreveu Deleuze sobre a oposição do virtual e do real. Quer dizer, predestinação não significa que nosso destino está selado em um texto que existe desde a eternidade na mente divina; a textura que nos predestina a pertencer ao eterno passado puramente virtual, como tal, pode ser retroativamente reescrita por nossos atos. Isto, talvez, fosse o sentido último da singularidade da encarnação de Cristo: este é um ATO que muda radicalmente nosso destino. Antes de Cristo, nós éramos determinados pelo destino, apanhados no ciclo do pecado e de seu pagamento, enquanto que o apagamento de Cristo de nossos pecados passados significa precisamente que seu sacrifício muda nosso passado virtual e nos liberta. Quando Deleuze escreve que minha ferida, eu nasci para incorporá-la, não é uma variação do tema do Gato de Cheshire e seu sorriso em Alice no país das maravilhas (o gato nasce para incorporar seu sorriso) não oferece uma fórmula perfeita para o sacrifício de Cristo: Cristo nasceu para incorporar sua ferida, ser crucificado? O problema é a leitura literal desta proposição: como se as condutas efetivas de uma pessoa meramente atualizassem seu destino eterno-atemporal inscrito em sua idéia virtual:

A única verdadeira tarefa de César é tornar-se merecedor dos eventos que ele foi criado para incorporar. Amor fati. O que César efetivamente faz não adiciona nada ao que ele virtualmente é. Quando César efetivamente cruza o Rubicão isso não envolve deliberação ou escolha na medida em que é parte da inteira, imediata expressão de cesaridade, seu simples desenrolar ou desdobrar algo que foi envolvido por todos os tempos na noção de César. (Hallward, 54)

No entanto, e a retroatividade de um gesto que (re)constitui seu próprio passado? Esta, talvez, seja a mais sucinta definição do que é um autêntico ATO: em nossa atividade comum, nós efetivamente apenas seguimos as (fantasmáticas-virtuais) coordenadas de nossa identidade, enquanto que um ato propriamente é o paradoxo de um movimento efetivo que (retroativamente) muda as mesmas coordenadas virtuais transcendentais de seu agente – ou, em termos freudianos, que não muda apenas a realidade de nosso mundo, mas também “movimenta seu subterrâneo”. Temos, então, um tipo de reflexivo “desdobramento para trás da condição sobre o dado que foi a própria condição para ele” (JW-109): enquanto que o passado puro é a condição transcendental para nossos atos, nossos atos não apenas criam a nova realidade efetiva, eles retroativamente também mudam esta mesma condição. Isto nos introduz ao problema central da ontologia de Deleuze: como o virtual e o efetivo se relacionam? “Coisas efetivas expressam idéias, mas não são causadas por elas.” (JW-200) A noção de causalidade é limitada à interação de coisas e processos efetivos; por outro lado, esta interação também causa entidades virtuais (sentido, Idéias): Deleuze não é um idealista, Sentido é sempre para ele uma sombra ineficaz estéril acompanhando coisas efetivas. O que isso significa é que, para Deleuze, gênese (transcendental) e causalidade são totalmente opostos: eles se movem em níveis diferentes.

Coisas reais têm uma identidade, mas as virtuais não têm, elas são variações puras. Uma coisa real deve mudar – tornar-se algo diferente – no sentido de expressar algo. Enquanto que a coisa virtual expressada não muda – apenas sua relação com outras coisas virtuais, outras intensidades e idéias mudam. (JW-200)

Como essa relação muda? Apenas através de mudanças em coisas reais que expressam idéias, desde que todo o poder generativo se encontra em coisas reais: Idéias pertencem ao domínio do Sentido que é “apenas um vapor que atua no limite entre as coisas e as palavras”; em si, o Sentido é “o Ineficaz, um incorporal estéril desprovido de seus poderes generativos” (DR-156). Pense sobre um grupo de indivíduos dedicados lutando pela Idéia de Comunismo: para compreender sua atividade, temos que levar em conta a Idéia virtual. Mas essa idéia é em si mesma estéril, sem causalidade própria: toda a causalidade reside nos indivíduos que a “expressam”.

A essência da crítica de Deleuze a Aristóteles, da noção de diferença específica, é que ele privilegiou a diferença para a identidade: diferença específica sempre pressupõe a identidade de um gênero em que espécies opostas co-existem. No entanto, e a “complicação hegeliana” aqui? EEE a diferença específica que define o próprio gênero, uma diferença de espécies que coincide com a diferença entre genus e species, reduzindo então o genus a uma de suas species?

Corpos sem órgãos, órgãos sem corpo: como Deleuze enfatiza, o que ele está combatendo não são os órgãos, mas o ORGANISMO, a articulação de um corpo dentro de uma totalidade de órgãos harmoniosa-hierárquica, cada
“qual em seu lugar”, com sua função: “o CsO não é de forma algum o contrário s órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. Seu inimigo é o organismo”9. Ele está combatendo o corporativismo/organicismo. Para ele, a substância de Spinoza é o derradeiro CsO: o espaço não-hierárquico no qual uma multidão caótica (de órgãos?), todos iguais (univocidade do ser), flutuam... Contudo, uma escolha estratégica é feita aqui: por que CsO, por que não (também) OsC? Por que não o Corpo como o espaço no qual órgãos autônomos livremente flutuam? É porque “órgãos” evocam uma função dentro de um Todo mais vasto, subordinação a um objetivo? Mas esse mesmo fato não faz sua autonomização, OsC, especialmente subversiva?

NOTAS:

1 Le Séminaire de Jacques Lacan, Livre XXIII: Le sinthome, Paris: Editions du Seuil, 2005.

2 James Williams, Gilles Deleuzeʹs Difference and Repetition: a Critical Introduction and Guide, Edinburgh: Edinburgh Univ. Press, 2003, p. 27.

3 Henri Bergson, OEuvres, Paris: PUF, 1991, p. 1110‐1111.

4 Bergson, ibid.

5 Bergson, ibid.

6 Um dos muitos historiadores capazes de confrontar esta excruciante tensão é Sheila Fitzpatrick que identificou que o ano de 128 foi um momento crítico devastador, uma verdadeira segunda revolução, não um tipo de “Termidor”, mas, sobretudo, a subseqüente radicalização da Revolução de Outubro. Ver Stalinism. New Directions, ed. by Sheila Fitzpatrick, London: Routledge, 2001.

7 T.S. Eliot, ʺTradition and the Individual Talent,ʺ originally published in The Sacred Wood: Essays on Poetry and Criticism, (1922).

8 Jorge Luis Borges, Other Inquisitions: 1937‐52, New York: Washington Square Press, 1966, p. 113.

9 Gilles Deleuze ‐ Felix Guattari, Mille plateaux, Paris: Les editions de Minuit, 1980, p. 196.

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