Amor impiedoso da morte
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira
A falsidade do sacrifício
O que é, então, o sacrifício? O que nele é falso a priori? Em sua forma mais elementar, o sacrifício se baseia na noção de troca: eu ofereço ao Outro alguma coisa preciosa para mim a fim de obter do Outro alguma coisa ainda mais vital para mim (as tribos “primitivas” sacrificam animais ou mesmo seres humanos de modo que os Deuses os recompensem com chuvas suficientes, vitória militar, etc.) O próximo nível, já mais intrincado, é conceber o sacrifício como um gesto que não almeja diretamente alguma troca lucrativa com o Outro para quem nós sacrificamos: seu objetivo mais básico é, antes, assegurar que HÁ um Outro lá fora que é capaz de responder (ou não) a nossas súplicas sacrificais. Ainda que o Outro não conceda meu desejo, eu posso ao menos assegurar-me de que HÁ um Outro que, talvez da próxima vez, responda de forma diferente: o mundo lá fora, inclusive todas as catástrofes que podem se abater sobre mim, não é uma maquinaria cega sem sentido, mas um parceiro em um possível diálogo, de maneira que mesmo um resultado catastrófico deve ser lido como uma resposta significativa, não como um reino do acaso cego... Lacan aqui vai um passo além: a noção de sacrifício usualmente associada com a psicanálise lacaniana é a de um gesto que representa o repúdio à impotência do grande Outro: em sua forma mais elementar, o sujeito não oferece seu sacrifício para obter lucro para si mesmo, mas para preencher a falta no Outro, pára sustentar a aparência de onipotência do Outro ou, ao menos, sua consistência. Relembremos Beau Geste, o clássico melodrama de aventura de 1938, no qual o mais velho de três irmãos (Gary Cooper) que vivem com sua benevolente tia, no que parece ser um gesto de ingratidão e excessiva crueldade, rouba o colar de diamantes extremamente caro que é o orgulho da família de sua tia, e lhe dá sumiço, sabendo que sua reputação estará arruinada, e que ele irá para sempre ser conhecido como o ingrato ladrão de sua benfeitora – por que ele fez isso, então? No final do filme, ficamos sabendo que ele fez isso a fim de evitar a embaraçosa revelação de que o colar era falso: ele sabia, sem que os outros soubessem, que a tia, havia algum tempo, vendera o colar a um rico marajá para salvar a família da falência, e que o substituíra por uma imitação sem valor. Pouco antes de seu “roubo”, ele soube que um tio distante que era co-proprietário do colar queria vendê-lo para obter ganho financeiro; se o colar fosse vendido, o fato de que era falso indubitavelmente viria à tona, assim, a única maneira para conservar a honra de sua tia e, portanto da família, seria encenar seu roubo... Esta é a decepção oportuna do crime de roubo: ocluir o fato de que, em última instância, NÃO HÁ NADA PARA ROUBAR – desta forma, a falta constitutiva do Outro é ocultada, i.e., a ilusão de que o Outro possuía o que lhe foi roubado é mantida. Se no amor dá-se o que não se possui, em um crime de amor rouba-se do Outro amado o que o Outro não possui... a isso alude o “beau geste” do título do filme.[i] E aí reside também o sentido do sacrifício: nos sacrificamos (nosso futuro e nossa honra em respeito à sociedade) para manter a aparência de honra do Outro, para salvar o Outro amado da vergonha.
No entanto, a rejeição de Lacan do sacrifício como inautêntico situa a falsidade do gesto sacrifical em outra dimensão, muito mais estranha. Tomemos o exemplo de Enigma (1981) de Jeannot Szwarc, uma das melhores variações no que é indiscutivelmente a matriz básica dos thrillers de espionagem da guerra fria com pretensões artísticas, à maneira de John Le Carré (um agente é enviado para o frio para cumprir uma missão; quando, no território inimigo, ele é traído e capturado, percebe que foi sacrificado, i.e., que o fracasso da missão foi desde o início planejado por seus superiores a fim de alcançar o verdadeiro objetivo da operação – qual seja, manter a identidade secreta do verdadeiro infiltrado do ocidente no aparato da KGB...). Enigma conta a história de um dissidente jornalista que virou espião, que após emigrar para o ocidente é recrutado pela CIA e enviado à Alemanha Oriental para se apossar de um chip de computador codificador/decodificador que permite a quem o possui ler todos os comunicados entre o quartel-general da KGB e seus postos avançados. Contudo, pequenos sinais dizem ao espião que há algo de errado com essa missão, i.e., que os alemães e russos já haviam sido informados sobre sua chegada – o que está acontecendo, então? Trata-se de que os comunistas têm um infiltrado no quartel-general da CIA que os informou sobre essa missão secreta? Como ficamos sabendo perto do final do filme, a solução é muito mais engenhosa: a CIA já possui o chip codificador, mas, infelizmente, os russos suspeitam disso, e pararam de usar temporariamente sua rede de computadores para seus comunicados secretos. O verdadeiro alvo dessa operação era uma tentativa da CIA de convencer os russos de que não possuíam o chip: eles enviam um agente para obtê-lo e, ao mesmo tempo, deliberadamente deixam os russos saberem que há uma operação em curso para obter o chip; a CIA, claro, conta com o fato de que os russos irão prender o agente. O resultado final então será que, ao evitar a missão com sucesso, os russos ficarão convencidos de que os americanos não o possuem e que, portanto, é seguro usar suas comunicações... O aspecto trágico da história, claro, é que a falha da missão é levada em conta: a CIA quer que a missão falhe, i.e., o pobre agente dissidente é sacrificado por antecipação para o objetivo maior de convencer o oponente de que não se possui seu segredo. A estratégia aqui é encenar uma operação de busca, a fim de convencer o Outro (o inimigo) de que já não se possui o que se está procurando – em suma, finge-se uma falta, um querer, para se ocultar do Outro que já se possui o agalma, o segredo mais íntimo do Outro. Esta estrutura não está de certa forma conectada com o paradoxo básico da castração simbólica como constitutiva do desejo, no qual o objeto tem que ser perdido para que seja recuperado na proporção inversa do desejo regulado pela Lei? A castração simbólica é comumente definida como a perda de algo que nunca se possuiu, i.e., o objeto-causa do desejo é um objeto que emerge através do mesmo gesto de sua perda/retirada; contudo, o que encontramos aqui, no caso de Enigma é o avesso da estrutura de se fingir uma perda. Na medida em que o Outro da Lei simbólica proíbe a jouissance, a única maneira para o sujeito fruir é fingir que lhe falta o objeto que lhe oferece a jouissance, i.e., ocultar sua posse do olhar do Outro através da encenação do espetáculo da busca desesperada por ele. Isto também lança uma nova luz sobre o tópico do sacrifício: faz-se o sacrifício não para se obter algo do Outro, mas para enganar o Outro. E o mesmo, em um nível diferente, não vale para o assim chamado “sacrifício da mulher”, para a mulher que adota o papel de permanecer na sombra, sacrificando-se por seu marido ou por sua família? Este sacrifício não é também falso, no sentido de servir para enganar o Outro, de convencê-lo de que, através do sacrifício, a mulher não está na realidade ávida e desesperadamente tentando obter algo que lhe falta? Neste preciso sentido, sacrifício e castração não são opostos: longe de envolver a aceitação voluntária da castração, o sacrifício é a maneira mais refinada de renunciar a ela, i.e., de atuar como se efetivamente se possuísse o tesouro escondido que faz de mim um objeto de amor digno...[ii]
Em seu Seminário não publicado L’angoisse[1] (1962/1963, Lição de 5 de dezembro de 1962), Lacan enfatiza a maneira como a ansiedade histérica se relaciona com a falta fundamental no Outro, tornando-o inconsistente/barrado: um histérica percebe o vazio no Outro, sua impotência, inconsistência, falsidade, mas ele não está pronto para sacrificar a parte de si mesmo que completaria o Outro, preenchendo seu vazio – essa recusa ao sacrifício sustenta a eterna reclamação histérica de que o Outro irá de algum modo manipulá-lo e explorá-lo, usá-lo, privá-lo de seu bem mais precioso... Mais precisamente, isto não significa que o histérico repudie sua castração (ele não é um psicótico ou um pervertido, i.e., ele aceita inteiramente sua castração); ele simplesmente não quer torná-la “funcional”, colocar-se a serviço do Outro, i.e., o que ele retém disso é “transformar sua castração naquilo que falta ao Outro, quer dizer, em algo positivo que é a garantia dessa função do Outro”. (Em contraste com o histérico, o perverso prontamente assume o papel de sacrificar-se, i.e., de servir como objeto-instrumento que preenche a falta no Outro – como Lacan colocou, o perverso “se oferece lealmente a jouissance do Outro”). A falsidade do sacrifício reside em seu pressuposto subjacente, que é o que eu efetivamente possuo, tenho em mim, o ingrediente precioso cobiçado pelo Outro e que promete preencher seu vazio. Olhando com mais detalhe, a recusa histérica, claro, aparece em toda a sua ambiguidade: Eu me recuso em sacrificar o agalma em mim PORQUE NÃO HÁ NADA PARA SACRIFICAR, porque sou incapaz de preencher sua falta.[iii]
[1] N. do T.: Publicado no Brasil em 2005: LACAN, Jacques. O seminário, livro X: A angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.
[i] O interesse de Beau Geste reside também na fantasmática cena de abertura – a misteriosa fortaleza deserta na qual não há ninguém vivo, apenas soldados mortos dispostos em seus muros, um verdadeiro deserto face ao espectro do navio que vagueia sem tripulação. Perto do final, Beau Geste apresenta muito bem a mesma cena só que de dentro da fortaleza, i.e., descrevendo como essa assombrosa imagem da fortaleza com os soldados mortos foi gerada. Outro aspecto interessante é a oposição de duas comunidades: o lar da família inglesa de classe alta acolhedor dominado por uma mulher versus a totalmente masculina comunidade da Legião Estrangeira dominada pela fascinante figura do sádico, porém militarmente muito eficiente sargento russo Markoff.
[ii] A menção a le Carré está longe de ser acidental aqui: em seus grandes romances de espionagem (iniciais), ele repetidamente dispõe o mesmo cenário fundamental da interconexão entre amor e traição, i.e., de como os dois termos, longe de serem simplesmente opostos, a traição serve como a prova derradeira do amor por ele/ela. Traição por amor não é a forma derradeira de sacrifício?
[iii] Isto também nos permite responder à censura de Dominick La Capra de acordo com a qual a noção lacaniana de falta reúne dois níveis que tem que ser mantidos separados: a falta “ontológica” puramente formal constitutiva da ordem simbólica como tal, e as experiências traumáticas individuais (de maneira exemplar: o holocausto) que poderiam também NÃO ter ocorrido – catástrofes históricas particulares como o holocausto parecem ser assim “legitimadas” como fundamentadas diretamente no trauma fundamental que pertence à própria existência humana. (Ver Dominick la Capra, "Trauma, Absence, Loss," Critical Inquiry, Volume 25, Number 4 (Summer 1999), p. 696-727). Contra este mal-entendido, dever-se-ia enfatizar que a falta quasi-transcendental e os traumas particulares estão ligados de forma negativa: longe de ser a última ligação na cadeia contínua de encontros traumáticos que remontam à “castração simbólica”, as catástrofes como o holocausto são eventos contingentes (e desta forma, evitáveis) que ocorrem como o resultado final das tentativas para OFUSCAR a falta constitutiva quasi-transcendental.