quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Amor impiedoso da morte - A poupança como um pecado mortal Slavoj Žižek

 Amor impiedoso da morte
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


A poupança como um pecado mortal
Em que, então, a ruptura da modernidade existe? Qual é a lacuna ou o impasse que o mito se esforça para encobrir? Fica-se tentado a voltar à velha tradição moralista: o capitalismo se origina no pecado da poupança, da avareza – a noção freudiana há muito desacreditada do “caráter anal” e suas ligações com a acumulação capitalista recebe aqui um inesperado impulso. Em Hamlet (Ato I, Cena 2), o caráter repugnante da poupança excessiva é precisamente formulado:
Horácio: Meu Senhor, eu vim para ver o funeral de seu pai.
Hamlet: Rogo-te, não zombes de mim, colega
Penso que foi para ver o casamento de minha mãe.
Horácio: Na verdade, meu Senhor, foi logo em seguida.
Hamlet: Economia, economia, Horácio! Os assados do velório puderam ser servidos como frios na mesa nupcial.
Eu desejara topar no céu com o mais feroz dos inimigos,
Do que ter visto semelhante dia, Horácio!

      O ponto chave aqui é que “economizar” não designa apenas uma frugalidade indistinta, mas uma recusa específica a pagar o que é devido ao ritual adequado de luto: a poupança (nesse caso, o uso duplo da comida) viola o valor ritual, aquele que, de acordo com Lacan, Marx negligenciou em sua consideração sobre o valor:

Este termo /poupança/é uma advertência oportuna que, nas acomodações elaboradas pela sociedade moderna entre valores de uso e valores de troca, talvez haja algo que tenha sido negligenciado nas análises marxianas da economia, algo dominante para o pensamento de nossa época – algo cuja força e extensão nós sentimos a cada momento: valores rituais.[i]


Qual é, então, o status da poupança como um vício?[ii] Em um modo aristotélico, seria fácil situar a poupança como o oposto extremo da prodigalidade, e então, é claro, construir algum termo médio – ou seja, prudência, a arte dos gastos moderados, evitando ambos os extremos – como a verdadeira virtude. No entanto, o paradoxo do avaro é que ele realiza um excesso da própria moderação. Quer dizer, a qualificação padrão do desejo se concentra em seu caráter transgressivo: ética (em seu sentido pré-moderno de “arte de viver”) é, em última instância, a ética da moderação, de resistir ao que insta a ir além de certos limites, uma resistência contra o desejo que é por definição transgressivo – paixão sexual que me consome inteiramente, glutonaria, paixão destrutiva que não se detém nem mesmo ao assassinato... Em contraste com essa noção transgressiva de desejo, o Avaro investe com (e, portanto, com uma qualidade excessiva) o desejo da própria moderação: não gaste, economize, retenha em vez de soltar – todas as qualidades “anais” proverbiais. E é somente ESTE desejo, o próprio anti-desejo, que é desejo por excelência. O uso da noção hegeliana de gegensaetzliche Bestimmung[iii] é inteiramente justificado aqui. Marx reivindicou que na série produção-distribuição-troca-consumo, o termo produção está duplamente inscrito, ele é simultaneamente um dos termos na série e o princípio estruturante de toda a série: na produção como um dos termos da série, a produção (como princípio estruturante) “encontra a si mesma em sua determinação oposta”,[iv] como colocou Marx, usando o termo hegeliano preciso. E o mesmo vale para o desejo: há diferentes espécies de desejo (i.e., do apego excessivo que compromete o princípio do prazer); entre essas espécies, o desejo encontra “a si mesmo” em sua “determinação oposta” sob o disfarce do avaro e sua economia, o oposto mesmo do transgressivo movimento do desejo. Lacan tornou isso claro a propósito de Molière:

O objeto da fantasia, imagem e pathos, é esse outro elemento que toma o lugar do que o sujeito é simbolicamente desprovido. Então o objeto imaginário está em uma posição de condensar em si mesmo as virtudes ou a dimensão do ser e tornar-se essa verdadeira ilusão do ser /leurre de l’etre/ que Simone Weil trata quando enfoca as relações muito densas e opacas de um homem com o objeto de seu desejo: a relação do Avarento de Molière com seu cofre. Esta é a culminação do caráter de fetiche do objeto no desejo humano./.../ O caráter opaco do objeto a na fantasia imaginária determina-o em suas formas mais pronunciadas como o pólo do desejo perverso.[v]    
            Assim, se queremos discernir o mistério do desejo, nós não deveríamos nos concentrar, em relação ao amante ou ao assassino, na servidão de sua paixão, pronto a por em jogo tudo por ela, mas na atitude do avarento diante de seu cofre, o lugar secreto onde ele reúne e mantém suas posses. O mistério, claro, é que, na figura do avarento, excesso coincide com falta, poder com impotência, entesouramento avaro com a elevação do objeto à Coisa intocável/proibida que se pode apenas observar, nunca desfrutar totalmente. O avaro derradeiro não seria o Bartolo da ária "A un dottor della mia sorte" do Iº ato de Il barbiere di Siviglia  de Rossini? Sua loucura obsessiva mostra perfeitamente o fato de que ele é totalmente indiferente à perspectiva de fazer sexo com a jovem Rosina – ele quer desposá-la a fim de possuí-la e guardá-la no mesmo sentido em que um avaro possui seu cofre.[vi] Em termos mais filosóficos, o paradoxo do avaro é que ele une duas tradições éticas incompatíveis: a ética aristotélica da moderação e a ética kantiana de uma demanda incondicional que descarrila o “princípio do prazer” – o avaro eleva a própria máxima da moderação em uma demanda incondicional kantiana. A mesma adesão à regra de moderação, o mesmo ato de evitar o excesso, gera, portanto, um excesso – um gozo excedente – de si mesmo.
            O modernismo capitalista, contudo, introduz uma torção nessa lógica: o capitalista não é mais o avaro solitário que se apega a seu tesouro escondido, espiando-o em segredo quando está sozinho, atrás de seguras portas cerradas, mas o sujeito que aceita o paradoxo básico de que a única maneira de preservar e multiplicar seu tesouro é gastá-lo – a fórmula de amor de Julieta da cena do balcão (“quanto mais eu dou, mais eu tenho”)  sofre aqui uma pequena torção – esta fórmula não é a própria fórmula da empresa capitalista? Quanto mais o capitalista investe (e toma dinheiro emprestado a fim de investir), mais ele tem, de modo que, no fim das contas, temos um capitalista puramente virtual, à maneira de Donald Trump, cujo “patrimônio líquido” em dinheiro é praticamente zero ou mesmo negativo, ainda que passe por rico, por conta da perspectiva de lucros futuros. Então, de volta à “determinação oposta” hegeliana, o capitalismo, em certo sentido, gira em torno da noção de poupança como a determinação oposta (a forma da aparência) de ceder ao desejo (i.e. consumir o objeto): o gênero é aqui a avareza, enquanto que o excessivo consumo ilimitado é a própria avareza em sua forma de aparição (determinação oposta).
            Este paradoxo básico nos permite gerar até mesmo fenômenos como a mais elementar estratégia de marketing, que é apelar à economia do consumidor: a derradeira mensagem dos filmes publicitários não é “Compre isto, gaste mais, e você irá economizar, você terá um adicional de graça!”? Relembremos a proverbial imagem machista da esposa que volta para casa após fazer compras e informa a seu marido: “Acabo de poupar-nos $ 200! Embora eu quisesse comprar apenas uma jaqueta, eu comprei três, e então tive $ 200 de desconto!” A incorporação desse adicional é o tubo de creme dental, cujo último terço está pintado com uma cor diferente, com letras garrafais: “VOCÊ TEM 30% DE GRAÇA!” – eu estou sempre tentado a dizer em tal situação: “OK, então me dê apenas esses 30% de creme dental de graça!”. No capitalismo a noção de “preço justo” é um preço com DESCONTO.  A designação gasta “sociedade de consumo”, portanto, serve somente se concebermos o consumo como o modo de aparição de seu próprio oposto, a poupança.[vii]
            Aqui, deveríamos voltar a Hamlet e ao valor ritual: o ritual é, em última instância, o ritual de sacrifício que inaugura o espaço para o consumo generoso – depois que sacrificamos aos deuses as vísceras do animal abatido (coração, intestinos), estamos livres para fruir uma saudável refeição com a carne remanescente. Em vez de permitir consumo livre, sem sacrifícios, a “economia total” moderna que quer dispensar esses sacrifícios ritualizados “supérfluos” gera os paradoxos da popança – NÃO existe consumo generoso, o consumo é permitido apenas na medida em que funciona como a forma da aparição de seu oposto. E o nazismo não foi a tentativa desesperada de restabelecer o valor ritual a seu lugar apropriado através do holocausto, este gigantesco sacrifício a “deuses obscuros”, como colocou Lacan em seu Seminário XI?[viii] Muito apropriadamente, o objeto sacrificado era o judeu, a própria incorporação dos paradoxos da poupança capitalistas. O fascismo deve ser situado dentro das séries de tentativas de contrariar esta lógica capitalista: além da tentativa fascista corporativista de “restabelecer o equilíbrio” através do corte do excesso incorporado no “judeu”, deve-se mencionar a as diferentes versões da tentativa de restabelecer o gesto soberano pré-moderno de puro gasto – lembremos da figura do drogado, o único verdadeiro “sujeito do consumo”, o único que consome a si mesmo, completamente, até a morte, em sua desenfreada  jouissance.[ix]


[i] LACAN, J. "Desire and the Interpretation of Desire in Hamlet," in Literature and Psychoanalysis, editado por Shoshana Felman, Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press 1982, p. 40. Em defesa de Marx, pode-se adicionar que essa “negligência” não é tanto erro de Marx, mas da própria realidade capitalista, i.e., das “acomodações elaboradas pela sociedade moderna entre valores de uso e valores de troca”.

[ii] Em relação a todo este subcapítulo, sou profundamente grato às conversas com Mladen Dolar, que desenvolveu essas noções muito mais, englobando também a gênese da figura anti-semita do judeu a partir desses paradoxos do Avaro.

[iii] HEGEL, W.F.G., Science of Logic, Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1969, p. 431.

[iv] MARX, K., Grundrisse, Harmondsworth: Penguin Books, 1972, p. 99.

[v] LACAN, J. "Desire and the Interpretation of Desire in Hamlet," p. 15.

[vi] Essa ária deve ser lida como parte do triângulo, juntamente com duas outras grandes auto-apresentações, "Largo al factotum" e "La calumnia."

[vii] Eu desenvolvo aqui outro aspecto do superego capitalista, cuja lógica é desenvolvida de maneira mais completa no capítulo 3 de ZIZEK, Slavoj, The Fragile Absolute , Londres: Verso, 2000.

[viii]  LACAN, J.  The Four Fundamental Concepts of Psycho-Analysis, New York: Norton 1979, p. 253.

[ix] A atenção atual à dependência de drogas como a ameaça derradeira ao edifício social pode ser devidamente compreendida contra o pano de fundo da predominante economia de consumo subjetivo como a forma de aparição da poupança: em épocas anteriores, o consumo de drogas era simplesmente uma entre várias práticas sociais semi-ocultadas, praticado por personagens reais (de Quincey, Baudelaire) e ficcionais (Sherlock).

Nenhum comentário:

Postar um comentário