domingo, 19 de dezembro de 2010

Amor impiedoso da morte - Por que Cristo morreu na cruz? Slavoj Žižek

Amor impiedoso da morte

Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


Por que Cristo morreu na cruz?

            Como, então, nós rompemos o impasse do consumo parcimonioso, se essas duas saídas são falsas? Talvez seja a noção cristã de ágape que aponte uma saída: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único Filho, que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha vida eterna” (João 3:16). Como, exatamente, discernimos este princípio básico da fé cristã?[i] Os problemas emergem no momento em que compreendemos este “oferecendo seu único Filho”, i.e., a morte de Cristo, como um gesto de sacrifício entre Deus e o homem. Se afirmamos que, pelo sacrifício do que é mais caro a Ele, Seu próprio filho, Deus redime a humanidade, comprando seus pecados, então há em última instância apenas duas maneiras de se explicar este ato: ou o próprio Deus demanda essa retaliação, i.e., Cristo se sacrifica como o representante da humanidade para satisfazer a necessidade de retribuição a Deus seu pai; ou Deus não é onipotente, i.e., Ele é, como um herói trágico grego, subordinado a um Destino maior: Seu ato de criação, como o ato fatídico de um herói grego, traz terríveis conseqüências inesperadas, e a única maneira para que ele restabeleça o equilíbrio de justiça é sacrificar o que Lhe é mais precioso, Seu próprio filho – neste sentido, o próprio Deus é o derradeiro Abraão. O problema fundamental da cristologia é o de como evitar essas duas leituras do sacrifício de Cristo que se impõem como óbvias:
Qualquer idéia de que Deus ‘necessita’ de reparação, seja de nós ou de nossos representantes deveria ser banida, bem como a idéia de que há algum tipo de ordem moral que está acima de Deus e à qual Ele deve se conformar exigindo reparação.[ii]
            O problema é, claro, como evitar essas duas opções, quando o próprio texto da Bíblia parece apoiar sua premissa comum: o ato de Cristo é repetidamente designado como “resgate”, pelas palavras do próprio Cristo, por outros textos bíblicos, bem como pelos mais proeminentes comentadores da Bíblia. Jesus, ele mesmo, diz que veio “para dar sua vida em resgate de muitos (Marcos 10:45); Timóteo 2:5-6 fala de Cristo como o “mediador entre Deus e a humanidade (...) que ofereceu sua vida como um resgate para todos”; o próprio São Paulo, quando estabelece que os cristãos são escravos que foram “comprados por preço” (Coríntios 6:20), implica a noção de que a morte de Cristo deveria ser concebida como compra de nossa liberdade. Assim, nós temos um Cristo que, através de seu sofrimento e morte, paga o preço pela nossa libertação, nos redimindo do fardo do pecado; se nós, então fomos libertados do cativeiro do pecado e do medo da morte através da morte e ressurreição de Cristo, quem exigiu esse preço? A quem o resgate foi pago? Alguns dos antigos escritores cristãos, percebendo claramente este problema propuseram uma solução lógica, quando não herética: na medida em que o sacrifício de Cristo nos liberta do poder do Demônio (Satã), então a morte de Cristo foi o preço que Deus teve que pagar ao Demônio, nosso “dono” quando vivemos em pecado, a fim de que o Demônio nos libertasse. Mais uma vez, aí reside o impasse: se Cristo é oferecido em sacrifício ao próprio Deus, surge a questão de por que Deus exige esse sacrifício.  Era ainda o Deus ciumento e cruel que exigia um alto preço para se reconciliar com a humanidade que o traiu? Se o sacrifício de Cristo foi oferecido a mais alguém (o Demônio), então temos o estranho espetáculo de Deus e o Diabo como parceiros numa troca.
            Claro, a morte sacrifical de Cristo é fácil de ser “entendida”, há uma tremenda “força psicológica” neste ato: quando somos assombrados pela ideia de que as coisas estão erradas e que somos afinal responsáveis por isso, de que há alguma coisa profundamente errada inerente à própria existência da humanidade, de que nós somos sobrecarregados com uma tremenda culpa que nunca poderemos reparar, a ideia de Deus, o ser absolutamente inocente, sacrificando-se por nossos pecados pelo amor infinito a nós e então aliviando-nos de nossa culpa, serve como prova de que nós não estamos sozinhos, de que temos importância para Deus, de que Ele cuida de nós, de que somos protegidos pelo infinito amor do Criador, enquanto que, ao mesmo tempo, nos tornamos infinitamente endividados com Ele. O sacrifício de Cristo serve então como lembrança e incitação eternas a conduzir uma vida ética – o que quer que façamos, devemos sempre lembrar que o próprio Deus deu Seu filho por nós... No entanto, tal conta é claramente insuficiente, na medida em que tem que explicar seus atos em termos teológicos inerentes, não em termos de mecanismos psicológicos. O enigma permanece, e mesmo os mais sofisticados teólogos (como Anselmo de Canterbury) tendem a regredir para a armadilha do legalismo. De acordo com Anselmo, quando há pecado e culpa, tem de haver uma satisfação, algo tem que ser dado pelo qual a ofensa causada pelo pecado humano será purgada. Contudo, a própria humanidade não é forte o bastante para proporcionar essa satisfação necessária – apenas Deus pode fazê-lo. A única solução é, então, a encarnação, a emergência [emergence] de um Deus-homem, de uma pessoa que é inteiramente divina e inteiramente humana: como um Deus, ele tem a habilidade para pagar a satisfação requerida, e como um homem, ele tem a obrigação de pagar.[iii]
            O problema dessa solução é que a noção legalista do caráter inexorável da necessidade de pagar pelo pecado (o delito deve ser compensado) não é questionada, mas simplesmente aceita – a questão aqui é realmente muito ingênua: por que Deus não nos perdoa diretamente? Por que ele tem que obedecer à necessidade de pagar pelo pecado? Não é um princípio básico do cristianismo precisamente o oposto, a suspensão desta lógica legalista da retaliação, a ideia de que através do milagre da conversão um Novo Começo é possível, através do qual as dívidas passadas (pecados) são simplesmente apagadas? Seguindo uma linha aparentemente similar, mas com uma ênfase radicalmente deslocada, Karl Barth oferece uma tentativa de resposta em seu ensaio “O Juiz Julgado em Nosso Lugar”: Deus como juiz passou primeiro por um julgamento da humanidade, e então se tornou humano e pagou ele mesmo o preço, tomando sobre si a punição, “a fim de que desta maneira seja efetuada nossa reconciliação com ele, e nossa conversão a ele”.[iv] Então, colocando em termos um tanto inadequados, Deus se tornou homem e se sacrificou a fim de estabelecer o exemplo derradeiro que evocaria nossa simpatia por Ele, e nos converteria a Ele... Esta ideia foi claramente articulada primeiramente por Abelardo:
O Filho de Deus assumiu nossa natureza, e tomou-a sobre si mesmo para nos ensinar pela palavra e pelo exemplo, mesmo ao ponto da morte, desta forma unindo-nos a Ele através do amor.[v]
            A razão para que Cristo tenha que sofrer e morrer não diz respeito aqui à noção legalista de retaliação, mas ao edificante efeito religioso-moral de sua morte em nós, humanos pecadores: se Deus nos perdoasse diretamente, isso não nos transformaria, tornando-nos homens novos e melhores – somente a compaixão e sentimentos de gratidão e dívida provocadas pela cena do sacrifício de Cristo que tem o poder necessário para nos transformar... é fácil ver que alguma coisa está errada neste raciocínio: não é este um Deus estranho, que sacrifica seu próprio filho, o que há de mais importante para ele, apenas para impressionar os seres humanos? As coisas se tornam ainda mais estranhas se nos detivermos na ideia de que Deus sacrificou seu Filho a fim de nos unir a Ele através do Amor: o que estava em jogo então não era apenas o amor de Deus por nós, mas também seu desejo (narcisista) de ser amado por nós, humanos – Deus, nesta leitura, não é estranhamente semelhante à governanta louca de Heroine, de Patricia Highsmith, que ateia fogo em sua casa para poder provar sua devoção à família salvando as crianças do furioso incêndio? Nesta linha, Deus primeiro causa a Queda (i.e., provoca a situação na qual nós precisamos dele) e então nos redime, i.e., tira-nos da confusão pela qual é Ele o responsável.
            Isto significa, então, que o Cristianismo É uma religião falha? Ou há uma leitura diferente possível da Crucificação? O primeiro passo para sair dessa dificuldade é relembrar as declarações de Cristo que perturbam – ou antes, simplesmente suspendem – a lógica circular da vingança e punição destinada a restabelecer o equilíbrio de Justiça: em vez de “Olho por olho!”, temos “Se alguém esbofeteia sua face direita, ofereça-lha a outra face!”. O ponto aqui não é um masoquismo estúpido, aceitação humilde da humilhação, mas o esforço para interromper a lógica circular do restabelecimento do equilíbrio de justiça. Nessa mesma linha, o sacrifício de Cristo, com sua natureza paradoxal (é a mesma pessoa contra qual nós, seres humanos, pecamos, cuja verdade traímos, que expiou e pagou o preço por nossos pecados), suspende a lógica de pecado e punição, de retaliação legal ou ética, do “acerto de contas”, trazendo-a ao ponto da auto-referência. A única maneira de alcançar essa suspensão, romper a cadeia de crime e punição/retaliação, é assumir a disposição total para o auto-apagamento. E o AMOR, na sua forma mais elementar, não é outra coisa do que o gesto paradoxal de quebrar a cadeia da retaliação.
            O terceiro passo é deter-se na noção de Cristo como o mediador entre Deus e a humanidade: para que a humanidade seja restaurada a Deus, o mediador deve se sacrificar. Em outras palavras, enquanto Cristo está aqui, não pode haver Espírito Santo, que É a figura da reunificação entre Deus e a humanidade. Cristo como mediador entre Deus e a humanidade é, em termos atuais desconstrucionistas, a condição de possibilidade E a condição de impossibilidade entre os dois: como mediador, ele é ao mesmo tempo o obstáculo que impede a total mediação dos pólos opostos. Ou, para colocar em termos hegelianos do silogismo cristão: há duas “premissas” (Cristo é o filho de Deus, inteiramente divino, e Cristo é filho do homem, inteiramente humano), e para unir os pólos opostos, para chegar à “conclusão” (a humanidade está totalmente unida com Deus no Espírito Santo), o mediador deve apagar-se do quadro. A morte de Cristo não é parte do ciclo eterno de encarnação e morte divinas, no qual Deus repetidamente aparece e retira-se para si mesmo, em seu além. Como colocou Hegel, o que morre na cruz NÃO é uma encarnação humana do Deus transcendente, mas o próprio Deus do Além. Através do sacrifício de Cristo, o próprio Deus não é mais além, mas passa para o Espírito Santo (da comunidade religiosa). Em outras palavras, se Cristo fosse o mediador entre duas entidades separadas (Deus e a humanidade), sua morte significaria que não há mais uma mediação, que as duas entidades estão novamente separadas. Então, obviamente, Deus deve ser o mediador em um sentido mais forte: não se trata de que, no Espírito Santo, não há mais necessidade de Cristo por que os dois pólos estão diretamente unidos; para esta mediação ser possível, a natureza de ambos os pólos deve ser radicalmente modificada, i.e., em um único movimento, ambos devem sofrer uma transubstanciação. Cristo é, por outro lado, o meio/mediador evanescente através do qual a própria morte do Deus-Pai “passa para” o Espírito Santo e, por outro lado, o meio/mediador evanescente através de cuja morte a própria comunidade humana “passa para” o novo estágio espiritual.
            Essas duas operações não são separadas, elas são os dois aspectos de um único e mesmo movimento: o mesmo movimento através do qual Deus perde o caráter de Além transcendental e passa para o Espírito Santo (o espírito da comunidade de crentes) EQUIVALE ao movimento através do qual a comunidade humana “decaída” é elevada para o Espírito Santo. Em outras palavras, não se trata de que, no Espírito Santo, homens e Deus se comuniquem diretamente, sem a mediação de Cristo; trata-se, antes, de que eles coincidem diretamente – Deus NÃO É SENÃO o Espírito Santo da comunidade de crentes. Cristo tem que morrer, não para permitir a comunicação direta entre Deus e a humanidade, mas porque não há mais nenhum Deus transcendental com quem se comunicar.
            Como observou recentemente Boris Groys,[vi] Cristo é o primeiro e único Deus totalmente “ready made” na história das religiões: Ele é totalmente humano, portanto indistinguível dos outros homens comuns – não há nada em sua aparência física que faça dele um caso especial. Assim, da mesma maneira que o mictório ou a bicicleta de Duchamp não eram objetos de arte por causa de suas qualidades inerentes, mas por causa do lugar que eles ocupavam, Cristo não é Deus por causa de suas qualidades inerentes “divinas”, mas porque, precisamente como inteiramente humano, ele é o filho de Deus. Por esta razão, a atitude propriamente cristã a respeito da morte de Cristo não é a de um apego melancólico a sua figura morta, mas a da infinita alegria: o horizonte derradeiro da Sabedoria pagã é a melancolia – em última instância, tudo retorna ao pó, deve-se aprender o desapego, a renunciar ao desejo – enquanto que, se alguma vez houve uma religião que NÃO é melancólica, é o cristianismo, apesar da falsa aparência de apego melancólico a Cristo como objeto perdido.
            O sacrifício de Cristo é, então, num sentido radical, SEM SENTIDO: não um ato de troca, mas um gesto supérfluo, excessivo, injustificável, destinado a demonstrar Seu amor por nós, pela humanidade decaída. É como quando, em nossa vivência cotidiana, queremos demonstrar a alguém o quanto nós realmente a amamos, e só podemos fazê-lo através de um gesto de gasto supérfluo. Cristo não “paga” por nossos pecados – como foi esclarecido por São Paulo, é a própria lógica do pagamento, da troca, que, de certa forma, É o pecado, e a aposta do ato de Cristo é nos mostrar que a cadeia de trocas pode ser interrompida. Cristo não redime a humanidade pagando o preço por nossos pecados, Cristo, literalmente, APAGA-os, retroativamente os “desfaz” através do amor.    


[i] Quanto à leitura materialista desta noção, ver capítulos 11-15 de The Fragile Absolute.

[ii] O'COLLINS, G. Christology, Oxford: Oxford University Press 1995, p. 286-287.

[iii] Eu conto aqui com Alister E. McGrath, An Introduction to Christianity, Oxford: Blackwell 1997, p. 138-139.

[iv] Citado em MCGRATH, p. 141.

[v] Idem., p. 141-142

[vi] Conversa privada, outubro de 1999.

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