quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Amor impiedoso da morte - Hamlet antes de Édipo Slavoj Žižek

Amor impiedoso da morte
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


 Hamlet antes de Édipo
Quando falamos sobre os mitos na psicanálise, estamos efetivamente falando sobre UM mito, o mito de Édipo – todos os outros mitos freudianos (o mito do pai primordial, a versão de Freud do mito de Moisés) são variações dele, ainda que necessárias. Contudo, com a história de Hamlet as coisas se complicam. A leitura de Hamlet padrão, ingênua, pré-lacaniana, concentra-se, claro, no desejo incestuoso de Hamlet por sua mãe. O choque de Hamlet pela morte de seu pai é assim explicado como o impacto traumático da realização de um violento desejo inconsciente (neste caso, para que o pai morra) sobre o sujeito; o espectro do pai morto que aparece para Hamlet é a projeção da própria culpa de Hamlet em relação a seu desejo-de-morte; seu ódio a Claudius é um efeito de rivalidade narcisista – Claudius, em vez de Hamlet, é quem tem sua mãe; sua aversão à Ofélia e ao sexo feminino em geral expressam seu repúdio ao sexo em sua modalidade incestuosa sufocante, que surge com a falta da interdição/sanção paterna... Assim, de acordo com essa leitura padrão, Hamlet, como uma versão modernizada de Édipo, testemunha o reforço da proibição do incesto edípica na passagem da Antiguidade para a Modernidade: no caso de Édipo, estamos ainda lidando com o incesto, enquanto que em Hamlet, o desejo incestuoso é reprimido e deslocado. E parece que a própria designação de Hamlet como um neurótico obsessivo aponta nesta direção: em contraste com a histeria que é encontrada em toda história (ao menos ocidental), a neurose obsessiva é manifestamente um fenômeno moderno.
            Embora não se deva subestimar a força de tal leitura freudiana de Hamlet, robusta e heróica, como a versão modernizada do mito de Édipo, o problema é como harmonizá-la como o fato de que, embora Hamlet – na linhagem de Goethe – possa aparecer como o modelo do intelectual moderno (introvertido, meditativo, indeciso), o mito de Hamlet é mais antigo do que o de Édipo. O arcabouço elementar da narrativa de Hamlet (o filho vinga seu pai contra o irmão malvado do pai que o assassinou e tomou seu trono; o filho sobrevive ao domínio ilegítimo de seu tio fazendo-se de bobo e proferindo observações “loucas” ainda que verdadeiras) é um mito universal encontrado em toda parte, das velhas culturas nórdicas, passando pelo antigo Egito, até o Irã e a Polinésia. Além disso, existem evidências suficientes para sustentar a conclusão de que a referência derradeira desta narrativa não concerne a traumas familiares, mas a eventos celestiais: o derradeiro “sentido” do mito de Hamlet é o movimento das estrelas em processão, i.e., o mito de Hamlet revestido pela narrativa familiar está altamente articulado com observações astronômicas...[i] Esta solução, no entanto, por mais convincente que possa parecer, se enreda em seu próprio impasse: o movimento das estrelas é em si sem sentido, apenas um fato da natureza sem ressonância libidinal, então por que as pessoas traduzem/metaforizam isso sob a forma de tal narrativa familiar que gera um tremendo envolvimento libidinal? Em outras palavras, a questão de “o que tem qual significado?” não é de forma alguma decidida por essa leitura: a narrativa de Hamlet “significa” as estrelas ou as estrelas “significam” a narrativa de Hamlet, i.e., os antigos usavam seu conhecimento astronômico para codificar impasses libidinais fundamentais da raça humana?
          Uma coisa, contudo, está clara aqui: temporalmente e logicamente a narrativa de Hamlet É mais antiga do que o mito de Édipo. Estamos aqui lidando com o bem conhecido mecanismo do deslocamento inconsciente de Freud: algo que é logicamente mais antigo é percebido (ou se torna, ou se inscreve a si mesmo na textura) como uma distorção secundária ulterior de alguma suposta narrativa “original”.  Aí reside a frequentemente desconhecida matriz elementar do “trabalho do sonho”, que envolve a distinção entre o pensamento-do-sonho latente e o desejo inconsciente articulado no sonho: no trabalho do sonho, o pensamento latente é cifrado/deslocado, mas é através desse mesmo deslocamento que o outro pensamento, verdadeiramente inconsciente se articula. Então, no caso de Édipo e Hamlet, no lugar da leitura historicista/linear de Hamlet como uma distorção secundária do texto de Édipo, o mito de Édipo é (como já reinvindicava Hegel) o mito fundador da civilização grega ocidental (o salto suicida da esfinge representando a desintegração do velho universo pré-grego); e é na “distorção” que faz Hamlet do Édipo que seu conteúdo reprimido se articula a si mesmo – a prova disso sendo o fato de que a matriz de Hamlet encontra-se em toda parte na mitologia pré-clássica, até o próprio antigo Egito, cuja derrota espiritual é assinalada pelo salto suicida da esfinge. (E se o mesmo vale, a propósito, para o cristianismo: não é tese de Freud que o assassinato de Deus no Novo Testamento traz à luz o trauma “renegado” do velho testamento?). Qual é, então, o “segredo” pré-edípico de Hamlet? Reter a idéia de que o Édipo é o mito “verdadeiro” e de que a narrativa de Hamlet é seu deslocamento/corrupção “modernizado” – a lição é que o “mito” de Édipo – e, talvez, a própria “ingenuidade” mítica – serve para obscurecer algum conhecimento proibido, em última instância o conhecimento sobre a obscenidade do pai.
          Como se relacionam ato e conhecimento em uma constelação trágica? A oposição básica é a que há entre Édipo e Hamlet: Édipo cumpre o ato (do assassinato do pai) porque ele não sabe o que faz; em contraste, Hamlet sabe, e, por essa razão, não é capaz de passar ao ato (de vingar a morte do pai). Além disso, como Lacan enfatiza, não é apenas Hamlet quem sabe, é também o pai de Hamlet quem misteriosamente sabe como está morto e como morreu, em contraste com o pai do sonho freudiano que não sabe que está morto – e é esse conhecimento excessivo que representa a tendência melodramática mínima de Hamlet. Quer dizer, em contraste com a tragédia, que é baseada em algum desconhecimento ou ignorância, o melodrama sempre envolve algum conhecimento imprevisto e excessivo possuído não pelo herói, mas por seu outro, o conhecimento comunicado ao herói no final, na reversão final melodramática. Basta relembrar a eminentemente melodramática reviravolta final de A Idade da Inocência de Wharton, na qual o marido que por muitos anos nutriu um ilícito amor apaixonado pela Condessa Olenska, toma conhecimento de que sua jovem esposa sabia o tempo todo a respeito de sua secreta paixão.  Talvez isso pudesse oferecer uma maneira de redimir o desafortunado As Pontes de Madison: se, no final do filme, a moribunda Francesca tomasse conhecimento de que seu marido supostamente simplório, terra a terra, sabia o tempo todo de seu breve affair com o fotógrafo da National Geographic e o quanto isso significava para ela, mas mantivesse o silêncio para não feri-la. Aí reside o enigma do saber: como é possível que toda a economia psíquica de uma situação radicalmente mude não quando o herói aprende diretamente alguma coisa (algum segredo a muito reprimido), mas quando ele fica sabendo que o outro (a quem ele tomava por ignorante) também sabia o tempo todo e apenas fingia não saber para manter as aparências – há algo mais humilhante do que um marido que, depois de um longo caso amoroso secreto, subitamente descobre que sua mulher sabia o tempo todo, mas manteve silêncio por polidez ou, ainda pior, por amá-lo? Em Laços de Ternura, Debra Winger, morrendo de câncer em uma cama de hospital, conta a seu filho (que a despreza energicamente por ter sido abandonado por seu pai) que sabe muito bem o quanto ele realmente a ama – ela sabe que em algum momento no futuro, depois de sua morte, ele reconhecerá isso para si mesmo; ele irá, então, sentir-se culpado pelo ódio que sentira de sua mãe, desse modo ela está deixando-o saber que ela antecipadamente o perdoa, livrando-o do futuro fardo da culpa... essa manipulação do sentimento de culpa futuro é melodrama em seu melhor; o mesmo gesto de perdão culpabiliza o filho por antecipação. (Aí, nessa inculpação, nessa imposição de uma dívida simbólica, através do próprio ato de exoneração, reside o maior truque do cristianismo).
          Há, no entanto, uma terceira fórmula a ser adicionada a esse par do “ele não sabe disso, embora ele o faça” e “ele sabe disso e, portanto, não pode fazê-lo”: “ele sabe muito bem o que ele está fazendo e, não obstante, ele o faz”. Se a primeira fórmula dá conta do herói tradicional e a segunda do herói do início da época moderna, o último, combinando saber E ato de uma maneira ambígua, dá conta do herói moderno tardio – contemporâneo. Quer dizer, essa terceira fórmula permite duas leituras completamente opostas, um pouco como o julgamento especulativo hegeliano, no qual o mais baixo e o mais alto coincidem: por um lado, “ele sabe muito bem o que está fazendo, e ele, não obstante o faz” é a mais clara expressão da atitude cínica de depravação moral – “Sim, eu sou a escória, enganando e mentindo, e daí? A vida é assim!”; por outro lado, a mesma postura do “ele sabe muito bem o que está fazendo e, não obstante, ele o faz” pode também representar o oposto mais radical do cinismo, i.e., para a consciência trágica que, embora o que eu esteja prestes s fazer traga conseqüências catastróficas para meu próprio bem-estar e para o bem-estar daqueles que me são próximos e queridos, eu, contudo, simplesmente TENHO que fazer, por conta da injunção ética inexorável. (Relembremos a paradigmática atitude do herói noir: ele está inteiramente ciente de que, se seguir o chamado da femme fatale é apenas a ruína que o aguarda, ele estará caindo em uma dupla armadilha, a mulher irá com certeza traí-lo, mas, não obstante, ele não pode resistir...) Esta divisão não é apenas a do domínio do “patológico” – bem-estar, prazer, lucro... – e da injunção ética: pode também ser a divisão das normas morais que eu normalmente sigo e a injunção incondicional que eu me sinto obrigado a obedecer, como o impasse de Abraão, que “sabe muito bem o que matar o próprio filho significa”, e, não obstante, resolve fazê-lo, ou como o cristão que está prestes a cometer um terrível pecado (sacrificar sua alma eterna) pelo objetivo maior da glória de Deus... em suma, a situação propriamente pós – ou meta – trágica moderna ocorre quando uma necessidade maior me compele a trair a própria substância ética de meu ser.


[i] Eu me refiro aqui, claro, a Hamlet’s Mill, o notório clássico New Age de Giorgio de Santillana e Hertha von Dechend (Boston: David R. Godine Publisher 1977).

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