sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Intervenção do Doutor Jacques Lacan

Intervenção do Doutor Jacques LACAN na discussão sobre a exposição de Claude Lévi-Strauss a respeito das relações entre a mitologia e o ritual

Sociedade Francesa de Psicanálise, sessão de 26 de maio de 1956
AREP édition, Alençon, 1977, sob o título: “Jacques Lacan, Travaux et interventions”
Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes Pereira

J. Lacan: Eu fiquei bastante sensibilizado com a cortesia que me mostrou o senhor Jean Wahl em se incomodar em me perguntar se eu queria falar, em perguntar por que eu não quero falar.

Quero, portanto, que se saiba que quando eu venho ouvir Claude Lévi-Strauss é sempre para me instruir. Se, então, eu me ocupo de colocar alguma questão, ela não deixará de ser marcada pela parcialidade dos meus interesses.

Se ouso fazê-lo, é que desde muito tempo esses interesses foram bastante nutridos e aumentados pelas coisas que eu aprendi com Claude Lévi-Strauss. De maneira que hoje eu venho com certa expectativa: que eu chamaria de o passo seguinte, depois do que ele já nos trouxe sobre os mitos, e que vou interrogar sobre o que deixou a desejar em relação ao que ele nos traz hoje.

Se eu quiser caracterizar em que sentido eu fui amparado e orientado pelo discurso de Claude Lévi-Strauss, diria que é devido ao acento que ele pôs – espero que ele não vá declinar diante da amplitude dessa fórmula, a qual eu não pretendo reduzir sua pesquisa sociológica ou etnográfica, – sobre o que eu chamarei a função do significante, no sentido que tem esse termo em lingüística, na medida em que esse significante, eu diria que não só se distingue por suas leis, mas prevalece sobre o significado a que impõe.

Claude Lévi-Strauss nos mostra todos os lugares onde a estrutura simbólica domina as relações sensíveis. Dizemos, para exprimir as coisas aproximativamente, para nos fazer entender rápido, bem como a todo mundo, que ele nos mostrou que as estruturas do parentesco se ordenam segundo uma série em que as possibilidades da combinatória explicam em última instância; de maneira que quase todas essas possibilidades podem realizar-se em qualquer lugar no conjunto concreto que recolhemos no mundo. Quer dizer que, por uma lado, pode-se dar conta do que nós não encontramos por algum impasse para conduzir seu uso e, por outro, para fazer uma aproximação, eu direi que não tem nada de descortês, Claude Lévi-Strauss admitiria, como o fazia Fourier em seu sistema bastante audacioso ao menos por reduzir o alcance da natureza, que, se há classes possíveis que restam vazias, espera-se encontrar algum dia o que as preencheria. Depois de tudo, o que faz que uma estrutura seja possível são razões internas ao significante, o que faz que uma certa forma de troca seja concebível ou não são razões propriamente aritméticas; creio que ele não recuará diante desse termo.

O segundo passo que graças a ele eu já havia dado antes de chegar aqui hoje diz respeito ao que nós lhe devemos sobre seus desenvolvimentos a respeito do mitema, que eu tomo como uma extensão à noção de mito, desse acento posto sobre o significante. A análise dos mitemas, tal como ele nos propõe desvendá-la, desenvolvê-la, consistiria, em suma, em buscar esses elementos significantes, essas unidades significantes no nível do mito, que se chamam mitemas, como no nível do material elementar nós temos os fonemas, para aí reencontrar uma espécie de lingüística generalizada.
Eu fiquei muito impressionado, em relação a essa primeira análise do mitema, pelo caráter excessivamente avançado de suas fórmulas: propondo de início o método de seriação que nos permite identificar as unidades homólogas através dos mitos paralelos quando chegam até nós apenas o que nos resta da mitologia grega; mas no intuito de desvendar na diacronia interna às linhagens heróicas algumas combinações tais como as que ele nos mostrou hoje, como um agrupamento de termos que se produz na primeira geração, se reproduz, mas em uma combinação transformada, na segunda geração. Assim o que se passa na geração de Édipo pode ser homólogo à geração de Etéocles e Polinice segundo um modo de transformação previsível em seu rigor; pois a falta arbitrária, se podemos chamar assim, aparece aqui nos dois níveis, onde encontramos uma coerência igual, ponto por ponto.

Eis então onde eu estava hoje. A coisa para mim é altamente apreciada em seu relevo, pois como Claude Lévi-Strauss não ignora, eu tentei quase imediatamente e, ouso dizer, com pleno sucesso, aplicar a grade aos sintomas da neurose obsessiva e especialmente à admirável análise que Freud fez do “Homem dos ratos”, em uma conferência que intitulei o “Mito individual do neurótico”. Eu pude até formalizar estritamente o caso segundo uma fórmula dada por Lévi-Strauss, pela qual um a no início associado a um b, enquanto que um c é associado a um d, muda seu par na segunda geração, mas não sem que subsista um resíduo irredutível sob forma de negativação de um desses quatro termos, que se impõe como correlativo a transformação do grupo: onde se lê o que chamarei o signo de uma espécie de impossibilidade da total resolução do problema do mito. De maneira que o mito estaria aí para nos mostrar o equacionamento, sob uma forma significante, de uma problemática que deve por si mesma deixar algo em aberto, que responde ao insolúvel significando a insolubilidade, com seu relevo encontrado em suas equivalências, que fornece (e essa seria a função do mito) o significante do impossível. Teria eu avançado talvez um pouco? Quero introduzir, com efeito, um sistema de transformação significante que é totalmente da mesma ordem, e que não posso deixar de sublinhar a distância que há entre o método de Lévi-Strauss e esse modo de análise onde abundam nossos clínicos e que não têm nada a invejar a esses de que nos fala o senhor Métraux, nos complexos desses personagens que ele encontrou na América do Sul, que eu adoraria, aliás, saber exatamente onde, por pura curiosidade, logo todos os meus pacientes estariam a sua disposição: quer dizer que é verdade que se teme estar grávido mesmo sem ser homossexual; há muitas razões para esse temor; nós não tocamos aí nada além desse estado movente das relações desse ser singular que é atirado na existência sob o nome de homem; todos os medos possíveis dele fazem parte. Eu direi que os significantes são feitos de certa maneira para lhes ordenar, organizar, para possibilitar uma escolha. É este o fundo sobre o qual se inscreve a experiência analítica, e até mesmo a experiência etnográfica, quer dizer que se pode encontrar longe o que se pode encontrar entre nós; que para encontrar não há, então, necessidade de se ir buscar tão longe. O medo de um garoto de estar grávido é coisa completamente diferente que a utilização da função da gravidez, em um sistema significante; ele está aí para ter um certo papel, uma certa ligação, onde ela pode ser transformada, imediatamente, em outra coisa; é algo de outra natureza, é alguma coisa onde o páthos humano, com toda sua confusão, e todos os seus temores, encontra seu sentido, por mais longe que leve.

O que nos importa aqui é o sistema significante na medida em que ele organiza, em que é a sustentação de tudo isso, determinando as vertentes, pontos cardinais, reversões, conversões e o jogo da dívida.

Evidentemente, essa ordem de estudo única em si permite uma tal mudança de perspectiva que permite reclassificar os problemas de uma maneira inteiramente diferente. Por exemplo, pode-se perguntar o que será exatamente o sistema de transformação do significante nas diferentes manifestações do simbolismo que a análise revelou no psiquismo: ela provavelmente não se apresenta da mesma maneira que na neurose obsessiva; é de uma maneira mais completa ou incompleta, em outros registros? Pode-se desde já encontrá-lo no sonho e, se essa chave lhes tivesse sido dada, os autores que se interessam pela função do que eles chamaram os sonhos em dois tempos, ou sonhos redobrados, teriam sido mais pertinentes em suas observações, menos grosseiros em seus recursos em relação às instâncias psíquicas em sua maneira obstinada para explicar a necessidade de reduplicação de um mesmo tema e do que se esgota.

Isso não faz senão aumentar ainda mais a intensidade do problema, pois se isso funciona no nível do sonho, a que nos conduz em relação à atividade mental? Renova completamente o alcance das questões; mostra que depois de Freud nós não avançamos muito, mas, sobretudo, recuamos.

Hoje nos encontramos, graças à exposição de Lévi-Strauss, diante de algo que me surpreende, e que é em suma o sentido de minha observação, no que diz respeito ao que me parece ser um recuo diante do que parecia oferecer como princípio de estruturação o artigo do Journal of American Folklore sobre a estrutura do mito. Eu quero dizer, por exemplo, que eu não encontro aí as fórmulas de transformação já bastante elaboradas das quais eu falava há pouco. Há aí um tipo de combinação ternária na qual eu vejo bem o agrupamento dois por dois em um sentido giratório. Direi que é a intrusão massiva de uma elemento vindo do real na função formadora do mito que me parece ao mesmo tempo elemento novo e elemento que, eu não diria que me desconcerta, mas me faz interrogá-lo.1

Em outros termos, para que possamos conceber ou buscar as motivações dessas estruturas míticas em um tipo de relação em espelho de um grupo em relação à estrutura social de um grupo vizinho, parece que você considerava por assim dizer que o grupo sonha com o que foi deixado de lado em sua estrutura social em relação aos dados de troca econômica, agricultura ou nomadismo que a determinam.

Há um tipo de função de complementaridade simbólica. Eu não penso, em relação ao sonho, na parte em que você se refere no sentido próprio do onrismo, mas, sobretudo como um tipo de bovarismo social que se exprimiria no mito. É por uma espécie de miragem, de reflexo ou de imagem do que se passa com os outros que você relacionaria o mito em sua profunda anomalia no interior de um grupo. Está aí para você inteiramente a explicação derradeira? Eu direi que generalização poder-se-ia dar: ou bem você conceberia todo esse conjunto de pequenas civilizações por assim dizer minúsculas, empoeiradas, de índios da planície formando algo como um vasto grupo do qual tudo faria parte, afinal, de um mesmo mundo coerente, onde cada um dedicar-se-ia a uma espécie de especialização tentando compensar o outro como pode. Em poucas palavras, é a relação, a idéia precisa que você tem da ligação dessa elaboração do significante tal como você nos ofereceu, com a estrutura real, concreta e muito limitada das sociedades primitivas, que me faz questioná-lo sobre a tendência, a direção na qual você orienta essa coordenação do que chamarei, na minha linguagem, o simbólico e o imaginário. Eu esperava um circuito mais longo na ordem do puro simbólico antes que você nos conduzisse a essas motivações imaginárias. Esse é aproximadamente o sentido de minha questão.

C. Lévi-Strauss: Estou muito agradecido por você ter posto um problema essencial. Desculpo-me por tê-lo decepcionado ao resumir o circuito. Tinha prometido ao presidente que falaria uma meia hora; receio que tenha ultrapassado de cinco a dez minutos do tempo concedido. Se eu tivesse tentado tratar o problema de maneira puramente formal, como você esperava, teria faltado tempo para escrever os símbolos no quadro, definir o sentido, etc.

Dito isso, estou inteiramente de acordo com você, de que o problema hoje é um pouco diferente do que tratei em outros trabalhos. No artigo sobre o qual você fez alusão, eu me pus o problema das relações entre as variantes de um mesmo mito e tentei demonstrar que cada variante pode ser assimilada por um grupo de permutações de elementos dispostos de uma maneira diferente nas variantes vizinhas, de tal modo que o mito progrida, se desenvolva, engendre novas variantes, até o esgotamento da totalidade das combinações.

O problema hoje é diferente. É o das relações entre a mitologia e o ritual, problema geralmente escamoteado sob o pretexto de que o mito é da ordem da representação, e o rito da ordem da ação. Ora, o homem é um ser pensante e atuante. Nada mais natural, nos dizem, que ele tente se expressar dessas duas maneiras. Mas isso só seria verdade se as ações, os gestos do rito sendo os gestos e ações verdadeiras, chegassem a um resultado.

Você falou a pouco do significante e do impossível; se o ritual não produz resultado, é necessário concluir que consiste em pseudogestos executados, não no sentido de um resultado concreto, mas, sobretudo, porque são um suporte de significação. Nessa perspectiva, ainda que se tratasse de dois sistemas de signos diferentes, de dois códigos diferentes, tanto no plano do mito quanto no plano do rito, estamos diante de um código. Em certo momento caracterizei o mito como uma metalinguagem e o rito como uma para-linguagem, mas, nos dois casos, linguagem. Por que, então, duas linguagens? É o problema que tentei colocar. Espero que seja possível fazer progredir a solução mostrando que essa assimilação do mito e do rito é de tal maneira que os tipos de combinação que uma sociedade realiza sob forma de mito, a que está ao lado o faz sob forma de rito. As razões pelas quais essas escolhas diferentes se produzem tornam-se, de certo modo, razões residuais, que não tocam o essencial da interpretação simbólica e colocam em causa a história respectiva dessas populações. Não penso em me retratar sobre minhas hipóteses precedentes. Eu quero um meio de entendê-las e desenvolvê-las, uma vez que se trata de englobar no reino do simbolismo o domínio do ritual, que eu havia deixado até o momento de fora.

J. Lacan: Isso acentua ainda a relativização total desses sistemas simbólicos.

1 Cf. "The structural study of myth", por Claude Lévi-Strauss, in : Journal of American Folklore out.-dec. 55, vol. 68, n° 270, pp. 428-444.

Fonte: http://www.lutecium.fr/Jacques_Lacan/transcriptions/intervention_levi_strauss.htm

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Sob a chuva

Bichos


Deleuze e o Real lacaniano por Slavoj Zizek


Deleuze e o Real Lacaniano

Slavoj Žižek

Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Por que o estruturalismo é sério? Para o sério ser verdadeiramente sério ele deve ser consecutivo, composto por elementos, resultados, configurações, homologias, e repetições. O que é sério para Lacan é a lógica do significante, i.e., o oposto da filosofia, visto que toda a filosofia repousa na congruência, transparência, concordância, harmonia do pensamento consigo mesmo. Há sempre uma parte escondida numa filosofia, um Eu=Eu, que constitui o que Lacan chamou em algum momento “o erro inicial em filosofia”, que consiste em privilegiar essa igualdade e então fazer com que se acredite que o ‘Eu’ é coetâneo a si mesmo, enquanto que sua constituição é sempre depois da emergência de sua causa, do petit a. O inconsciente significa que o pensamento é causado pelo não-pensamento, que não pode ser recapturado no presente, exceto através de suas conseqüências. Esta é a maneira como Georges Dandin recaptura a conseqüência do tempo parado, quando pára para dizer: Tu l’as voulu, Geoges Dandin! (Você quis isso, Georges Dandin!). Ele faz o tempo parar para recapturar na conseqüência o que foi causado pelo não-pensamento1.
A única coisa com a qual não se pode concordar inteiramente em relação à passagem citada diz respeito à condenação demasiado rápida e superficial de Miller (e Lacan) à filosofia: o mesmo idealista alemão que articulou o infame Eu=Eu, a fórmula da auto-identidade do Eu de Lacan distanciado de si mesmo, Fitche, também tornou clara a dependência do sujeito de uma causa des-centrada em relação a ele mesmo. Fitche foi o primeiro filósofo a enfocar a estranha contingência no coração mesmo da subjetividade: o sujeito fitchiano não é o extravagante Ego=Ego como a Origem absoluta de toda realidade, mas um sujeito finito intimidado, apanhado, em uma situação social contingente evitando para sempre a maestria. É importante ter em mente os dois sentidos primários da Anstoss em alemão: Impedimento, obstáculo, estorvo, algo que resiste a ilimitada expansão de nosso esforço, mas também ímpeto, estímulo, algo que incita nossa atividade. Anstoss não é simplesmente o obstáculo que o Eu absoluto põe a si mesmo, pela superação do obstáculo autoposicionado, isso afirma seu poder criativo, como os jogos feitos pelo proverbial santo ascético pervertido, que inventa novas tentações para si mesmo, resistindo-as vitoriosamente, confirmando sua resistência. Se à Ding an sich kantiana corresponde a Coisa freud-lacaniana, Anstoss está mais próxima do objet petit a, do primordial corpo estranho que “atravessa na garganta” do sujeito, do objeto causa do desejo que o divide: Fitche, ele mesmo, define Anstoss como o não assimilável corpo estranho que causa a divisão do sujeito dentro do sujeito vazio absoluto e o sujeito finito determinado, limitado pelo não-Eu. Anstoss então designa o momento do “confronto”, do golpe arriscado, do encontro do Real no cerne da idealidade do Eu absoluto: não há sujeito sem Anstoss, sem a colisão com um elemento de irredutível facticidade e contingência – “o Eu é suposto encontrar dentro de si mesmo algo estranho.” O ponto é então reconhecer “a presença, no Eu mesmo, de um reino de irredutível alteridade, de absoluta contingência e incompreensibilidade... Afinal, não apenas a rosa de Angelus Silesius, mas todo Anstoss, qualquer que seja, ist ohne Warum.” Em claro contraste com a Coisa numenal kantiana que afeta nossos sentidos, Anstoss  não vem de fora, é stricto sensu ex-tímia: um corpo estranho não assimilável no núcleo mesmo do sujeito – como Fitche, ele mesmo, enfatiza, o paradoxo da Anstoss reside no fato de que ela é simultaneamente “puramente subjetiva” e não produzida pela atividade do Eu. Se Anstoss não fosse “puramente subjetiva”, se já fosse o não-Eu, parte da objetividade, recairíamos no “dogmatismo”, i.e., Anstoss efetivamente equivaleria a um vago resíduo da Ding an sich kantiana e corroboraria a inconseqüência de Fitche (a reprovação usual a Fitche); se Anstoss fosse simplesmente subjetiva, estaríamos diante do vazio do sujeito jogando consigo mesmo e jamais alcançaríamos o nível da realidade objetiva, i.e., Fitche seria efetivamente um solipsista (outra reprovação comum à sua filosofia). O ponto crucial é que Anstoss põe em movimento a constituição da “realidade”: no início é o puro Eu com o inassimilável corpo estranho em seu cerne; o sujeito constitui a realidade no sentido de assumir a distância para com o Real do informe Anstoss e conferindo a ela estrutura de objetividade. O que se impõe aqui é o paralelo entre o Anstoss fitchiano e o esquema freud-lacaniano da relação entre o Ich (Ur-Ich) primordial e o objeto, o corpo estranho em seu cerne, que perturba seu equilíbrio narcísico, colocando em movimento o longo processo da expulsão gradual e estruturação do seu obstáculo interno, através do qual (o que experimentamos como) “realidade objetiva, externa” é constituída.
A temporalidade da causa do sujeito não é a da linear disposição do tempo (e da correspondente noção de que causas passadas determinam o presente); é a temporalidade do tempo circular na qual o “tempo para” quando, numa intrincada autonarração, o sujeito coloca sua própria causa pressuposta. Miller mesmo reconhece isso quando salienta que a causa do desejo é “além disso, uma causa posta por retroação”. É nesse preciso sentido que sujeito e objeto são correlativos: a emergência [emergence] do sujeito, seu rompimento (corte interno, suspensão) da causalidade linear da “realidade” tem uma causa, mas uma causa que é retroativamente posta por seu próprio efeito. É essa retroatividade mínima, não apenas algum tipo de “complexidade” estrutural, que nos permite passar da causalidade linear natural, por complexa que seja, à própria causalidade estrutural.
“Você quis isso, Georges Dandin” citado por Miller é uma passagem de Molière na qual o sujeito é lembrado de que o impasse presente no qual se encontra é o não intencional resultado de seus próprios atos passados; Miller dá a isso uma reviravolta adicional: o sujeito poderia recapturar na conseqüência que ele encontra na realidade os resultados de sua causa ausente e não considerada – no caso de Billy Bathgate, ele poderia recapturar em dois objetos “reais”, o romance e o filme, as conseqüências de sua causa virtual, o espectral “melhor romance”.
Deleuze caracterizou sua leitura dos filósofos como guiada pela tendência “de ver a história da filosofia um tipo de coito anal ou (o que vem a ser a mesma coisa) concepção imaculada. Eu me vejo a mim mesmo pegando um autor por trás e oferecendo-lhe uma criança que seria sua própria cria, ainda que monstruosa. Era realmente importante ser sua própria cria, porque o autor tinha, de fato, que dizer tudo o que eu tinha lhe dito. Mas a criança também tinha que ser monstruosa, pois é resultado de todo tipo de mudança, deslizamento, deslocamentos e emissões ocultas com as quais eu realmente me deleitei”2. Deleuze é aqui profundamente lacaniano: Lacan não faz o mesmo em sua leitura de “Kant com Sade”? Jacques-Alain Miller certa vez caracterizou essa leitura com as mesmas palavras de Deleuze: o intuito de Lacan é “pegar Kant por trás”, para produzir o monstro sádico como a própria cria de Kant. (E, a propósito, o mesmo não vale também para a leitura de Heidegger dos fragmentos dos Pré-Socráticos? Ele também não “pegou por trás” Parmênides e Heráclito? Sua extensa explanação de “Ser e pensamento são o mesmo” de Parmênides não é uma das maiores penetrações anais da história da filosofia?) O termo “concepção imaculada” está relacionado à noção, de A Lógica do Sentido, do fluxo de sentido como infértil, sem um poder causal próprio: a leitura de Deleuze não se move no nível das imbricações presentes das causas e efeitos; ela está para as interpretações “realistas” como a penetração anal está em relação à própria penetração vaginal.
Esse procedimento deleuziano tem um inesperado precedente teológico – não a imaculada concepção de Cristo, a qual ele mesmo se refere, mas a lenda judaica sobre o nascimento do Messias contada por Joseph em um manuscrito do século treze. Deus quer dar à luz o Messias, mas sabe que todas as forças do mal estão esperando diante da vagina de Shekina para matar o Messias no instante em que ele nascer. Assim, Deus a noite vai até sua amante, Lilith, o símbolo do mal, e a sodomiza (a expressão utilizada pode significar que ele urinou em sua vagina). O Messias virá de Lilith depois do sexo anal: essa é a maneira pela qual Deus engana as forças do mal, dando origem ao Messias através do mal3. Se o movimento fundador que estabelece o universo simbólico é o gesto vazio, como ele é esvaziado? Como seu conteúdo é neutralizado? Através da repetição. Giorgio Agamben tentou indicar esse processo com a noção de profanação: na oposição entre sagrado e secular, profanação do secular não equivale a secularização; profanação põe o texto ou prática sagrada em um contexto diferente, subtraindo-o de sua função e contexto próprios. Como tal, a profanação permanece no contexto da não utilidade, meramente representando uma não utilidade “pervertida”. Profanar uma missa é realizar uma missa negra, não estudar a missa como objeto da psicologia da religião. Em O Processo de Kafka, o estranho extenso debate entre Joseph K. e o Sacerdote sobre a Lei (o qual segue a parábola da Porta da Lei) é profundamente profanador – pode-se até dizer que Kafka é o grande profanador da Lei judaica. Assim, profanação – não secularização – é a verdade materialista minando o Sagrado: Secularização sempre conta com sua fundação sagrada rejeitada, que sobrevive ou como exceção ou como estrutura formal. O Protestantismo realiza sua divisão entre o sagrado e o secular da maneira mais radical: seculariza o mundo material, mas mantém a religião aparte, mais ainda, introduz o princípio religioso formal na economia capitalista mesmo. (Mutatis mutandis, o mesmo vale para o comunismo stalinista – ele é secularizado, não religião profanada).
Aqui, dever-se-ia talvez suplementar Agamben: se concebermos profanação como o gesto de extração da própria vida-mundo, contexto e uso, tal extração não é também A DEFINIÇÃO MESMA DE SACRALIZAÇÃO? Quer dizer, a propósito da poesia: não é o “nascimento” da poesia quando uma frase ou grupo de palavras é “descontextualizada” e apanhada em uma insistência repetitiva autônoma? Quando, ao invés de “venha aqui” eu digo “venha, venha aqui”, isso não é um mínimo de poetização? Há, assim, um nível-zero no qual profanação não pode ser distinguida de sacralização. Temos aqui então o mesmo paradoxo da classificação deslocada de verbos em ativos, passivos e médios analisados por Emile Benveniste (a oposição original não é entre passivo e ativo, com o médio intervindo como um terceiro momento neutro/mediado, mas entre ativo e médio): a oposição original é entre o secular-cotidiano-útil e o Profano, e o “Sagrado” representa a mistificação/deslocamento secundário do Profano. A emergência do universo humano/simbólico reside no gesto mínimo de “descontextualização profanatória” de um sinal ou gesto, e a “sacralização” vem posteriormente, como uma tentativa de reformar, de domesticar esse excesso, esse impacto extático, do profano. Em japonês, bakku-shan significa “uma garota que embora possa ser bonita quando vista detrás, não é quando vista de frente” – não é a relação entre sagrado e profano algo semelhante a isso? Uma coisa que aparece (é experimentada como) sagrada quando vista detrás, de uma distância apropriada, é precisamente um excesso profano... Parafraseando Rilke, Sagrado é o último véu que encobre o horror do Profano.
O que seria a profanação do Cristianismo? E se o próprio Cristo – a incorporação de Deus em um ridículo mortal, seu cômico aspecto – já É a profanação da divindade? E se, em contraste com outras religiões que podem ser profanadas pelo homem, apenas no Cristianismo Deus profana a SI MESMO?
A dualidade da diferença e equivalência de Laclau permanece presa na lógica da oposição exterior. O que Laclau não desenvolve é a mediação conceitual dos dois opostos, i.e., como a mesma lógica da diferença (diferencialidade: a identidade de cada elemento reside apenas em sua diferença em relação a todos os outros) IMANENTEMENTE conduz ao antagonismo. Diferencialidade, no sentido de permanecer pura (i.e., evitar a referência a qualquer tipo de suporte externo no sentido de algum elemento que não é baseado em diferenças, mas se mantém em sua identidade), tem que incluir um marcador da diferença em meio ao campo (das diferenças) e seu exterior, i.e., uma “pura” diferença. Essa “pura” diferença, contudo, já tem que funcionar como puro antagonismo, i.e., isso é o que restringe/frustra a identidade de cada um dos elementos. Isso é porque, como propôs Laclau, diferença externa é sempre também diferença interna: não apenas que a diferença entre o próprio campo e seu exterior tem que se refletir no campo ele mesmo, impedindo seu fechamento, frustrando sua plenitude; a identidade diferencial de cada elemento é simultaneamente constituída e restringida/frustrada pela rede diferencial.
Nas séries policiais de Henning Mankel, o inspetor Kurt Wallander tem um pai cujo meio de vida é pintar – ele pinta o tempo todo, em centenas de cópias, a mesma pintura, a paisagem de uma floresta na qual o sol nunca se põe (nisso reside a mensagem da pintura: é possível tornar o sol cativo, impedindo seu ocaso, congelando um momento mágico, extraindo sua pura manifestação do circular movimento eterno da natureza de geração e degeneração). Há, no entanto, uma “diferença mínima” nessas de outro modo idênticas pinturas: em algumas delas há um pequeno galo na paisagem, enquanto que em outras não há o galo, como se a própria eternidade, tempo congelado, tivesse que ser sustentada por uma variação mínima, um tipo de substituto da realidade da pintura para o que realmente distingue cada pintura, sua virtual intensidade puramente única.
Se “individuação é uma relação concebida como um puro ou absoluto no meio de, um no meio de subentendido como inteiramente independente de ou externo aos seus termos – e então um no meio de que pode ser descrito afinal com ‘no meio de’ nada,” (Hallward 154), seu status é então o de um puro antagonismo. Sua estrutura foi disposta por Lacan em relação à diferença sexual que, como uma diferença, precede os dois termos entre os quais há diferença: o ponto das “fórmulas de sexuação” de Lacan é que ambas as posições, masculina e feminina, são dois modos de evitar o impasse da diferença como tal. Isso é porque a afirmação de Lacan de que a diferença sexual é “real-impossível” é rigorosamente sinônima à afirmação de que “não há relação sexual”. Diferença sexual é para Lacan não um sólido conjunto de oposições e inclusões/exclusões simbólicas “estáticas” (normatividade heterossexual que relega a homossexualidade e outras “perversões” a algum papel secundário), mas o nome do impasse, do trauma, de uma questão aberta, de algo que RESISTE a toda tentativa de simbolização. Todas as traduções da diferença sexual em um conjunto de oposições simbólicas estão condenadas a falhar, e é essa mesma “impossibilidade” que abre o terreno da luta hegemônica através da qual a diferença sexual ganhará sentido. E o mesmo vale para a diferença política (luta de classes): a diferença entre Esquerda e Direita não é apenas a diferença entre dois termos em um campo comum, ela é “real” desde que não é possível oferecer sua descrição neutra – a diferença entre Esquerda e Direita aparece diferentemente se observada a partir da Esquerda ou da Direita: para a primeira, representa o antagonismo que atravessa todo o campo social (antagonismo encoberto pela Direita), enquanto que a Direita percebe a si mesma como a força de moderação, estabilidade social, e unidade orgânica, com a Esquerda reduzida à posição de um intruso que perturba a estabilidade orgânica do corpo social – para a Direita, a Esquerda é em si “excessiva”.
            Vamos de novo tomar a exemplar análise de Lévi-Strauss de seu Antropologia Estrutural, a respeito da disposição espacial das casas entre os Winnebago, uma das tribos dos Grandes Lagos. A tribo é dividida em dois subgrupos (“moieties”), “os que são de cima” e “os de baixo”; quando pedimos a um indivíduo para desenhar em um pedaço de papel, ou na areia, a planta de sua aldeia (a disposição espacial das cottages), obtemos duas respostas completamente diferentes, dependendo do subgrupo ao qual o respondente pertença.  Ambos percebem a aldeia como um círculo; mas para um subgrupo, há dentro desse círculo um outro de casas centrais, onde se formam então dois círculos concêntricos, enquanto que para o outro subgrupo, o círculo é dividido em dois por uma clara linha divisória. Em outras palavras, um membro do primeiro subgrupo (vamos chamá-lo de “conservador-corporativista”) percebe a planta da aldeia como um anel de casas dispostas mais ou menos simetricamente em torno do templo central, enquanto que um membro do segundo subgrupo (“antagonista-revolucionário”) percebe sua aldeia como dois montes de casas separados por uma fronteira invisível... A questão central de Lévi-Strauss é que esse exemplo não deveria de maneira alguma nos induzir a um relativismo cultural, de acordo como o qual a percepção do espaço social depende do grupo ao qual pertence o observador: a mesma divisão nas duas percepções “relativas” implica uma referência oculta a uma constante – não uma disposição das casas objetiva, “real”, mas um cerne traumático, um antagonismo fundamental que os habitantes da aldeia foram incapazes de simbolizar, explicar, “internalizar”, chegar a um acordo, uma discrepância nas relações sociais que impossibilitou a comunidade de estabilizar-se em completa harmonia. As duas percepções da planta da aldeia são simplesmente duas mutuamente excludentes tentativas de lidar com esse antagonismo traumático, curar sua ferida através da imposição de uma estrutura simbólica equilibrada. É necessário acrescentar que as coisas se passam da mesma forma para a diferença sexual: “masculino” e “feminino” são como duas configurações de casas na aldeia levistraussiana? E com o intuito de dissipar a ilusão de que nosso universo “desenvolvido” não é dominado pela mesma lógica, vamos retornar ao nosso exemplo das lutas políticas, da cisão de nosso espaço político em Esquerda e Direita: um esquerdista e um direitista comportam-se exatamente como membros dos subgrupos opostos da aldeia de Lévi-Strauss. Eles não apenas ocupam posições diferentes dentro do espaço político; cada um deles percebe diferentemente a própria disposição do espaço político – um Esquerdista percebe o campo como fundamentalmente cindido por algum antagonismo fundamental, e um Direitista como uma unidade orgânica de uma Comunidade perturbada apenas pelos estrangeiros intrometidos.
Nesse preciso sentido, diferença política (ou sexual) é o “precursor sombrio”, nunca presente, uma puramente virtual “pseudocausa”, o X que sempre (constitutivamente) “falta em seu próprio lugar” (todas as suas atualizações já são deslocadas) e, como tal, distribui as duas séries existentes (masculino e feminino na sexualidade, Direita e Esquerda na política). Nesse, Lacan defende um conceito de falo não-relacional: o significante fálico “funda a sexualidade em sua inteireza como sistema ou estrutura”: é em relação ao objeto fálico
que a variedade de termos e a variação das relações diferenciais são determinadas em cada caso /.../. Os lugares relativos dos termos na estrutura dependem primeiro do lugar absoluto de cada um, a cada momento, em relação ao objeto=x que está sempre circulando, sempre deslocado em relação a si próprio /.../. Distribuindo as diferenças através de toda a estrutura, fazendo as relações diferenciais variarem com seus deslocamentos, o objeto=x constitui o elemento de diferenciação da própria diferenciação.4

            Aqui, contudo, dever-se-ia ter cuidado para se evitar a mesma armadilha que se oculta na noção de Deleuze de “passado puro”: esse elemento fixo que, como “causa ausente”, distribui os elementos, é um elemento puramente virtual que está presente apenas em seus efeitos e é, como tal, retroativamente posto (pré-suposto) por seus efeitos; ele não tem existência substancial independente anterior a esse processo.
            Isso nos traz a dimensão da castração simbólica: o falo como significante da pura virtualidade de sentido tem que ser “um significante sem significado”: ele é nonsense, a ausência de qualquer significado determinado, representa a virtualidade do sentido puro. (Ou, para por em termos mais deleuzianos: a mesma contra-atualização, o movimento para trás da atualidade para o campo virtual que é sua condição transcendental, tem que ocorrer NA atualidade, como um deslocamento, desordem, disjunção dos elementos dentro dessa ordem.) Esse é o motivo de não ser sem sentido falar em “significante sem significado”: essa falta de significado é em si um atributo positivo, inscrito no campo do significado como um buraco aberto em seu centro. (De maneira homóloga, Judeus são a nação “fálica”, o elemento fálico entre as nações: eles são a nação sem terra, mas no sentido de que essa falta é inscrita em seu próprio ser, como a referência absoluta à terra virtual de Israel.)
            A arte “abre caminho para uma liberação-expressão absoluta e genuinamente transformativa, precisamente porque o que ela libera não é outra coisa que a própria liberação, o movimento de pura espiritualização ou desmaterialização” (Hallward, p.122): o que tem que ser liberado afinal é a própria liberação, o movimento de “desterritorializar” todas as entidades existentes. Esse movimento auto-referente é crucial – e, nesse sentido, o que o desejo deseja não é um objeto determinado, mas uma afirmação incondicional do próprio desejo (ou, como escreveu Nietzsche, a vontade mais radical é a vontade da própria vontade).
            Aí reside a definitiva ironia da crítica de Deleuze a Hegel: quando, contra Hegel, Deleuze sustenta que a criação “é imediatamente criativa; não há sujeito transcendental ou negativo de criação que requer tempo no sentido de tornar-se consciente de si ou de outro modo alcançar a si mesmo” (Hallward, p.149), ele talvez impute a Hegel uma reificação-substancialização que não há e, nesse sentido, oblitera precisamente essa dimensão em Hegel que é mais próxima de Deleuze ele mesmo. Hegel repetidamente insiste que o Espírito é “um produto de si”: não há um Sujeito pré-existente intervindo na objetividade, mediando-suprassumindo a objetividade, mas o resultado de seu próprio movimento, i.e., puro processo. Como tal, ele não necessita de tempo para “alcançar a si mesmo”, mas simplesmente para gerar a si mesmo.
            No sentido de descrever o “vidente” cego (cego para a realidade concreta, mas sensível à virtual dimensão das coisas), Deleuze recorre a uma metáfora maravilhosa, de uma aranha desprovida de olhos e ouvidos, mas infinitamente sensível a qualquer coisa que ressoe através de sua teia virtual: “Formas concretas ou constituídas escorregam pela teia e não deixam impressão, pois a teia é designada para vibrar apenas em contato com formas virtuais ou intensivas. Quanto mais efêmero ou molecular o movimento, mais intensa é sua ressonância através da teia. A teia responde aos movimentos de uma pura multiplicidade antes que ela assuma qualquer forma definida.” (Hallward, p.118)
            Quando Deleuze se refere a um processo que cria e vê em um único movimento, ele conscientemente evoca, desse modo, a fórmula da intuição intelectual, a prerrogativa do Deus solitário. Deleuze segue um programa pré-crítico, defendendo apaixonadamente o “realismo” metafísico de Espinosa e Leibniz (revelação diretamente no próprio cerne das coisas) contra a limitação “crítica” de Kant de nosso conhecimento do domínio das representações fenomenais. No entanto, a resposta de Hegel a isso poderia ter sido: e se a distância da representação, a distância que torna a coisa inacessível a nós, é inscrita no coração da própria coisa, no sentido de que a mesma lacuna que nos separa da coisa nos inclui nela – nisso está o âmago da Cristologia hegeliana, onde nossa alienação de Deus coincide com a alienação de Deus de si mesmo. Deleuze diz que proposições não descrevem coisas, mas são atualizações verbais dessas coisas, i.e., essas próprias coisas em seu modo verbal – Hegel não afirmaria, nesse sentido, que nossa re-presentação de Deus é o próprio Deus no modo de representação, que nossa percepção errada de Deus é o próprio Deus em um modo errado?
            Eis como Hallward formula o âmago da rejeição crítica de Deleuze a Hegel: “enquanto que de acordo com Hegel, qualquer suposta ‘coisa difere de si mesma porque difere primeiro de todas as coisas que ela não é’, i.e., de todos os objetos com os quais está relacionado, o Bergson de Deleuze afirma que uma ‘coisa difere de si mesma primeiro, imediatamente’, por conta da ‘força interna explosiva’ que ele carrega dentro de si.” Se alguma vez existiu um homem de palha, esse é o Hegel de Deleuze: o insight básico de Hegel não é precisamente que cada oposição externa está baseada na auto-oposição imanente das coisas, i.e., que cada diferença externa implica em autodiferença? Um ser finito difere de outras coisas (finitas) porque ele já não é idêntico a si mesmo.
            Deleuze aceita a hierarquia das mônadas leibniziana: a diferença entre as mônadas é afinal quantitativa, i.e., cada mônada é substancialmente a mesma, ela expressa o total infinito do mundo, mas com uma diferença, sempre específica, intensidade quantitativa e adequação: em um extremo – mais baixo – estão as “mônadas escuras”, as quais têm apenas uma percepção nítida, seu ódio de Deus; no outro extremo – mais alto – estão as “mônadas razoáveis” que podem abrir-se para refletir o universo inteiro. O que, em uma mônada, resiste à completa expressão de Deus é sua obstinada fixação à sua ilusão de criatura, à sua identidade (em última instância material) particular. A humanidade ocupa aqui o lugar da mais alta tensão: por um lado os humanos são, bem mais que outros seres viventes, presos na escravidão do egoísmo absoluto, obstinadamente focados na preservação da identidade de seu Self (o qual é o motivo, para Deleuze, de ser a máxima tarefa da filosofia elevar o homem acima de sua condição humana para o nível “desumano” do “super-homem” [overman]); por um lado, Deleuze concorda com Bergson de que o homem representa um avanço único e o ponto mais alto na evolução da vida - com a emergência (emergence) da consciência, um ser vivente é finalmente capaz de contornar as limitações materiais (orgânicas) e avançar para um plano puramente espiritual de unidade com o Todo divino... De um ponto de vista hegeliano, pode-se dizer que o que Deleuze falha em perceber inteiramente é o que Schelling, entre outros, viu claramente: a identidade decisiva desses dois aspectos, o mais baixo e o mais alto: é precisamente ATRAVÉS de sua obstinada fixação ao seu Self singular que um indivíduo humano é capaz de extrair-se das circunvoluções particulares da vida concreta (com seu movimento circular de geração e corrupção) e entrar em relação com a eternidade virtual. Isso é porque (na medida em que o outro nome para essa obstinação egoísta é Mal) o Mal é uma é uma condição formal para se ascender ao Bem: ele cria literalmente o espaço para o Bem.
            Por exemplo, na esfera social, essa é a maneira como a economia exerce seu papel de determinar a estrutura social “em última instância”: a economia nesse papel nunca está diretamente presente como um agente causal tangível, sua presença é puramente virtual, ela é a “pseudocausa” social, mas, precisamente como tal, absoluta, não relacional, a causa ausente, algo que nunca “está em seu próprio lugar”: “isso é porque o ‘econômico’ nunca é dado, propriamente falando, mas designa, ao contrário uma virtualidade diferencial a ser interpretada, sempre recoberto por suas formas de atualização” (DR, p.186). Isto é o X ausente que circula entre as múltiplas séries do campo social (econômica, política, ideológica, legal...), distribuindo-as em sua articulação específica. Poder-se-ia então insistir na diferença radical entre o econômico como esse X virtual, o ponto de referência absoluto do campo social, e o econômico em sua efetividade, como um dos elementos (“sub-sistemas”) da totalidade social efetiva: quando eles se encontram, i.e., colocando as coisas em termos hegelianos, quando o econômico virtual encontra a si mesmo sob o disfarce de sua efetiva contraparte em sua “determinação oposta”, sua identidade coincide com a (auto)contradição absoluta.
            Isso nos traz o paradoxo central do pensamento de Deleuze: talvez a mais sucinta definição de sua filosofia seria a de um “espinosismo fitchiano” – e poderíamos tão somente ter em mente que Fitche foi (ele mesmo percebendo-se dessa forma) o absoluto antiespinosista.  Na noção de Deleuze de pura Vida como fluxo de criatividade virtual, a substância de Espinosa como causa sui coincide com o autoposicionamento do puro Eu absoluto fitchiano:
O conceito coloca-se a si mesmo na medida em que é criado. O que depende de uma atividade criativa livre é também o que, independentemente e necessariamente, põe a si mesmo em si mesmo: o mais subjetivo será o mais objetivo. (WP, p.11)

Esse puramente virtual auto-referencial cria movimento em velocidade infinita, na medida em que o mesmo não necessita de externalidade em/através da qual mediar seu movimento de autoposicionar-se: “Velocidade infinita assim descreve um movimento que não tem mais nada a ver com movimento real, um ‘movimento ‘puramente virtual que sempre alcança seu destino, cujo movimento é ele mesmo seu próprio destino”.5

Dissolve a pseudoligação do desejo com o prazer como sua medida extrínseca. Prazer é algo que de modo algum pode ser alcançado através do desvio da dor, mas que tem que ser atrasado ao máximo na medida em que é algo que interrompe o contínuo processo do desejo positivo. Há um júbilo de desejo imanente, como se o desejo satisfizesse a si mesmo, com ele mesmo e suas contemplações, e que não implique qualquer falta, qualquer impossibilidade. (MP, p.192)

            E o mesmo vale para o amor cortês: seu eterno adiamento de completude não obedece a uma lei da falta ou a um ideal de transcendência: aqui também há um desejo em que nada falta, na medida em que ele obtém sua completude em si mesmo, em sua própria imanência; cada prazer já é, ao contrário, a re-territorialização do livre fluxo do desejo. (193) 




1 Jacques-Alain Miller, "Detached Pieces," lacanian ink 28, Fall 2007, p. 37.

2 Deleuze, Negotiations 1972-1990, New York: Columbia Univ. Press, 1997, p. 6.

3 Moshe Idel, Kabbalah: New Perspectives, New Haven: Yale Univ. Press, 1988.

4 Gilles Deleuze, Desert Islands and Other Texts, Cambridge: Semiotext(e), 2004, p. 185-6.

5 Peter Hallward, Out of This World, London: Verso, 2006, p. 142.


Platonismo de Deleuze: Idéias como o Real por Slavoj Zizek

Platonismo de Deleuze: Idéias como o Real
Slavoj Zizek
Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Relembrando a velha estratégia católica para salvar o homem da tentação da carne: quando estiver diante de um voluptuoso corpo feminino, imagine como ele será em algumas décadas: a pele seca, seios caídos... (Ou, ainda melhor, imagine o que está sob a pele: carne crua e ossos, fluidos internos, comida semidigerida e excrementos...). Longe de realizar um retorno ao real destinado a quebrar o encanto imaginário do corpo, tal procedimento equivale a uma fuga do Real, o Real anunciando a si mesmo na aparência sedutora do corpo nu. Quer dizer, na oposição entre a aparência espectral do corpo e o corpo repulsivo em decadência, a aparência espectral é o Real, e o corpo decadente, a realidade – nós recorremos ao corpo decadente com o intuito de evitar a fascinação mortífera do Real que ameaça arrastar-nos para dentro de seu vórtice de jouissance.

Um Platonismo “cru” poderia reivindicar aqui que apenas o corpo belo materializa inteiramente a Idéia, e que um corpo em sua decadência material simplesmente não coincide com sua Idéia, não é mais sua cópia fiel. De uma perspectiva deleuziana (e, aqui, lacaniana), ao contrário, o espectro que nos atrai é a idéia do corpo como Real. Esse corpo não é o corpo de fato, mas o corpo virtual no sentido deleuziano do termo: o incorpóreo/imaterial corpo de puras intensidades.
O mais radical argumento anti-hegeliano de Deleuze diz respeito à pura diferença: Hegel é incapaz de pensar a pura diferença que está fora do horizonte da identidade/contradição; Hegel concebe uma diferença radicalizada como contradição que, então, através de sua resolução dialética é de novo subsumida na identidade. (Aqui, Deleuze se opõe também a Derrida, o qual, sob sua perspectiva, permanece preso no círculo vicioso da contradição/identidade, meramente adiando a resolução indefinidamente.) E na medida em que Hegel é o filósofo da atualidade/atualização, na medida em que, para ele, a “verdade” de uma potencialidade é revelada em sua atualização, a incapacidade de Hegel para pensar a pura diferença se iguala a sua incapacidade para pensar o virtual em sua própria dimensão, como uma possibilidade que, qua possibilidade, possui sua própria realidade: a pura diferença não é efetiva, não concerne a propriedades diferentes efetivas de uma coisa, ou entre duas coisas, seu status é puramente virtual, é uma diferença que se realiza em sua pureza precisamente quando nada muda na realidade, quando, realmente, a MESMA coisa repete a si mesma. – De fato, pode parecer que é apenas Deleuze quem formula o verdadeiro programa pós-hegeliano de pensar a diferença: a “inauguração” derridiana que enfatiza a diferença contínua, a disseminação que não pode nunca ser suprassumida/reapropriada, etc., permanece dentro da construção hegeliana, meramente “inaugurando-a”...

Mas, aqui, o contra-argumento hegeliano poderia ter sido: a diferença virtual pura não é um outro nome para a efetiva auto-identidade? Não é CONSTITUTIVA da efetiva identidade? Mais precisamente, nos termos do empirismo transcendental de Deleuze, diferença pura é o suporte/condição virtual da efetiva identidade: uma entidade é percebida como “(auto-)
idêntica” quando (e apenas quando) seu suporte virtual é reduzido a uma pura diferença. Em lacanês, a pura diferença concerne ao suplemento do objeto virtual (o objeto a de Lacan); sua experiência mais plástica é a de uma súbita mudança em (nossa percepção de) um objeto que, com relação às suas qualidades positivas, permanece o mesmo: “Ainda que nada mude, a coisa parece, subitamente, totalmente diferente” – como Deleuze poderia dizer, é a intensidade da coisa que muda. (Para Lacan, o problema/tarefa aqui é distinguir entre o Significante Mestre e o objet a, pois ambos se referem ao X abissal no objeto por trás de suas propriedades positivas.) Como tal, a pura diferença está mais próxima do antagonismo do que da diferença entre dois grupos sociais positivos onde um deles deve ser aniquilado. O universalismo que sustenta uma luta antagonística não é exclusivo de nenhum deles, motivo pelo qual o mais alto triunfo da luta antagonística não é a destruição do inimigo, mas a explosão da “irmandade universal”, na qual os agentes dos campos opostos mudam de lado e se unem (relembremos as proverbiais cenas da polícia ou unidades militares unindo-se aos demonstrators). É tal a explosão de uma entusiástica irmandade inclusiva que a diferença entre “nós” e o “inimigo” como agentes efetivos é reduzida a uma PURA diferença formal.

Isso nos introduz ao tópico da diferença, repetição, e mudança (no sentido de ascender a algo realmente novo). A tese de Deleuze de acordo com a qual o Novo e a repetição não são opostos, i.e., de que o Novo resulta apenas da repetição, deve ser lida contra o pano de fundo da diferença entre o Virtual e o Efetivo. Colocando diretamente: mudanças que concernem apenas ao aspecto efetivo das coisas são apenas mudanças dentro da moldura existente, não a emergência [emergence] de algo realmente Novo – o Novo emerge quando o suporte virtual do Efetivo muda, e essa mudança ocorre precisamente sob a aparência da repetição na qual uma coisa permanece a mesma em sua efetividade. Em outras palavras, coisas realmente mudam, não quando a se transforma em B, mas, enquanto A permanece exatamente o mesmo em relação às suas propriedades efetivas, imperceptivelmente ele “muda totalmente”...

O Real Lacaniano, em sua oposição ao Simbólico, não tem nada, em absoluto, a ver com o tema empirista padrão (ou fenomenológico, ou historicista, Lebensphilosophie, por essa razão) da abundância de realidade que resiste às estruturas formais, que não pode ser reduzida às suas determinações conceituais – a linguagem é cinza, a realidade é verde… O Real Lacaniano é, ao contrário, ainda mais “reducionista” do que qualquer estrutura simbólica: nós o tocamos quando subtraímos de um campo simbólico toda a abundância de suas diferenças, reduzindo-o a um mínimo de antagonismo. O próprio Lacan não está livre de reprovação, na medida em que às vezes ele é seduzido pela rizomática abundância de linguagem além (ou, mais exatamente, abaixo) da estrutura formal que a sustenta. É nesse sentido que, na última década de seu ensino, ele empregou a noção de lalangue (ás vezes simplesmente traduzido como “alíngua”) que representa a linguagem como o espaço de prazeres ilícitos que desafiam qualquer normatividade: a caótica multidão de homonímias, jogos de palavras, ligações metafóricas “irregulares” e ressonâncias... Produtiva como é essa noção, deve-se estar, contudo, ciente de suas limitações. Muitos comentadores notaram que a última grande interpretação literária de Lacan, dedicada a
Joyce em seu recentemente lançado seminário (XXIII Le sinthome1), não está no mesmo nível de suas grandes leituras anteriores (Hamlet, Antígona, Trilogia Coufontaine de Claudel). Há efetivamente algo falso na fascinação de Lacan com o último Joyce, com Finnegan’s Wake como a última versão da Gesamtkunstwerk literária com sua riqueza de alíngua na qual não apenas a fissura entre linguagens singulares, mas a mesma fissura entre significado lingüístico e jouissance parece triunfar, e o rizoma como jouis-sense (gozo-no-sentido: goza-o-sentido) prolifera em todas as direções. A verdadeira contraparte de Joyce é, claro, Samuel Becket: depois de seu período inicial no qual ele mais ou menos escreveu algumas variações de Joyce, o “verdadeiro” Becket constituiu-se através de um verdadeiro ato ético, de um CORTE, uma rejeição da abundância joyceana de goza-o-sentido, e do ascético retorno em direção à “diferença mínima”, em direção à minimalização, “subtração”, do conteúdo narrativo e da própria linguagem (essa linha é mais claramente discernível em sua obra prima, a trilogia Molloy - Malone Dies - L'innomable. O que é então a “diferença mínima” – a pura fissura em paralaxe – que sustenta a produção da maturidade de Becket? Pode-se ser tentado em propor a tese de que é a mesma diferença entre o francês e o inglês: como se sabe, Becket escreveu mais em francês em sua maturidade (que não é sua língua materna) e, desesperado com a baixa qualidade das traduções, ele mesmo traduziu para o inglês, e essas traduções não são meras traduções literais, mas são, efetivamente, textos diferentes.

É por causa de seu “minimalista” – puramente formal e insubstancial – status de Real que, para Lacan, a repetição precede a repressão – ou, como colocou sucintamente Deleuze: “Nós não repetimos porque reprimimos, mas reprimimos porque repetimos”.(DR –105) Não é que, primeiro, reprimimos algum conteúdo traumático e, então, uma vez que somos incapazes de rememorá-lo e então elucidar nossa relação com ele, esse conteúdo continua a nos perseguir, repetindo a si mesmo em suas formas disfarçadas. Se o Real é uma diferença mínima, então a repetição (que estabelece essa diferença) é primordial; a primazia da repressão emerge com a “reificação” do Real dentro de uma Coisa que resiste à simbolização – só então, de acordo com o que dissemos, o Real insiste e repete a si mesmo.

A conseqüência disso é também a inversão na relação entre repetição e lembrança. A famosa máxima de Freud “o que nós não lembramos, estamos compelidos a repetir” deveria ser invertida: o que nós somos incapazes de repetir, nos persegue e nos compele a memorizar. O caminho para livrar-se de um trauma passado não é rememora-lo, mas REPETI-LO inteiramente, no sentido kierkegaardiano. O que é a “pura diferença” deleuziana em sua pureza, se podemos colocar assim, de maneira tautológica? É a diferença puramente virtual de uma entidade que repete a si mesma como totalmente idêntica em relação a suas propriedades efetivas: “há diferenças significativas nas intensidades virtuais exprimidas em nossas sensações efetivas. Essas diferenças não correspondem a diferenças reconhecíveis tangíveis. Que a nuance de rosa tenha mudado de uma maneira identificável não é muito importante. É que a mudança é um sinal de um rearranjo de uma infinidade de outras relações efetivas e virtuais.”2 Não é como uma pura diferença o que ocorre na repetição da mesma linha melódica efetiva no “Humoresque” de Robert Schumann? Essa peça deve ser lida contra o pano de fundo da gradual perda da voz nas canções de Schumann: não é uma simples
peça para piano, mas uma canção sem a linha vocal, com a linha vocal reduzida ao silêncio, no sentido em que o que efetivamente escutamos é o acompanhamento do piano. Essa é maneira como poderíamos ler a “voz interior/innere Stimme/” adicionada por Schumann (na partitura) como uma terceira linha entre as duas linhas de piano, a mais alta e a mais baixa: como uma linha melódica vocal que permanece uma “voz interior” não vocalizada (que existe apenas como Augenmusik, música para os olhos apenas sob a forma de notas escritas). Essa melodia ausente deve ser reconstruída baseada no fato de que o primeiro e terceiro níveis (as partes do piano das mãos esquerda e direita) não estão relacionadas uma com a outra diretamente, i.e., a relação entre elas não é a de um espelhamento imediato: para dar conta de sua conexão, fica-se então compelido a (re)construir uma terceira linha, nível intermediário “virtual” (linha melódica) que, por razões estruturais, não pode ser tocado. Schumann introduz esse procedimento de melodia ausente em uma aparentemente absurda auto-referência quando, mais tarde, no mesmo fragmento de Humoresque, ele repete as mesmas duas linhas melódicas de fato tocadas, contudo, desta vez, a partitura não contém a terceira linha melódica ausente, a voz interior – o que está ausente aqui é a melodia ausente, i.e., a própria ausência. Como tocamos essas notas se, no plano do que é efetivamente tocado, as mesmas notas tocadas anteriormente são repetidas? As notas realmente tocadas são desprovidas apenas do que não está lá, de sua falta constitutiva, ou, em referência à Bíblia, eles perdem mesmo o que nunca tiveram. O verdadeiro pianista poderia ter então o savoir-faire de tocar as notas existentes de tal maneira que se pudesse ser capaz de discernir o eco de notas virtuais do acompanhamento “silencioso” não tocado ou sua ausência... Isto, então é a pura diferença: o nada-efetivo, o fundo virtual que justifica a diferença das duas linhas melódicas.

A lógica da diferença virtual pode também ser discernida em outro paradoxo, nomeadamente a anteriormente mencionada versão para o cinema de Billy Bathgate é basicamente um fracasso, mas interessante: um fracasso que, no entanto, evoca no espectador o espectro do romance muito melhor. Contudo, quando se lê o romance no qual o filme é baseado, fica-se desapontado – NÃO é este o romance que o filme evoca como padrão em relação ao qual ele fracassa. A repetição (de um romance malogrado em um filme malogrado) origina um terceiro elemento, puramente virtual, o melhor romance. Este é um caso exemplar do que dispõe Deleuze nas páginas cruciais de Diferença e Repetição:

Enquanto pode parecer que os dois presentes são sucessivos, na variável distância, à parte na série de reais, de fato eles formam, mais exatamente, duas séries reais que coexistem em relação a um objeto virtual de outro tipo, que constantemente circula e é neles deslocado /.../ A Repetição é constituída não de um presente a outro, mas entre duas séries coexistentes que esses presentes formam em função do objeto virtual (objeto = x). (DR-104-105)

Em relação a Billy Bathgate, o filme não “repete” o romance no qual é baseado; por melhor dizer, ambos “repetem” o não repetível x virtual, o “verdadeiro” romance cujo espectro é engendrado na passagem do romance efetivo para o filme. Esse virtual ponto de referência, embora “irreal” é, num certo sentido, mais real do que a realidade: é o ponto de referência ABSOLUTO das tentativas reais fracassadas. Esse é o modo, na perspectiva da teologia materialista, como o divino emerge da repetição de elementos materiais terrestres, como sua “causa” retroativamente posta por eles. Deleuze está certo em referir-se a Lacan aqui: esse “melhor livro” é o que Lacan chama de objet petit a, o objeto-causa do desejo que “não se pode recapturar no presente, exceto através de suas conseqüências”, os dois livros realmente existentes.

O movimento subjacente aqui é mais complexo do que pode parecer. Não é que devêssemos simplesmente conceber o ponto de partida (o romance) como uma “obra aberta”, plena de possibilidades que podem ser desdobradas posteriormente, atualizada em versões posteriores; ou – ainda pior – que devêssemos conceber a obra original como pré-texto que pode depois ser incorporados em outros com-textos, e conferindo assim um sentido totalmente diferente da obra original. O que se perde aqui é o movimento retroativo, de trás pra frente, movimento que foi descrito pela primeira vez por Henri Bergson, uma referência chave para Deleuze. Em seu “Duas Fontes de Moralidade e Religião”, Bergson descreve as estranhas sensações que ele experimentou em 4 de agosto de 1914, quando foi declarada guerra entre França e Alemanha: “Apesar de minha perturbação, e embora uma guerra, ainda que vitoriosa, me parecia uma catástrofe, eu experimentei o que [William] James disse a respeito, um sentimento de admiração pela facilidade da passagem do abstrato para o concreto: quem poderia haver pensado que tal acontecimento formidável pudesse emergir na realidade com tão pouca comoção?” 3 Crucial aqui é a modalidade de ruptura entre antes e depois: antes de sua explosão, a guerra parece a Bergson “simultaneamente provável e impossível: uma noção complexa e contraditória que persiste até o fim”4; depois de sua explosão, de uma só vez torna-se real E possível, e o paradoxo reside em sua retroativa aparência de probabilidade:

Eu nunca pretendi que se pudesse inserir a realidade no passado e então trabalhar de trás para frente no tempo. Contudo, pode-se sem sombra de dúvida inserir aí o possível, ou, por melhor dizer, em cada momento, o possível se insere aí. Na medida em que uma nova realidade, impredicável e nova cria-se a si mesma, sua imagem reflete-se a si mesma por trás de si mesma no passado indefinido: essa nova realidade encontra-se todo tempo sendo possível; mas é apenas no preciso momento de sua efetiva emergência [emergence] que ela começa a sempre ter sido, e é por isso que eu digo que sua possibilidade, que não precede sua realidade, irá precedê-la uma vez que sua realidade emerge.5

ISSO é o que ocorre no exemplo de Billy Bathgate: o filme insere posteriormente no romance a possibilidade de um romance diferente, muito melhor. E nós não encontramos uma relação similar entre o stalinismo e o leninismo? Aqui também, TRÊS momentos estão em jogo: a política de Lênin antes da tomada de poder stalinista; a política stalinista; o espectro do “leninismo” retroativamente gerado pelo stalinismo (em sua versão oficial stalinista, mas TAMBÉM na versão crítica do stalinismo, como quando no processo de “desestalinização” na União Soviética o slogan evocado era o do “retorno ao originai princípios leninistas”). Dever-se-ia, contudo, interromper
o ridículo jogo de opor o terror stalinista ao “autêntico” legado leninista traído pelo stalinismo: “leninismo” é rigorosamente uma noção stalinista. O gesto de se projetar o potencial utópico-emancipatório para trás, em um tempo anterior, sinaliza a incapacidade do pensamento em suportar a “contradição absoluta, a insuportável tensão inerente ao próprio projeto stalinista”.6 É conseqüentemente crucial distinguir “leninismo” (como o autêntico cerne do stalinismo) da efetiva prática política e a ideologia do período de Lênin: a efetiva grandeza de Lênin NÃO é equivalente ao autêntico mito do leninismo stalinista.

E a ironia é que essa lógica da repetição, elaborada por Deleuze, O anti-hegeliano, está no cerne mesmo da dialética hegeliana: ela depende de uma relação propriamente dialética entre a realidade temporal e o Absoluto eterno. O Absoluto eterno é o ponto imóvel de referência em torno do qual as figurações temporais circulam, sua pressuposição; contudo, precisamente como tal, ele é posto por essas figurações temporais, visto que ele não pré-existe a elas: ele emerge na lacuna entre o primeiro e o segundo – no caso de Billy Bathgate, entre a novela e sua repetição no filme. Ou, de volta ao Humoresque de Schumann, o absoluto eterno é a terceira linha melódica não tocada, o ponto de referência das duas linhas melódicas tocadas realmente: ele é absoluto, mas um absoluto frágil – se as duas linhas são tocadas incorretamente, ele desaparece... Isto é o que se fica tentado a chamar de “teologia materialista”: sucessão temporal cria eternidade.

A noção deleuziana de signo só pode ser alcançada contra o fundo de sua redefinição do que é um problema. O senso comum nos diz que há soluções verdadeiras e falsas para todos os problemas; para Deleuze, ao contrário, não há soluções definitivas para os problemas, soluções são apenas repetidas tentando lidar com o problema, com seu real-impossível. Os próprios problemas, não as soluções, são verdadeiros ou falsos. Cada solução não apenas responde ao “seu” problema, mas retroativamente o redefine, formulando-o de dentro de seu horizonte específico. Este é o porquê de o problema ser universal e as soluções/respostas serem particulares.

Deleuze é aqui inesperadamente mais próximo de Hegel: para Hegel, por exemplo, a Idéia de Estado é um problema, e cada específica forma de estado (República antiga, monarquia feudal, democracia moderna, ...) propôs uma solução a esse problema, redefinindo o próprio problema. E, precisamente, a passagem ao próximo estágio “superior” do processo dialético ocorre quando, em vez de continuar a buscar por uma solução, nós problematizamos o próprio problema – quer dizer, quando, em vez de continuar a buscar por um “verdadeiro” Estado, nós abandonamos a própria referência ao Estado e buscamos uma existência comunal por detrás do Estado.

Problema é, então, não apenas “subjetivo”, não apenas epistemológico, um problema para o sujeito que tenta resolve-lo; ele é sticto senso ontológico, inscrito na própria coisa: a estrutura da realidade é “problemática”. Ou seja, a realidade efetiva só pode ser alcançada como séries de respostas a problemas virtuais – quer dizer, na leitura de Deleuze da biologia, o desenvolvimento dos olhos só pode ser compreendido como tentativa de solução para o problema de como lidar com a luz. E isto nos introduz ao signo – a realidade efetiva aparece como “signo” apenas quando é percebida como resposta a um problema virtual:

Nem o problema nem a questão é uma determinação subjetiva marcando um momento de insuficiência em saber. A estrutura problemática é parte dos próprios objetos, permitindo que sejam alcançados como signos (DR-63-4).

Isso explica a estranha maneira em que Deleuze opõe signos e representações: para o senso comum, uma representação mental reproduz diretamente a maneira como uma coisa é, enquanto que um signo apenas aponta em direção a ela, designando-a com um (mais ou menos) significante arbitrário. (Na representação de uma mesa, eu “vejo diretamente” uma mesa, enquanto que seu signo apenas aponta em direção à mesa.) Para Deleuze, ao contrário, representações são mediadas, enquanto que os signos são diretos, e a tarefa de um pensamento criativo é a de “fazer do próprio movimento um trabalho, sem interposições; de substituir signos diretos por representações mediadas” (DR-16).

Representações são figuras de objetos como entidades objetivas desprovidas de seu suporte/fundo virtual, e nós passamos da representação ao signo quando estamos aptos a discernir em um objeto o que aponta em direção a seu fundamento virtual, em direção ao problema em relação ao qual ele é uma resposta. Sucintamente, cada resposta é um signo de seu problema. O argumento de Deleuze contra o negativo (hegeliano) não se sustenta apenas se reduzimos o negativo à negação de uma entidade positiva pré-existente? E uma negatividade que é em si mesma positiva, benevolente, “generativa”?

Para uma Cristologia deleuziana. Como fazemos para alcançar a (muitas vezes assinalada) impassibilidade da figura de Cristo, sua “esterilidade”? E se Cristo é um Evento, no sentido deleuziano – uma ocorrência de pura individualidade sem poder próprio causal? É o porquê de Cristo sofrer, mas de uma maneira inteiramente impassível. Cristo é “individual” no sentido deleuziano: ele é um puro indivíduo, não caracterizado por propriedades positivas que poderiam fazê-lo “mais” do que um humano comum, i.e., a diferença entre Cristo e outros humanos é puramente virtual – voltando a Schumann, Cristo é, no nível da efetividade, igual aos outros humanos, apenas a “melodia virtual” não escrita que o acompanha é adicionada. E no Espírito Santo, temos essa “melodia virtual” em si mesma: o Espírito Sagrado é um campo coletivo de pura virtualidade, sem poder causal próprio. A morte e ressurreição de Cristo é a morte da pessoa efetiva que nos confronta diretamente com o (“ressurrecto”) campo virtual que o sustenta. O nome cristão para essa força virtual é “amor”: quando Cristo diz para seus aflitos seguidores que depois de sua morte “quando houver amor entre dois de vocês, eu lá estarei” ele assim afirma seu status virtual.

A repetição de Deleuze “não é um fato objetivo, mas um ato – uma forma de comportamento em direção ao que não pode ser repetido” (JW-33). Este é o porquê de que aqui a assimetria entre os dois níveis – efetividade de fatos e virtualidades de diferenças puras – é radical: não apenas a repetição de puras diferenças está na base de todas as identidades efetivas (como vimos no caso de Schumann), i.e., não apenas encontramos pura diferença virtual em sua maior pureza na identidade efetiva; mas também que “a repetição das identidades efetivas está disfarçada em cada determinada idéia de diferenças puras” (JW-28): não há diferença “pura” fora da efetividade, a esfera virtual de diferenças apenas persiste/insiste como uma sombra acompanhando as identidades efetivas e suas interações. Mais uma vez, como no caso de Billy Bathgate o espectro virtual (“Idéia”) da verdadeira novela surge apenas através da efetiva repetição da novela efetiva no filme.

O ponto de partida do “empirismo transcendental” de Deleuze é que há sempre um aspecto virtual escondido em todo objeto ou processo determinado/efetivo dado: coisas efetivas não são ontologicamente “completas”; no sentido de se ter uma visão completa deles, devemos adicionar a ele seu complemento virtual. Esse movimento de uma dada coisa efetiva para suas condições virtuais é o movimento transcendental, o desdobramento das condições transcendentais do dado. Contudo, isso não significa que o virtual de alguma maneira produza, cause, ou gere o efetivo: quando Deleuze fala sobre gênese (do efetivo fora do virtual) ele não quer dizer gênese temporal-evolutiva, o devir espaço-temporal de algo, mas uma “gênese sem dinamismo, evoluindo necessariamente no elemento de uma supra-historicidade, uma gênese estática” (DR-183). Essa característica estática do campo virtual encontra sua mais radical expressão na noção de Deleuze de passado puro: não um passado no qual coisas presentes passam, mas um passado absoluto, “onde todos os eventos, incluindo aqueles que desapareceram sem deixar traços, são armazenados e relembrados como sua morte” (JW-94), um passado virtual que já contém também coisas que são ainda presentes (um presente pode se tornar passado porque em um sentido ele já é, ele pode perceber-se como parte do passado (“o que nós estamos fazendo agora é (terá sido) história”): “É em relação ao puro elemento do passado, entendido como passado em geral, como um passado a priori, que uma dada forma presente é reproduzível e o presente presente é capaz de refletir-se” (DR-81). Isso significa que este passado puro envolve uma meticulosa noção determinista do universo na qual tudo acontece (surge), toda disposição espaço-temporal efetiva já é parte de uma rede virtual imemorial/atemporal? Não, e por uma razão extremamente precisa: porque “o passado puro deve ser todo o passado, mas deve ser também aberto a mudança através do acontecimento de cada presente novo” (JW-96). Não foi outro se não T.S. Eliot, este grande conservador, quem primeiro formulou claramente essa ligação entre nossa dependência da tradição e nosso poder de mudar o passado: tradição

não pode ser herdada, e se você a quer, deve obtê-la através de um grande labor. Isso envolve, em primeiro lugar, o senso histórico, que podemos considerar praticamente indispensável para qualquer um que continuasse a ser poeta após seus vinte e cinco anos; e o sentido histórico envolve uma percepção, não apenas do passado do pretérito, mas de sua presença; o sentido histórico compele um homem a escrever não meramente com sua própria geração em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura da Europa desde Homero e nela toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é um sentido do atemporal bem como do temporal, e do atemporal e do temporal juntos é o que faz um escritor tradicional. E isso é, ao mesmo tempo, o que faz um escritor mais vivamente consciente de seu lugar no tempo, de sua contemporaneidade.

Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem seu completo significado sozinho. Sua significância, sua apreciação é a apreciação de sua relação com os poetas e artistas mortos. Você não pode valora-lo sozinho; você deve situa-lo, por contraste e comparação, entre os mortos. Eu me refiro a isto como um princípio de crítica estética, não meramente histórica. A necessidade que ele conformará, que ele conciliará, não é parcial; o que acontece quando uma nova obra de arte é criada é algo que acontece simultaneamente a todas as obras de arte que a precederam. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si mesmos, a qual é modificada pela introdução da nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra chegue; para a ordem persistir depois da aparição da novidade, toda a ordem existente deve ser, ainda que ligeiramente, alterada; e então as relações, proporções, valores de cada obra de arte diante do todo são reajustados; e isto é conformidade entre o velho e o novo. Quem quer que tenha aprovado essa idéia de ordem, da forma da literatura inglesa, da literatura européia, não considerará ridículo que o passado fosse alterado pelo presente tanto quanto o presente é direcionado pelo passado. E o poeta que é ciente disso deverá estar ciente das dificuldades e responsabilidades.

O que acontece é uma contínua abdicação de si mesmo quando ele agora se vê diante de algo que é mais valioso. O progresso de um artista é um auto-sacrifício contínuo, uma contínua extinção da personalidade. Resta aqui definir este processo de despersonalização e sua relação com o senso de tradição. É nessa despersonalização que pode-se dizer que a arte se aproxima da condição da ciência.7

Quando Eliot escreve que, quando julgar um poeta vivo, “você deve situá-lo entre os mortos”, ele formula precisamente um exemplo do passado puro de Deleuze. E quando ele escreve que “a ordem existente é completa antes que o novo chegue; para a ordem persistir depois da aparição da novidade, toda a ordem existente deve ser, ainda que ligeiramente, alterada; e então as relações, proporções, valores de cada obra de arte diante do todo são reajustados”, ele não menos claramente formula a ligação paradoxal entre a completude do passado e nossa capacidade para mudá-lo retroativamente: precisamente porque o passado puro é completo, cada novo trabalho re-arranja todo o seu balanço. Retomemos a precisa formulação de Borges da relação entre Kafka e a multidão de seus precursores, dos velhos autores chineses a Robert Browning: “a idiossincrasia de Kafka, em maior ou menor grau, está presente em cada um destes autores, mas se Kafka não tivesse escrito nós não perceberíamos isso; quer dizer, isso não existiria. /.../ cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa percepção do passado, bem como modificará o futuro”8. A solução propriamente dialética para o dilema do “Isto está realmente aí, na fonte, ou nós é que lemos como se estivesse na fonte?”, é, então: Isto está aí, mas nós só podemos perceber e estabelecer isto retroativamente, pela perspectiva atual.

Aqui, Peter Hallward erra o alvo em seu de outro modo excelente Out of This World, onde ele acentua apenas o aspecto do passado puro como o campo virtual em que o fato de que todos os eventos estão selados antecipadamente, desde que nele “tudo já está escrito”. Neste ponto onde vemos a realidade sub specie aeternitatis, a liberdade absoluta coincide com a necessidade absoluta e seu automatismo puro: ser livre significa fluir na/com a necessidade substancial. Este tópico reverbera hoje ainda no atual debate cognitivista sobre o problema do livre arbítrio. Conciliadores como Daniel Dennett têm uma elegante solução para as reclamações não conciliadoras sobre determinismo (ver, de Dennett, Freedom Evolves): quando não conciliadores protestam que nossa liberdade não pode ser combinada com o fato de que todos os nossos atos são parte da grande cadeia de determinismo natural, eles secretamente fazem uma injustificada suposição ontológica: primeiro, eles assumem que nós (o Self, o agente livre) nos situamos FORA da realidade, e então reclamam que se sentem oprimidos pela noção de que a realidade com seu determinismo os controla totalmente. Isto é o que está errado com a noção de que nosso ser está “aprisionado” pela cadeia do determinismo natural: nós assim ofuscamos o fato de que somos PARTE da realidade, que o conflito (possível, local) entre nosso “livre” esforço e a realidade externa resistindo a ele é um conflito inerente à própria realidade. Quer dizer, não há nada “opressivo” ou “constritivo” em relação ao fato de que nossos mais profundos esforços são (pré)determinados: quando nos sentimos frustrados em nossa liberdade pela pressão constritiva da realidade externa, deve haver algo em nós, alguns desejos, esforços, que são assim frustrados, e de onde poderiam vir esses esforços senão da própria realidade? Nosso “livre arbítrio”, de alguma maneira misteriosa, não “perturba o curso natural das coisas” ele é parte e parcela deste curso. Para sermos “verdadeiramente” e “radicalmente” livres, isso poderia requerer que não houvesse conteúdos positivos que quiséssemos impor como nossos atos livres – se não queremos nada “externo” e particular/dado para determinar nosso comportamento, então “isso envolveria ser livre de cada parte de nós mesmos” (Fearn 24). Quando um determinista clama que nossa livre escolha é “determinada”, não significa que nosso livre arbítrio é restringido, que nós somos forçados a agir CONTRA nosso livre arbítrio – o que é “determinada” é a mesma coisa que queremos fazer “livremente”, i.e., sem sermos frustrados pelos obstáculos externos. Assim, Voltando a Hallward: Enquanto ele está certo em enfatizar que, para Deleuze, liberdade “não diz respeito à liberdade humana, mas à libertação da humanidade” (139), de submergir inteiramente no fluxo criativo da Vida absoluta, sua conclusão política é demasiado prematura:

A imediata implicação política de tal posição /.../ é suficientemente clara: na medida em que um modo livre ou uma mônada é simplesmente alguém que eliminou sua resistência ao bem soberano que funciona através dela, segue-se então que o mais absoluto poder soberano, os mais livres são aqueles assujeitados a ele. (139)

Mas Hallward não ignora o movimento retroativo sobre o qual Deleuze também insiste, i.e., como esse eterno passado puro que nos determina inteiramente é ele mesmo assujeitado à mudança retroativa? Nós somos então simultaneamente mais livres e menos livres do que pensamos: nós somos inteiramente passivos, determinados por e dependentes do passado, mas temos a liberdade de definir o escopo dessa determinação, i.e., (sobre)determinar o passado que nos determinará. Deleuze é aqui inesperadamente próximo de Kant, para quem Eu sou determinado por causas, mas eu (posso) retroativamente determinar que causas irão me determinar: nós, sujeitos, somos passivamente afetados por objetos patológicos e motivações; mas, de uma maneira reflexiva, nós mesmos temos o poder mínimo para aceitar (ou rejeitar) sermos afetados dessa maneira, i.e., nós retroativamente determinamos as causas que têm permissão de nos determinar ou, ao menos, a MANEIRA dessa determinação linear. A “liberdade” é então inerentemente retroativa: de maneira mais elementar, não é simplesmente um ato livre que, vindo de nenhuma parte, inicia uma nova ligação causal, mas um ato retroativo de aprovação cuja ligação/seqüência irá me determinar. Aqui, poder-se-ia adicionar a guinada hegeliana para Spinoza: liberdade não é simplesmente “necessidade conhecida/reconhecida”, mas necessidade reconhecida/assumida, a necessidade constituída/atualizada através desta recognição. Então, quando Deleuze se refere à descrição de Proust da música de Vinteuil que obseda Swann – “como se os músicos não tivessem tocado a pequena frase, mas executado os ritos necessários para que ela aparecesse” –, ele está evocando a ilusão necessária: gerando o sentido-evento experimentado como evocação ritualística de um evento pré-existente, como se o acontecimento já estivesse aí, esperando por nosso chamado em sua presença virtual.

O que ressoa diretamente neste tópico é, claro, o motivo protestante da predestinação: longe de ser um motivo teológico reacionário, a predestinação é um elemento chave da teoria materialista do sentido, com a condição de ser lido ao longo do que escreveu Deleuze sobre a oposição do virtual e do real. Quer dizer, predestinação não significa que nosso destino está selado em um texto que existe desde a eternidade na mente divina; a textura que nos predestina a pertencer ao eterno passado puramente virtual, como tal, pode ser retroativamente reescrita por nossos atos. Isto, talvez, fosse o sentido último da singularidade da encarnação de Cristo: este é um ATO que muda radicalmente nosso destino. Antes de Cristo, nós éramos determinados pelo destino, apanhados no ciclo do pecado e de seu pagamento, enquanto que o apagamento de Cristo de nossos pecados passados significa precisamente que seu sacrifício muda nosso passado virtual e nos liberta. Quando Deleuze escreve que minha ferida, eu nasci para incorporá-la, não é uma variação do tema do Gato de Cheshire e seu sorriso em Alice no país das maravilhas (o gato nasce para incorporar seu sorriso) não oferece uma fórmula perfeita para o sacrifício de Cristo: Cristo nasceu para incorporar sua ferida, ser crucificado? O problema é a leitura literal desta proposição: como se as condutas efetivas de uma pessoa meramente atualizassem seu destino eterno-atemporal inscrito em sua idéia virtual:

A única verdadeira tarefa de César é tornar-se merecedor dos eventos que ele foi criado para incorporar. Amor fati. O que César efetivamente faz não adiciona nada ao que ele virtualmente é. Quando César efetivamente cruza o Rubicão isso não envolve deliberação ou escolha na medida em que é parte da inteira, imediata expressão de cesaridade, seu simples desenrolar ou desdobrar algo que foi envolvido por todos os tempos na noção de César. (Hallward, 54)

No entanto, e a retroatividade de um gesto que (re)constitui seu próprio passado? Esta, talvez, seja a mais sucinta definição do que é um autêntico ATO: em nossa atividade comum, nós efetivamente apenas seguimos as (fantasmáticas-virtuais) coordenadas de nossa identidade, enquanto que um ato propriamente é o paradoxo de um movimento efetivo que (retroativamente) muda as mesmas coordenadas virtuais transcendentais de seu agente – ou, em termos freudianos, que não muda apenas a realidade de nosso mundo, mas também “movimenta seu subterrâneo”. Temos, então, um tipo de reflexivo “desdobramento para trás da condição sobre o dado que foi a própria condição para ele” (JW-109): enquanto que o passado puro é a condição transcendental para nossos atos, nossos atos não apenas criam a nova realidade efetiva, eles retroativamente também mudam esta mesma condição. Isto nos introduz ao problema central da ontologia de Deleuze: como o virtual e o efetivo se relacionam? “Coisas efetivas expressam idéias, mas não são causadas por elas.” (JW-200) A noção de causalidade é limitada à interação de coisas e processos efetivos; por outro lado, esta interação também causa entidades virtuais (sentido, Idéias): Deleuze não é um idealista, Sentido é sempre para ele uma sombra ineficaz estéril acompanhando coisas efetivas. O que isso significa é que, para Deleuze, gênese (transcendental) e causalidade são totalmente opostos: eles se movem em níveis diferentes.

Coisas reais têm uma identidade, mas as virtuais não têm, elas são variações puras. Uma coisa real deve mudar – tornar-se algo diferente – no sentido de expressar algo. Enquanto que a coisa virtual expressada não muda – apenas sua relação com outras coisas virtuais, outras intensidades e idéias mudam. (JW-200)

Como essa relação muda? Apenas através de mudanças em coisas reais que expressam idéias, desde que todo o poder generativo se encontra em coisas reais: Idéias pertencem ao domínio do Sentido que é “apenas um vapor que atua no limite entre as coisas e as palavras”; em si, o Sentido é “o Ineficaz, um incorporal estéril desprovido de seus poderes generativos” (DR-156). Pense sobre um grupo de indivíduos dedicados lutando pela Idéia de Comunismo: para compreender sua atividade, temos que levar em conta a Idéia virtual. Mas essa idéia é em si mesma estéril, sem causalidade própria: toda a causalidade reside nos indivíduos que a “expressam”.

A essência da crítica de Deleuze a Aristóteles, da noção de diferença específica, é que ele privilegiou a diferença para a identidade: diferença específica sempre pressupõe a identidade de um gênero em que espécies opostas co-existem. No entanto, e a “complicação hegeliana” aqui? EEE a diferença específica que define o próprio gênero, uma diferença de espécies que coincide com a diferença entre genus e species, reduzindo então o genus a uma de suas species?

Corpos sem órgãos, órgãos sem corpo: como Deleuze enfatiza, o que ele está combatendo não são os órgãos, mas o ORGANISMO, a articulação de um corpo dentro de uma totalidade de órgãos harmoniosa-hierárquica, cada
“qual em seu lugar”, com sua função: “o CsO não é de forma algum o contrário s órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. Seu inimigo é o organismo”9. Ele está combatendo o corporativismo/organicismo. Para ele, a substância de Spinoza é o derradeiro CsO: o espaço não-hierárquico no qual uma multidão caótica (de órgãos?), todos iguais (univocidade do ser), flutuam... Contudo, uma escolha estratégica é feita aqui: por que CsO, por que não (também) OsC? Por que não o Corpo como o espaço no qual órgãos autônomos livremente flutuam? É porque “órgãos” evocam uma função dentro de um Todo mais vasto, subordinação a um objetivo? Mas esse mesmo fato não faz sua autonomização, OsC, especialmente subversiva?

NOTAS:

1 Le Séminaire de Jacques Lacan, Livre XXIII: Le sinthome, Paris: Editions du Seuil, 2005.

2 James Williams, Gilles Deleuzeʹs Difference and Repetition: a Critical Introduction and Guide, Edinburgh: Edinburgh Univ. Press, 2003, p. 27.

3 Henri Bergson, OEuvres, Paris: PUF, 1991, p. 1110‐1111.

4 Bergson, ibid.

5 Bergson, ibid.

6 Um dos muitos historiadores capazes de confrontar esta excruciante tensão é Sheila Fitzpatrick que identificou que o ano de 128 foi um momento crítico devastador, uma verdadeira segunda revolução, não um tipo de “Termidor”, mas, sobretudo, a subseqüente radicalização da Revolução de Outubro. Ver Stalinism. New Directions, ed. by Sheila Fitzpatrick, London: Routledge, 2001.

7 T.S. Eliot, ʺTradition and the Individual Talent,ʺ originally published in The Sacred Wood: Essays on Poetry and Criticism, (1922).

8 Jorge Luis Borges, Other Inquisitions: 1937‐52, New York: Washington Square Press, 1966, p. 113.

9 Gilles Deleuze ‐ Felix Guattari, Mille plateaux, Paris: Les editions de Minuit, 1980, p. 196.